© Leonid Afremov |
Só agora, depois de dois anos da tragédia de Santa Maria, após a perícia e a investigação policial, os familiares podem reaver os pertences de seus anjos da noite infernal de 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss.
Não resisti em chorar – eu que tenho uma filha de 20 anos –, quando vi na televisão que um dos pais dos 242 mortos estava procurando o sapato que faltava de sua adolescente.
– Preciso achar!
Sua filha foi puxada dos escombros e do incêndio com o pé direito descalço. Aquele pai desesperado e angustiado com a perda irreparável está obcecado em vestir pela última vez sua menina.
Aquele pai sabe o que significa o sapato para uma mulher. Sabe o quanto a filha escolheu o sapato para a balada. Sabe o quanto brigou pelo sapato, dizendo que era caro mas iria durar. Sabe o quanto ela não tiraria o sapato por nenhum motivo, para não sacrificar o charme e a elegância durante a festa.
Aquele pai encarna o conto de Cinderela ao avesso. Pretende calçar a filha para reaver a paz em si.
É o mesmo sapato de crochê que botou em seu bebê assim que nasceu. É o mesmo sapato que ensinou a amarrar quando ela tinha sete anos. É o mesmo sapato que ele pisou, desajeitado, quando dançava a valsa de debutante de sua jovem. É o mesmo sapato com que comemoraram a entrada na faculdade.
O sapato é, neste momento, todos os sapatos da vida de sua filha. O sapato que restou. O sapato sobrevivente. O sapato do qual ele nunca esquecerá o número. O sapato último, definitivo, que não poderá ser substituído por mais nenhum aniversário.
O sapato que vai equilibrá-lo no pesadelo, na oração, na dor. O sapato para colocar lembranças na lareira no Natal.
O sapato viúvo dos amores que ela não teve, órfão dos pais que ficaram.
O sapato que é uma forma enlouquecida do pai de continuar caminhando com sua filha.
O sapato sem estrada, sem futuro, andando de volta ao passado.
O sapato envernizado, de couro, ainda novo, arrancado precocemente de sua dona.
O sapato que daria para muitos verões, milhares de sóis, infinitas ladeiras.
O sapato que não se gastou, mais longevo que o destino de uma adolescente.
O sapato que é a possibilidade de segurar o chão de sua filha por mais um instante, de oferecer chão para sua filha.
O par não terminará incompleto, apesar da enorme injustiça no coração.
Entre uma montanha de bonés, colares, alianças, celulares e identidades, o pai tentará reconhecer o sapato de sua filha. E levar para casa algo salvo daquela noite.
- Fabrício Carpinejar, crônica publicada no jornal “Zero Hora”, em 9.12.2014
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