© Vladimir Kush |
Os Urubus
— Estou esperando!
— Não quero!
— Deixá-lo passar!
— Naufragou!
Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade — a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e aquelas frases maçônicas fizeram-me mal. Parei, consultei o relógio. Os quatro tipos não se ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um magrinho bradou:
— Largo!
Prestei atenção. Do tramway em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.
— De cima! bradou outro tipo.
— Última! regougou o terceiro.
E cercaram o cavalheiro.
— V. Sa. há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos de tudo! Faça negócio comigo!
A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames: — Muito obrigado! Muito obrigado!
Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.
— Que espécie de gente é essa?
— Oh! não conhece? São os urubus!
— Urubus?
— Sim, os corvos.. . É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!
Totalmente interessado, tive uma dessas exclamações de pasmo que lisonjeiam sempre os informantes e nada exprimem de definitivo. E sorriu, tossiu e falou. Foi prodigioso.
— Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes dizeres — encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres — "Tributo da Saudade, "Coroa de Violetas", "Flor de Lis", "Bogari", "A Jardineira", "Coroa de Rosas"...
— Mas...e estes homens aqui?
— Estes homens são os urubus de Santa Luzia, serviço especial e maçônico. Três ficam à entrada principal da Santa Casa. Quando avistam um tipo, brada o primeiro: estou esperando!
Se o tipo não tem cara de enterro: não quero! Deixá-lo passar. Se o homem vem de tílburi, correm até aqui a acompanhá-lo... Se o tílburi segue, bradam: naufragou! E voltam ao lugar donde não saíram os outros. É interessante ouvir-lhes o diálogo. Tu é que não correste!
Conheço o homem; antes fosse, era meu o negócio...
— Mas é horrível!
— É a vida, meu caro. Aqui estacionam sete agentes; o assalto ao freguês vai pela vez, como aos sábados, nos barbeiros. Quatro oferecem grinaldas aos passageiros que saltam dos bondes; três aos que vêm a pé. Ao ver o bando ao longe há a frase: De cima! que é o sinal. Do lado de lá! quando ele salta do lado oposto. Última! quando salta no Necrotério. um dos urubus acerta, grita: Estou empregado! E feito o negócio o outro avança, dizendo: Grinalda! para obter como resposta: A tua é minha...
Quando aparece por acaso algum freguês conhecido de um agenciadores dá-se o "combate".
Os três que ficaram "desempregados", desejando "furar" o agenciador amigo, quando não conseguem convencê-lo arranjam meio de o cacetear até que o negócio não se realize. Nessa ocasião assistimos a cenas calorosas, a conflitos sérios, em que se faz sentir a intervenção da polícia. Mas à noite, graças aos deuses, acabado o trabalho, vão todos para a venda do Antônio, à Rua da Misericórdia, beber cerveja.
— São estes então? fiz, voltando-me.
— Estes só, não. Há outros, os que fazem ponto no Largo da Batalha e rendem estes à hora do almoço e que só têm o posto depois de ter todas as notas dos tipos que estão na secretaria e tratar de enterros.
— Como os agentes de polícia?
— Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.
Rimos ambos. O sol está brilhante e o céu, inteiramente azul, dá-nos desejos de viver e de compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.
— Os urubus devem ter nome?
— Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol da Saúde, o Mangonga. Os outros são o Joaquim, o Tatuí, o Paulino, o Cá e Lá, o Buriti, o Manduca.
Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:
— Alguma coisa de novo?
— Sim, pode entrar.
O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.
— Outro urubu.
— Outro?
— São os que parecem reporters. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera que o corpo saia, um, dois, cinco às vezes. Quando o cadáver sai e a família ainda está aos soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência, a ver quem faz o luto em 24 horas mais em conta. Neste serviço conheço o Ferraz, o Saul, o Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.
Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço da cidade que cheira a cadáveres e a morte?
Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem-ofício e dos parasitas que não trabalham. Esses sujeitinhos vestem bem, dormem bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, ideias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes, lutando pela vida, naquele ambiente atroz da morte, vestindo a libré das pompas fúnebres, impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má sorte, pelotão dos tristes, seres sem o conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor que cada vez a humanidade sente menos.
Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.
— Estiveram contando coisas a nosso respeito?
— Não, absolutamente.
— Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...
— Deus queira que não! fiz assustado.
E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.
Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o Holocausto, a d. Carmen de B. Lopes, a Vida do Mercador e de Antônio de Pádua, o Evangelho de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas entortadas pelo sol.
— Vende-se tudo isso?
— Oh! não. Há quase um ano que os tenho. Os outros sim — modinhas, orações, livros de sonhos, a História da Princesa Magalona, o Carlos Magno, os testamentos dos bichos.
Levantei as mãos para o céu como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo dos meados do século passado!
— Mas não é possível...
— Pode perguntar aos outros vendedores.
Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os vendedores de livros são uma chusma incontável que todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe aos morros, percorre os subúrbios, estaciona nos lugares de movimento. Há alguns anos, esses vendedores não passavam de meia dúzia de africanos, espapaçados preguiçosamente como o João Brandão na Praça do Mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maníacos aos rapazolas indolentes e aos propagandistas da fé. A venda não é franca senão em alguns pontos onde se exibem os tabuleiros com as edições falsificadas do Melro de Junqueiro e da Noite na Taverna. Os outros batem a cidade, oferecendo as obras. E há então toda uma gama de maneiras para passar a fazenda. Os mais atilados, os mais argutos, os mais incansáveis são os vendedores de Bíblias protestantes, com os bolsos das velhas sobrecasacas ajoujados de brochuras edificantes.
— Ó rapaz, por que não fica com esta Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus, onde estão as eternas verdades. E se ficar com ela, vai mais este volume de quebra sobre as feras que devoram o homem, as feras morais...
Os outros não pairam em regiões tão espirituais. Há os solenes — o velho Maia, que aprecia as encadernações vermelhas; foi guarda-livros e virou para a infelicidade quando, um dia, se lembrou de decorar todo o dicionário latino de Saraiva. Há os que têm apelido — Espelho de Psyché, pobre homem, negociante, que a má sorte faz andar agora de cesta ao braço, com uma fita verde no chapelinho. Há os escandalosos relapsos — o Conegundes, negralhão de cavanhaque, gritador. Há os que durante o trabalho percorrem as tabernas, e para impingir aos caixeiros um dos volumes ingerem em cada uma dois da branca — o Artur. Há os que têm admirações literárias — o Camões, zanaga, que vos recita o I Canto dos Lusíadas de cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que apregoam dois dias na semana para descansar os outros cinco.
Há os que têm a arte do pregão e, longe de ir com um embrulhinho perguntar à casa do comprador se quer ficar com a História de Carlos Magno, soltam a voz em gorjeios estentóricos, como o Noite Sonorosa: Meu Deus, que noite sonorosa!
O céu está todo estrelado.
Eu com o cavaquinho na mão E a morena ao lado.
Isto em pleno dia.
Cada sujeito desses pode passar a vida bem. As livrarias vendem baratíssimo os livrecos procurados. Em cada um, os vendedores ganham, no mínimo, seiscentos por cento. Há alguns que, trabalhando com vontade e sabendo lançar — as orações, as modinhas ou a inefável História da Donzela Teodora, arranjam uma diária de dez mil réis, sem grande esforço. Daí, todo dia aumentar o número de camelôs de livros, vir começando a formar-se essa próspera profissão da miséria que todas as cidades têm, ávida e lamentável, num arregimentar de pobres propagandistas do Evangelho e do Espiritismo, de homens que a sorte deixou de proteger, de malandros cínicos, de rapazes vadios.
Os livros, porém, de grande venda ficam sempre os mesmos.
Nós não gostamos de mudar em coisa nenhuma, nem no teatro, nem na paisagem, nem na literatura. É provável que o divórcio tenha caído por esse inveterado e extraordinário amor de não mudar, que nos obceca. Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda dos camelôs têm sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno, a Despedida de João Brandão e a Conversação do Pai Manuel com o Pai José — ao todo uns vinte folhetos sarrabulhentos de crimes e de sandices. Como esforço de invenção e permanente êxito, apareceram, exportados de Portugal, os testamentos dos bichos, o Conselheiro dos Amantes e uma sonolenta Disputa divertida das grandes bulhas que teve um homem com sua mulher por não lhe querer deitar uns fundilhos nos calções velhos.
Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. Contam na Penitenciária que o Carlito da Saúde, preso a primeira vez por desordens, ao chegar ao cubículo, mergulhou na leitura do Carlos Magno. Sobreveio-lhe uma agitação violenta. Ao terminar a leitura anunciou que mataria um homem ao deixar a detenção. E no dia da saída, alguns passos adiante, esfaqueou um tipo inteiramente desconhecido. Só esse Carlos Magno tem causado mais mortes que um batalhão em guerra. A leitura de todos os folhetos deixa, entretanto, a mesma impressão de sangue, de crime, de julgamento, de tribunal. Há, por exemplo, uma obra cuja tiragem deixa numa retaguarda lamentável as consecutivas edições do Cyrano de Bergerac. Intitula-se Maria José, ou a filha que assassinou, degolou e esquartejou sua própria mãe, Matilde do Rosário da Luz, e começa como nas feiras: — "Atendei, e vereis um crime espantoso, um crime novo, o maior de todos os crimes!" Essa Maria ainda era só a matar uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Reinaldos, ensanduichado em frases de louvor a Nosso Senhor, mete-se num rolo doido com os turcos, e o livro louva-o por ir degolando a cada passo um homem.
Tudo quanto é inferior — a calúnia, o falso testemunho, o ódio — serve de entrecho a esses romances mal escritos. Quando a coisa é em verso, toma proporções de puff carnavalesco. A Despedida do João Brandão à sua mulher, filhos e colegas, com um apêndice em que se convence o leitor de que João podia ser um herói cristão, é lida nos cortiços com temor e pena.
A primeira quadra da despedida é assim:
Andando eu a passear,
Com amiga do coração.
Dois passos à retaguarda:
Estais preso, João Brandão.
Que se há de fazer diante destes quatro versos nefelibatas? A Despedida tem quarenta e nove quadras, fora a resposta da esposa. Uma mistura paranóica de remorso, de tolices de religião, saudade e covardia, faz destas quadras o supra-sumo da estética emotiva da turba — cujos sentimentos oscilam entre o temor e a ambição. João Brandão soluça:
Adeus, João Brandão,
Espelho de eu me vestir,
Tu mataste o menino
Que para ti se ficou a rir.
Agora vou degredado,
A paixão é que me mata;
Adeus, Carolina Augusta,
Já não vale a tua prata.
Para alegrar os leitores, esses criminosos anônimos cultivaram o testamento dos bichos. Já testamento é uma ideia inteiramente lúgubre. O testamento da pulga, do mosquito ou da saracura, não seria para fazer rebentar de riso os mortais, nem mesmo agora, neste mortal período de desinfecções e higiene à outrance. Mas que pensam os senhores dessas quadrinhas, das quais já se venderam mais de cem mil folhetos, das quais diariamente e perpetuamente se vendem mais volumes que da Canaã de Graça Aranha? Os testamentos são uma lamentável relação de legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso.
O galo leva quarenta quadras a deixar coisas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do papagaio há esta observação pessoal, sempre aplicável às câmaras:
Há no mundo papagaios
Que falam todos os dias
E nunca sofrem desmaios
Comendo grossas maquias.
Estes são de Pernambuco,
Falam muito, são mitrados;
Eu falei, mas fui maluco,
Logo paguei meus pecados.
E falam do veneno da literatura francesa, que perde o cérebro das meninas nervosas e aumenta o nosso crescido número de poetas! Que se dirá dessa literatura — pasto mental dos caixeiros de botequim, dos rapazes do povo, dos vadios, do grosso, enfim, da população? Que se dirá desses homens que vão inconscientemente ministrando em grandes doses aos cérebros dos simples a admiração pelo esfaqueamento e o respeito da tolice?
Como eu clamasse contra essa teimosa mania de não mudar as suas predileções, um dos vendedores ambulantes, o cantante Meu Deus que noite sonorosa, esticou a perna e disse-me: — Talvez fosse para pior.
Parei convencido, o curso das interrogações. Já outro filósofo seu rival, Montaigne, assegurava que mudar é quase sempre uma probabilidade para o pior. Os vendedores de testamentos passaram a vendê-los como palpites do jogo do bicho, transformando a saracura em avestruz e a mosca em borboleta. Os jogadores não lêem, mas arruínam as algibeiras. E de qualquer forma o mal continua a florescer neste baixo mundo, na literatura e fora dela, como o mais gostoso dos bens. Se nas obras populares aparecer alguma coisa de novo, com certeza teremos tolices maiores que as anteriores...
— João do Rio, no livro "A alma encantadora das ruas". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
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