São Marcos - João Guimarães Rosa

Sertão, foto: Marcelo Toledo

São Marcos

Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e mm acreditava em feiticeiros.
E o contra-senso mais avultava, porque, já então — e excluí da quanta coisa-e-sousa de nós todos lá, e outras cismas corriqueiras tais: sal derramado; padre viajando com a gente no trem; não falar em raio: quando muito, e se o tempo estábom, “faísca”; nem dizer lepra; só o “mal”; passo de entrada com o pé esquerdo; ave do pescoço pelado; risada renga de suindara; cachorro, bode e galo, pretos; e, no principal, mulher feiosa, encontro sobre todos fatídico; — porque, já então, como ia dizendo, eu poderia confessar, num recenseio aproximado: doze tabus de não-uso próprio; oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte péssimos presságios; dezesseis casos de batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou seis indicações de ritual mais complicado; total: setenta e dois — noves fora, nada.
Além do falado, trazia comigo uma fórmula gráfica: treze consoantes alternadas com treze pontos, traslado feito em meia. noite de sexta-feira da Paixão, que garantia invulnerabilidade a picadas de ofidios: mesmo de uma cascavel em jejum, pisada na ladeira da antecauda, ou de uma jararaca-papuda, a correr mato em caça urgente. Dou de sério que não mandara confeccionar com o papelucho o escapulário em baeta vermelha, porque isso seria humilhante; usava-o dobrado, na carteira. Sem ele, porém, não me aventuraria jamais sob os cipós ou entre as moitas, E só hoje é que realizo que eu era assim o pior-de-todos, mesmo do que o Saturnino Pingapinga, capiau que — a história é antiga — errou de porta, dormiu com uma mulher que não era a sua, e se curou de um mal-de-engasgo, trazendo a receita médica no bolso, só porque não tinha dinheiro para a mandar aviar.
Mas, feiticeiros, não. E me ria dessa gente toda do mau milagre: de Nhá Tolentina, que estava ficando rica de vender no arraial pastéis de carne mexida com ossos de mão de anjinho; dos vinténs enterrados juntamente com mechas de cabelo, em frente das casas; do sapo com uma hóstia consagrada na boca, e a boca costurada para ele não cuspir fora a partícula, e depois batizado em pia de igreja, e, mais, polvilhado de terra de cemitério, e, ainda, pancada nele sapo até meio morrer, para ser escondido finalmente no telhado de um sujeito; e do João Mangolô velho de-guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai, remanescente do “ano da fumaça”, liturgista ilegal e orixá-pai de to dos os metapsíquicos por-perto, da serra e da grota, e mestre em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro moído, vuduísmo, amarramento e desamarração.
Bem... Bem que Sá Nhá Rita Preta cozinheira não cansava de me dizer: — Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!
E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se ria, acho que achando mesmo graça em mim.
Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sá Nhá Rita Preta minha criada era este: “...e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um grito horrorendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana, nem ferroada de marimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver... Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio?!
Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, nem emplastro de folha de fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanfor! ... Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, para pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga de cera, que tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite:
“Estou fazendo fulana? Estou fazendo fulana!..”, e depois, com a agulha: “Estou espetando fulana? Estou espetando fulana!..”
Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito. O mestre dava muito coque, e batia de régua, também; Deolindinho, de dez anos, inventou a revolta e ele era mesmo um gênio, porque o sistema foi original, peça por peça mente seu: “Cada um fecha os olhos e apanha uma folha no bamburral !“ Pronto. “Agora, cada um verte água dentro da lata com as folhas!” Feito. “Agora, algum vai esconder a coisa debaixo da cama de Seu Professor! ..
E foi a lata ir para debaixo da cama, e o professor para cima da cama, e da lata, e das folhas, e do resto, muito doente. Quase morreu: só não o conseguiu porque, não tendo os garotos sabido escolher um veículo inodoro, o bizarro composto, ao fim dia e meio, denunciou-se por si.
Bem, ainda na data do que vai vir, e já eu de chapéu postO Sá Nhá Rita Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do paletó (“Coso a roupa e não coso o corpo coso um molambo que está roto...”), recomendou-me que não enjerizasse o Mangolô.
