Réquiem para García Lorca

Federico García Lorca, by Emily Tarleton

"Só o mistério nos faz viver. Só o mistério”
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“Solo el misterio nos hace vivir. Solo el misterio" 
- García Lorca, no "Romancero Gitano", em 'Obra poética completa. Federico García Lorca'. [tradução, seleção e apresentação de William Agel de Melo]. Edição bilíngue. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo | Brasília: Editora UnB, 2004

réquiem de vinicius de moraes em 
                                homenagem ao poeta garcía lorca

Morte de um pássaro
             (Réquiem para Federico García Lorca) 

Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliqüescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. Aquela madrugada que raiava para presenciar sua morte, não tinha sido ela sempre a sua grande amiga? Não ficara ela tantas vezes a escutar suas canções de silêncio? Por que o haviam arrancado a seu sono povoado de aves brancas e feito marchar em meio a outros homens de barba rude e olhar escuro? 

Pensou em fugir, em correr doidamente para a aurora, em bater asas inexistentes até voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caçadores maus que o confundiam com o milhafre, ele cuja única missão era cantar a beleza das coisas naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro inocente, em cuja voz havia ritmos de dança. 

Mas permaneceu em sua atonia, sem acreditar bem que aquilo tudo estivesse acontecendo. Era, por certo, um mal-entendido. Dentro em pouco chegaria a ordem para soltá-lo, e aqueles mesmos homens que o miravam com ruim catadura chegariam até ele rindo risos francos e, de braços dados, iriam todos beber manzanilla numa tasca qualquer, e cantariam canções de cante-hondo até que a noite viesse recolher seus corpos bêbados em sua negra, maternal mantilha. 

As ordens, no entanto, foram rápidas. O grupo foi levado, a coronhadas e empurrões, até a vala comum aberta, e os nodosos pescoços penderam no desalento final. Lábios partiram-se em adeuses, murmurando marias e consuelos. Só sua cabeça movia-se para todos os lados, num movimento de busca e negação, como a do pássaro frágil na mão do armadilheiro impiedoso. O sangue cantava-lhe aos ouvidos, o sangue que fora a seiva mais viva de sua poesia, o sangue que tinha visto e que não quisera ver, o sangue de sua Espanha louca e lúcida, o sangue das paixões desencadeadas, o sangue de Ignácio Sánchez Mejías, o sangue das bodas de sangre, o sangue dos homens que morrem para que nasça um mundo sem violência. Por um segundo passou-lhe a visão de seus amigos distantes. Alberti, Neruda, Manolo Ortiz, Bergamín, Delia, María Rosa - e a minha própria visão, a do poeta brasileiro que teria sido como um irmão seu e que dele viria a receber o legado de todos esses amigos exemplares, e que com ele teria passado noites a tocar guitarra, a se trocarem canções pungentes. 

Sim, teve medo. E quem, em seu lugar, não o teria? Ele não nascera para morrer assim, para morrer antes de sua própria morte. Nascera para a vida e suas dádivas mais ardentes, num mundo de poesia e música, configurado na face da mulher, na face do amigo e na face do povo. Se tivesse tido tempo de correr pela campina, seu corpo de poeta-pássaro ter-se-ia certamente libertado das contingências físicas e alçado vôo para os espaços além; pois tal era sua ânsia de viver para poder cantar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o amor, o grande amor que era nele sentimento de permanência e sensação de eternidade. 

Mas foram apenas outros pássaros, seus irmãos, que voaram assustados dentro da luz da antemanhã, quando os tiros do pelotão de morte soaram no silêncio da madrugada.
- Vinicius de Moraes, em "Poemas esparsos". [organização Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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:: Leia AQUI outros poemas dedicados a García Lorca por poetas brasileiros.

