Marcelo Ariel - poemas

© Malangatana

poemas de marcelo ariel

Sobre o tempo
Ali está o tempo como coisa
que não pode ser contida
jamais ignoramos sua potência flutuante 
que a tudo limita e essências paralisa 

nenhuma razão humana 
tem o poder de evocar a força 
capaz de o transfigurar em  
benevolente eternidade. 

fora de toda palavra
em uma Paixão  
secretamente se move  
o que é  maior 
que o Tempo
Oceano onde o rio do incomunicável  
deságua  
e o infinito  
através do instante contorna. 

Ali está o Além-tempo 
essência do maravilhoso silêncio 
florescendo no espaço  
de um amor inominável 
refletido na luz do incomensurável.
- Marcelo Ariel, no livro "Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio". São Paulo: Editora Patuá, 2014.

§

Cosmogramas - Autobiografia Impessoal
 (Segundo Movimento)

Acordar exigirá
uma codificação
do estranhamento,
a linguagem entrará 
devagar em nosso campo,
Ela não é como a luz
embora igualmente
efêmera e constante,
como esse surto cósmico das manhãs
ela sequestra o ser
pedindo como resgate
o ausente sentido
para um silêncio
tão antigo.
Sendo assim
nunca termina
‘o acordar’
Porque a própria vida
não contém
suficiente espaço para
você 
despertar.
- Marcelo Ariel, no livro "Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio". São Paulo: Editora Patuá, 2014.

§

Carta para a morte
Imagino Camões, a vala onde morto estava;
O quarto onde encontraram o cadáver de João Antonio;
O sapato que Antonin Artaud segurava;
No paletó de Garcia Lorca a flor intacta;
A cama molhada de suor do último sono de Caio F.;
O prato vazio que caiu das mãos de Óssip Mandelstam;
Os círculos na água provocados pelo corpo de Paul Celan…

Devo parabenizá-la por estes momentos de uma estilística
sempre surpreendente,
somente às vezes ofuscada pelos lampejos precários desta
luz fraca que caminha nas capas…
 - Marcelo Ariel, no livro "Me enterrem com a minha AR15". São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007.

§


Marcelo Ariel - foto/retrato editado pelo autor (arquivo pessoal)
Floresta circular
coberta por um lençol de luz e tempo
visões do mar das formas
desenhadas no manto
de olhares extintos
flutuando na matéria escura
outra vez  celestes
 no cume silencioso
acima do céu
nume inacessível
 de ininteligíveis estrelas
para onde vamos
ir e retornar
subir e afundar

perdidas as grandes sensações quando o tempo era
água imóvel
como o passado
invenção da investigação
de um sonho
que dissolve espaços e tempos
e também
este, distraído e intenso

pó de luz
que foge para o sono
sendo amor
que foge para o sonho
- Marcelo Ariel de 'Gaveta de guardados'. (2015).

§

Será melhor do que o Paraíso ou Isto não é um Salmo
Ó Energia destilada do invisível
nadando em círculos no visível, sereno
o esqueleto
a visita

Ó pano do sono acordado
este sudário
chamado ' eu te amo'
deixa marcar telegráficas
no corpo,

no âmbar de tua face,
no tempo e em suas entranhas
onde miríades de chamas
cantam no corpo as cinzas da infância

e os olhos dominados 
por essa névoa
que do Nada até a Luz
sobe

'Se tens razão, usa somente o coração'
canta o arco-íris branco
dentro da mão
até que sem pele
e sem ossos
o silêncio acorde
nosso verdadeiro corpo
de sonho, horizonte e pó de ouro


Nas cidades vazias
dominadas
pelo azul-breu
um flôr ajudará a não-pensar

estes que não verão mais
com os olhos
mas através dos olhos
Te saúdam

Ó Fronteiras entre os países
dissolvidas por um beijo

Sim, José sonhou antes
com esta migração da voz
dos profetas para o centro 
de nossa leveza olvidada
ser ampliado até alcançar a compaixão
do próprio ar
servindo de escada
para  a luz
do nosso olhar

depois disso
o fim da economia
a extinção das categorias sombrias:
A guerra, o relógio e o dinheiro