Bobagens! No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul gláceo, emborcado; só na barra sul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de coco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido — um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer.
E eu levava boa matalotagem, na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda pesava e empaIhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambui a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho, no concurso de salto-à  vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do jaburu acro megáli e para rir-me, à glória das aranhas-d’água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.
Cachorro não é meu sócio. E nem! Com o programa, só iria servir para estorvar, puxando-me para o caminho de sua roça. Porque todos eles são mesmeiros despóticos: um cotó paqueiro pensa que no mundo só existem pacas, quando muito também tatus, cotias, capivaras, lontras; o veadeiro não sabe de coisa que não os esguios suaçus das caatingas; e o perdigueiro desdenha o mundo implume, e mesmo tudo o que não for galináceo, fé do seu faro e gosto. Uma vez, no começo, trouxe comigo um desses ativistas orelhudos, de nariz destamanho. Não dei nem tiro, e ele estranhava, subindo para mim longos olhares de censura. Desprezou-me, sei; e eu me vexei e quase cedi. Nunca mais!
Mas, como eu contava ainda há pouco, eram sete horas, e eu ia indo pela estrada, com espingarda, matula, manhã bonita e tudo. Tão gostosos a claridade e o ar — morno cá fora, fresco nas narinas e feliz lá dentro que eu ia do mais esquecido, tropica-e-cai levanta-e-sai, e levei um choque, quando grita ram, bem por detrasinho de mim: — ‘Guenta o relance, Izé!...
Estremeci e me voltei, porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era com outro Zé, Zê-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava em cima dos saltos arqueados de um pangaré neurastênico.
Justo no momento, o cavalicoque cobreou com o lombo, e, Com um jeito de rins e depois um desjeito, deu com o meu homônimo no chão.
Mas isso não tinha maior importância, porque, mais poucos passos, e eu adotava um trilho afluente, muito batido e de chão limpo, mas estreito, porque vinha numerosa gente à consulta, mas sempre um só ou dois de cada vez. A casa do Mangolô ficava logo depois.
Havia um relaxamento no aramado da cerca, bem ao lado da tranqueira de varas, porque o povo preferia se abaixar e passar entre os fios; e a tranqueira deixara de ter maior serventia, e os bons-dias trepavam-lhe os paus, neles se enroscando e deflagrando em campânulas variegadas, branco e púrpura.
A cafua — taipa e colmo, picumã e pau-a-pique — estava lá, bem na linha de queda da macaúba. Linha teérica, virtual, mas, um dia... Porque a sombra do coqueiro, mesmo sem ser hora das sombras ficarem compridas, divide ao meio o sapé do teto; e a árvore cresce um metro por ano; e os feiticeiros sem pre acabam mal; e um dia o pau cai, que não sempre...
Hora de missa, não havia pessoa esperando audiência, e João Mangolô, que estava á porta, como de sempre sorriu para mim Preto; pixaim alto, branco amarelado; banguela; horrendo.
— O Mangolô!
— Senh’us’Cristo, Sinhô!
— Pensei que você era uma cabiúna de queimada...
— Isso é graça de Sinhô...
— Com um balaio de rama de mocó, por cima!... Ixe!
— Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro...”
— Ôi, ôi!...
— “Segundo: todo negro é vagabundo.”
— Virgem!
— “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”
Aí, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo á cocleia, e ainda bateu com a porta.
— Ô Mangolô!: “Negro na festa, pau na testa!...”
E fui, passando perto do chiqueiro — mais uma manga, de tão vasto, com seis capadões super-acolchoados, cegos de gordura, espapaçados, grunhindo, comodistas e educados malissimamente. Comer, comer, comem de tudo: até cobra pois nem presa de surucucu-tapete não é capaz de transfixar lhes os toucinhos. Mas, á meia-noite, não convém a gente entrar aqui, porque todo porco nessa hora vira fera, e até fica querendo sair para estraçalhar o dono ou outro qualquer cidadão.
No final do feijoal, a variante se bifurca; tomo o carreador da direita. Dos dois lados, abrem-se os gravatás, como aranhas de espinhentas patorras; mas traçam arcos melodiosos e se enfeitam de flores céu-azul.
Escuto o bater de alpercatas. E o Aurísio Manquitola.