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Face of Garcia Lorca in the Form of a Fruit Dish with Three Figs, 1938 - by Salvador Daly
Há 80 anos, Federico García Lorca era assassinado por fascistas
- por Luiz Zanin Oricchio/AE
Dia 19 de agosto de 1936, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca foi assassinado pelas falanges fascistas. As circunstâncias precisas de sua morte continuam envoltas em mistério. Tanto assim que um inquérito acaba de ser aberto pela juíza María Romilda de Cubria, que faz anos investiga violações dos Direitos Humanos na Espanha durante o franquismo.
A investigação coincide com os 80 anos de morte do poeta e também com a descoberta de novos documentos que podem esclarecer as circunstâncias em que foi executado e o local onde repousam seus restos. Um informe da chefatura de polícia de Granada fornece dados oficiais do franquismo às circunstâncias de sua prisão e assassinato. De acordo com o documento, ele era acusado de ser "socialista e maçom", além de dado a "práticas de homossexualismo, aberração que chegou a ser vox populi (de conhecimento geral)". Lorca teria sido detido, conduzido ao calabouço e, na madrugada do 19, levado de automóvel até um local chamado Fuente Grande, onde foi "passado pelas armas", junto a um professor desconhecido e dois anarquistas. Tinha então 38 anos.
Homenaje a Federico García Lorca, by Susana Pannullo
Esse tipo de investigação não é muito bem-vindo numa Espanha que, após 40 anos de ditadura fascista, se redemocratizou e procura olhar para o futuro, colocando uma pedra de silêncio sobre o passado. Passa-se o mesmo em outros países. Ruy Barbosa propôs queimar os documentos relativos à escravidão. Os crimes da ditadura militar de 1964-1985 continuam impunes para não "reabrir velhas feridas".
O silêncio sobre sua morte não impediu que a obra de García Lorca fosse das mais celebradas ao longo do século 20 e assim continua até hoje. Nascido em Fuente Vaqueros, Província de Granada, em 5 de junho de 1898, Lorca participou de um grupo de poetas conhecido como "geração de 27", do qual faziam parte nomes como Jorge Guillén e Rafael Alberti. Foi amigo do cineasta Luis Buñuel e do pintor Salvador Dalí, que conheceu em Madri.
Andaluz, Lorca não poderia deixar de se influenciar pela rica cultura da região. Ela está na origem de uma de suas obras maiores, o Romancero Gitano. No entanto, com o sucesso rápido, Lorca viu-se preso ao rótulo de "costumbrista", que poderíamos traduzir como "folclórico". Seria alguém profundamente ligado às coisas da terra, aos costumes e às artes populares. Em seu caso ao folclore andaluz, sem visão do universal. Isso o incomodava. Dizia que os ciganos eram apenas um tema, e poderia escrever sobre outros. Não queria ser aprisionado em etiquetas e sua ampla cultura o empurrava mais para o universalismo. Decidiu viajar para os Estados Unidos e viver algum tempo por lá. O livro Poeta em Nova York foi publicado apenas após sua morte.
O fato é que sua obra sempre viajou bem - e não apenas com passaporte do idioma espanhol. O que não teria acontecido caso fosse autor apenas regional. Se o rótulo o incomodava, hoje a questão regional x internacional parece mais bem resolvida, na definição simplificada que passa pela fórmula de Tolstoi: para ser universal o artista deve falar de sua aldeia. Além do mais, a espetacular arte cigana não deixa ninguém indiferente, menos ainda um andaluz como Lorca. Culto e de horizontes amplos, tomava esses ricos elementos gitanos como pontos de partida para uma arte de reverberação universal. Por exemplo, na oposição inconciliável entre o modo de ser cigano e o da sociedade burguesa, o que empresta a essa poesia uma tonalidade política.
Suas peças gozam de prestígio idêntico - e talvez até maior - que sua poesia. Bodas de Sangue (1933), Yerma (1934) e A Casa de Bernarda Alba (1936) estão entre os textos mais encenados de todo o mundo. E também filmados. Bodas de Sangue deu origem a dois filmes homônimos, de Edmundo Guibourg, em 1938, e de Carlos Saura, em 1981. O mesmo para Casa de Bernarda Alba (Mario Camus, 182) e Yerma (Pilar Távora, 1998). Ano passado, a cineasta Paula Ortiz fez uma versão livre de Bodas de Sangue intitulada La Novia, com a bela Inma Cuesta no papel principal.
Após 80 anos, Lorca continua vivo em sua obra. Ignora-se o nome de quem o assassinou.
:: Fonte: JCnet (18.8.2016)

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