Será melhor do que o Paraíso
 e no fundo do nosso ser
sempre soubemos disso
porque podemos pensar

com falso triunfo e pesar
e milagroso sorriso 
que  nenhum de nós
estará lá
- Marcelo Ariel, de 'A fusão do Um' (2014)

§

O rei da voz
Inspirado na obra homônima de Daniel Senise

A floresta fantasma
Contemplará o céu queimando.
Ninguém deixa de se matar
por causa da família.
Os cogumelos que nascem no banheiro
o gelo derretendo no Himalaia,
são como a floresta
O gelo é o rei da voz.
Cachoeiras congeladas não podem mudar nada.
O mendigo com a cabeça coberta de luz
dormindo na marquise,
será o índio extinto.
Sim, deixam de se matar
por causa da família.
O sol no Himalaia,
a chuva quente no mar
e os cogumelos no banheiro
são como o Espírito Santo.
O silêncio do corpo
das crianças baleadas é o rei da voz.
Corpos e nomes abandonados.
Hemingway termina um conto
chamado:
‘Cada isto lembra um aquilo’ com a frase :
‘ e reconheceu com tristeza que atirar não significara nada’. Hemingway & Yon Lu
Yon Lu é o rei da voz.
Existe algo em seu rosto no lugar do nada.
ligando os tempos e as frases.
‘Cai para dentro’ Dirá o mendigo bêbado com diploma
para o policial cansado.
Cair para dentro
sempre estará ali
como uma ideia do impossível.
O pombo disputando um cabeça de peixe podre
com um urubu . O voo do pombo com a cabeça no bico
é o rei da voz.
O céu queimando
Para um download das crianças mortas na floresta
é o rei da voz.
Você é o rei da voz.
- Marcelo Ariel, em "Eutomia", Recife, 10 (1), p. 551-553, dez/2012.


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Marcelo Ariel - foto/retrato editado pelo autor (arquivo pessoal)
Breve biografia
Marcelo Ariel, nasceu em Santos, em 1968 e vive em Cubatão. Poeta, performer e dramaturgo. Marcelo Ariel estreou na poesia com o livro "Me enterrem com a minha Ar-15" (Dulcinéia Catadora, edição artesanal, 2007); depois lançou os livros "Tratado dos Anjos Afogados" (Letraselvagem, 2008) e "O céu no fundo do mar" (Dulcinéia Catadora, edição artesanal, 2009). Em 2010, lançou “Coltrane Blues” (Dulcinéia Catadora, edição artesanal) e "Conversas com Emily Dickinson e outros poemas” (Editora Multifoco). Sua obra mais recente é “A morte de Herberto Helder e outros poemas”, publicado em fevereiro de 2011 pelo selo artesanal Sereia Ca(n)tadora.
Em 2011, sua obra poética foi tema do filme “Titanic World Forever – a poética de Marcelo Ariel”, uma produção do Núcleo Portátil, grupo que une pesquisas sobre Literatura, Teoria e Vídeo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), com direção de Daniel Fagundes e montagem de Pedro Paulo Rocha, filho do cineasta Glauber Rocha.
Ariel tem recebido críticas em jornais como a Folha de S. Paulo e publicado poemas em revistas literárias como a Cult. Ele mantém o blog TeatroFantasma.

Obras publicadas de Marcelo Ariel
Marcelo Ariel - foto: arquivo pessoal
:: Me enterrem com a minha AR15. São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007.
:: Tratado dos anjos afogadosCaraguatatuba: Letraselvagem, 2008.
:: O Céu no fundo do marSão Paulo: Dulcinéia Catadora, 2009.
:: Coltrane blues. São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2010.
:: Conversas com Emily Dickinson e outros poemasRio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010.
:: A segunda morte de Herberto Helder. São Paulo: Editora 21 Gramas/ selo Sereia Ca(n)tadora, 2011.
:: Teatrofantasma ou o doutor imponderável contra o onirismo groove. Edições Caiçaras, 2012.
:: Cosmogramas. Rubra Cartoneira, 2012.
:: Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio. São Paulo: Editora Patuá, 2014.