— Você vem vindo do Mangolô, hein Aurísio?
— Tesconjuro!... ‘Tou vindo mas é da missa. Não gosto de urubu... Se gostasse, pegava de anzol, e andava com uma penca debaixo do sovaco!...
Aurísio é um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta.
— Mas você tem medo dele...
— Há-de-o!... Agora, abusar e arrastar mala, não faço. Não faço, porque não paga a pena...
De primeiro, quando eu era moço, isso sim!... Já fui gente!, gente. Para ganhar aposta, já fui, de noite, foras d’hora, em cemitério... Acontecer, nunca me aconteceu nada; mas essas coisas são assim para rapaz. Quando a gente é novo, gosta de fazer bonito, gosta de se comparecer. Hoje, não: estou percurando é sossego... O senhor servido em comer uma laranjada-china?
E Aurísio Manquitola, que está com a capanga cheia delas, tira uma, corta a tampa, passando a fruta no gume da foice, aplica uma pranchada no fundo da sobredita, “para amolecer e dar o caldo”, e chupa, sem cascar — Boa coisa é uma foice, hein Aurísio? Serve para tudo...Agora, para tirar bicho-de-pé, serve não. Ou será que serve?.. Não caçoa! Boa mesmo!... Eu cá não largo a minha. Arma de fogo viaja a mão da gente longe, mas cada garrucha tem seu nome com sua moda... Faca já é mais melhor, porque toda faca se chama catarina. Mas, foice?!: é arma de sustância — só faz conta de somar! Para foice não tem nem reza, moço...
— Nem as “sete ave-marias retornadas”? Nem “São Marcos”? E comecei a recitar a oração sesga, milagrosa e proibida: — “Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo-Mau, seu e meu companheiro...”
— Ui! — Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim, se persignando, e gritou:
— Pára, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que é que está bulindo!... E melhor esquecer as palavras... Não benze pólvora com tição de fogo! Não brinca de fazer cócega debaixo de saia de mulher séria! ...
— Bem, Aurísio... Não sabia que era assim tão grave. Me ensinaram e eu guardei, porque achei engraçado...
— Engraçado?! É um perigo!... Para fazer bom efeito, tem que ser rezada à meia-noite, com um prato-fundo cheio de cachaça e uma faca nova em folha, que a gente espeta em tábua de mesa...
— Na passagem em que se invoca o nome do caboclo Gonzazabim Índico?
— Não fala, seu moço!... Só por a gente saber de cor, ela já dá muita desordem. O senhor, que é homem estinctado, de alta categoria e alta fé, não acredita em mão sem dedos, mas...
Diz-se que um homem... Bom, o senhor conheceu o Gestal da Gaita, não conheceu? Figa faço que ele sabia a tal e rezava quando queria... Um dia, meu compadre Silivério, das Araras, teve de pernoitar com ele, no Viriato... Puseram os dois juntos, no quarto-da-sala...
Compadre Silivério me contou: galo canta, passa hora, e nem que ele não podia segurar um sono mais explicado, por causa que o parceiro se mexia dormindo e falava enrolado, que meu compadre nem pela rama não entendeu coisa nenhuma.
— Eu sei, Aurísio:
“Da meia-noite p’r’o dia,
meu chapéu virou bacia...”
— O senhor vá escutando: o que houve foi que o meu com padre Silivério, que já estava meio arisco, dormindo com um olho só e outro não, viu o cabra vir para ele, de faca rompente, rosnando conversa em língua estranja... Foi o tempo de meu compadre Silivério destorcer da caxerenguengue e pular fora do jirau: ainda viu o outro subindo parede arriba, de pé em-pé! Aí, o homem acordou, quando bateu com a cabeça nos caibros, parece-que, e despencou de lá, estrondando... Fez um galo na creca, por prova, mas negou e negou que tinha subido em pa rede, perguntando ao meu compadre se ele não era que não sofria de pesadelo... Ara! ara! Para ver gente sonhar nesse esquerdo, ah eu fora de lá!...
— Medonho, Aurísio!