Organização

:: Pequena cartografia da poesia brasileira contemporânea. Antologia da Pausa, vol. 1. [organização Marcelo Ariel]. São Vicente SP: Edições Caiçaras, 2012.

Outros cantos/e bibliografia sobre o autor
:: Revista Zunái - Marcelo Ariel (poesia)
:: Musa Rara - Marcelo Ariel (entrevista)
:: Germina Literatura - Marcelo Ariel
:: LEITE, Silas Correa. Tratado dos Anjos Afogados, Assustador Livro de Poemas de Marcelo Ariel. (resenha). in: Para ler e pensar. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016)
:: LITERATURA. Revista literária publica Marcelo Ariel em francês. in: Artefato Cultural, 27.6.2011. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016)
Retrato do poeta Marcelo Ariel, desenho de 2016 - © Felipe Stefani
Territórios Mutantes: a poesia de Marcelo Ariel
Um universo de insólitas sensações e paisagens na poesia de Marcelo Ariel
- por Claudio Daniel*

Marcelo Ariel é um estudioso de tradições filosóficas do Oriente, como o sufismo, o budismo, o taoismo, e um leitor atento de autores considerados herméticos, como o romeno Paul Celan, o inglês William Blake e o português Herberto Helder, com quem compartilha o intenso lirismo amoroso e uma visão herética da espiritualidade, que celebra o corpo, a vida e o estar no mundo, com toda a sua beleza e crueldade.  
O autor, que vive em Cubatão, cidade industrial da Baixada Santista, pertence, cronologicamente, à chamada Geração 90, mas só começou a publicar os seus poemas em livro na década seguinte, sempre por pequenas editoras: Me enterrem com a minha AR15 saiu em 2007 pela Dulcineia Catadora, numa bem cuidada edição artesanal, e o Tratado dos anjos afogados saiu em 2008, pela Letra Selvagem. Nessas obras, o poeta retrata um duro cotidiano de chacinas, favelas incendiadas e desastres como o conhecido episódio de Vila Socó, em 1984, provocado pelo vazamento numa das tubulações da Refinaria Artur Bernardes, que destruiu 500 moradias populares e causou centenas de mortes (o número permanece desconhecido até hoje). No poema Vila Socó libertada, por exemplo, o autor escreve: “(depois do fogo) / no outro dia / (sem poesia) / as crianças (sub-hordas) / procuram no meio do desterror / botijões de gás / para vender”. Em outra composição, intitulada O soco na névoa, Marcelo Ariel, utilizando técnicas de closes, cortes e montagens da linguagem narrativa do cinema, escreve: “No jardim esquizocênico, / Nas balas perdidas, / No perfume / das granadas / explodindo no bar / das Parcas: / Num Eclipse-invertido / seguido de uma chuva fina por dentro / do olhar / da criança recém-esquecida / nesse bar-iceberg para o ‘Bateau Ivre’ no sangue / dos amantes-kamikazes” (versos publicados no livro Tratado dos anjos afogados). 

Insólitas sensações e paisagens 
O desenho ácido da violência urbana, porém, é apenas uma das facetas da obra de Marcelo Ariel. O livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (São Paulo: Patuá, 2014), cujo lançamento aconteceu em maio no espaço cultural Hussardos, reúne boa parte da produção do poeta e é uma excelente oportunidade para mergulharmos nesse universo de insólitas sensações e paisagens, construídas por um hábil artesão que sabe explorar a dimensão sonora, visual, quase tátil, das palavras, em composições como esta: “só o silêncio / intocado o enobrece, / mas não / queda-silêncio-esquecimento / do lugar-esquife, / ou queda-silêncio-equívoco / apenas / queda-símbolo / para o alto-fundo-horizonte-escuro / de seu Letes” (Sobre a morte de Paul Celan). O uso dos travessões e dos cortes sintáticos, além da estranheza com que revestem o discurso, confere agilidade ao ritmo prosódico das linhas e cria ideias pela inusitada associação de termos (lugar-esquife, queda-silêncio-equívoco). O poeta não deseja apenas despertar uma planejada reação emocional ou sensorial no leitor, à maneira de Álvaro de Campos, mas também convidá-lo à reflexão, à cumplicidade intelectual capaz de reconstruir o poema, descortinando outras possibilidades de leitura e interpretação. 
Marcelo Ariel - foto/retrato editado pelo autor (arquivo pessoal)
As imagens poéticas de Marcelo Ariel são altamente sugestivas, aproximando-se tanto da tradição barroca quanto do simbolismo e do surrealismo – relidos pelo poeta de maneira livre, pessoal e instigante. Na composição intitulada No ultrassonho, por exemplo, o autor diz: “Estamos dentro de um açougue chamado corpo / de um aquário chamado mesa ou cérebro tocando o ar nas árvores / através de um copo até tocar esse osso do oceano em nosso olhar”. Fazendo um paralelo entre a linguagem poética de Marcelo Ariel e a de Herberto Helder, Claudio Willer observa: “Em comum com o extraordinário poeta português, a fusão ou hibridação de objetos e seres vivos, a ruptura de limites das coisas e dos corpos, as imagens luminosas como ‘osso do oceano’”. A experimentação de Marcelo Ariel, porém, não se limita a um único campo de pesquisa: sempre em busca de outras possibilidades para a comunicação poética, o autor investe em peças de alta concentração semântica (“Mãos de ninguém / Professam uma delicadeza / Suprema, / não existir / é para / o intocado / como lágrimas / que jorram em sonhos / sem existir / podem sorrir”), em longos poemas narrativos (Cosmogramas – Autobiografia impessoal) e inventos de prosa poética que dissolvem as fronteiras entre os gêneros (“, agora sou tudo, tudo o que explode, tudo o que racha, tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede, sim, existe toda uma constelação de diferentes sedes dentro do corpo”, lemos na composição Salve infinito ou A morte de Clarice Lispector).  
O misticismo profano de Marcelo Ariel não reconhece fronteiras entre homem e mundo, natureza e artifício, vida e linguagem: a síntese das dicotomias está presente em diversas composições do livro, entre elas um curiosíssimo poema em prosa intitulado No ex-Brasil (Xingu interior destroçado): 
Sim, até as próprias fontes e o arvoredo te chamavam através da ‘Voz de Ninguém’ em Rútilo Perigeu vagavam Mônadas em pó que escapavam dos ossos do evento invisível Brazyl flutuando em volta como um Ex-Algo em Tempos filtrados jamais reencontrados, espaços fantasmas onde outrora um fio ecoava sua aura se expandindo no olhar sem limite, no Sol aberto como um zero infinito como o da Mesopotâmia, gravada pelo fio-Hubble lendo a árvore.  
O engenho inventivo do poeta alia-se a uma ética de solidariedade que desconsidera dimensões temporais, geográficas ou culturais, aproximando-se de uma erótica miscigenada, proclive às fantasias neobarrosas de Nestor Perlongher. O parque do Xingu torna-se ao mesmo tempo metáfora e metonímia, índice de uma comunidade massacrada e de um território subjetivo, não menos doloroso; o próprio Brazyl, deformado pela grafia, sinaliza uma ideia deformada de nação, responsável por tantas tragédias, iniciadas com o genocídio indígena e que permanece, nos dias de hoje, nas matanças que acontecem nas periferias dos grandes centros urbanos, atingindo especialmente os afrodescendentes. Pouquíssimos poetas são capazes de construir um discurso crítico da realidade com tamanha expressividade e terrível beleza. 
:: Fonte: Portal Vermelho
Claudio Daniel é poeta, professor de Literatura Portuguesa na UNIP, colunista da CULT e editor da revista Zunái.


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