— Pois não foi?!... E o Tião Tranjão?Aquele meio leso, groteiro do Cala-a-Boca, que vem vender peixe-de-rio no arraial, em véspera de semana-santa... Está lembrado? Ele andou morando de-amigado com uma mulherzinha do Timbó, criatura feia e sem graça em si como nenhuma... Pois não é que achou gente ainda mais boba do que o Tião, para querer gostar dela na imoralidade?! O Cypriano, aquele carapina velho velhoso... Os dois começaram a desonrar o coió, e por amor de ficar sozinhos no bem-bom inventaram um embondo — eu acho que foram eles que tinha sido o hão quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de quem... O pobre do Tião não sabia nem da falta de pouca-vergonha da mulher, nem de paulada em turco, nem de coisa nenhuma desta vida: só sabe até hoje é pescar, e nem isso ele não é capaz de fazer direito por si sozinho: é homem só de cercar pari no trecho estreito do rio, armar jiqui na saída de poço, e soltar catueira de oito anzóis na lagoa, para biscate de pegar os peixes mais tolos de todos...
— Dou dado!
— É mesmo. E aí foi que o Gestal da Gaita, que é sem preceito e ferrabrás, mas tem bom coração, vendo que o coitado do Tião estava mesmo filho sem pai, ficou com dó e quis ensinar a reza, para ajuda de ele ter alguma valença nos apertos. Pois foi um custo, O Tião trocava as palavras, errava, atrapalhava a brasa; nome entrava por aqui e saía por aqui; tossia e não repetia.
...Então, primeiro, o Gestal da Gaita, que nesse dia estava de veneta de ter paciência, disse assim:
— “Já sei como é que a gente põe escola para papagaio velho: bebe este copo de cachaça, todo!... Pronto. Vamos debanda...” — E foi cantando a lição a eito, começada do começo.
Mas melhor não foi, com a burrice do Tião.
...Aí o Gestal da Gaita assoou o nariz e xingou a mãe de alguém: — “Pois então, eu, só por fazer uma caridade, estou pelejando para te escorar em cima dos dois pés, e tu ou tem cera 0os ouvidos ou essa cabeça é de galinha?!... Ao desta viagem, ou tu guarda o milho no paiol ou eu te soletro uma coça mestra, com sola de anta; e aí tu aprende ou fala por que é que não aprende!
....E foi mesmo: por fim o Gestal da Gaita deu ar ao chicote, com mão dona, e o pobre do Tião Tranjão corria no contrapasso, seguro pela fralda da camisa, gritando mesa com teresa e querendo até enfiar a cabeça em cano de calça dos passantes... E foi o que prestou para clarear a ideia lá dele, paz que ele aí decorou tudo, num átimo, tintim por tintim!
... E deu na conta: na hora em que o soldado chegou, Tião Tranjão, que sempre tinha tido um medo magro dos praças, foi perguntando, de pé atrás e fazendo ventania com o porrete: — “Com ordem de quem?!”..
— “Com ordem de autoridade de seu Sebastião cio Adriano, subdelegado de polícia lá no arraial e aqui também!”
— “Já sei, já sei! Volta p’ra trás! Volta p’ra trás, que eu vou sozinho, e é amanhã que eu vou. Falando manso, eu entendo; mas, por mal, vocês não me levam, e com soldado apertado é que eu não ando mesmo não!...”
Coisa que ele tinha quebrado o chapéu-de-palha na testa, e cuspiu para uma banda, porque estava mesmo dando para ma ludo, com as farrombas todas, mascarado de valentão. Mas o soldado logo viu que o assunto melhor era encabrestar e puxar O bobo pela ponta da bobice mesma. E falou assim:
— “Seu Tião Tranjão, o senhor tem sua razão particular, toda, porque é homem de brio; mas eu também tenho a minha, porque estou cumprindo dever de lei. Mas, onde está o homem, não morre homem!... E gente valente como nós dois i vemos de ser amigos!... O mais certo é a gente ir pedir opinião ao seu Antonino, que é seu patrão e seu padrinho, e o que ele aconselhar nós vamos fazer.”
...Tião Tranjão ficou batendo com o pé na poeira, até que encheu e respondeu: — “Pois se o senhor acha mesmo que eu sou par p’ra outro, vamos lá. O que Padrinho Antonino disser, ‘ta dissido!”
...Aí seu Antonino falou na fé do falado, pelo direito, e mau-dou o Tião se entregar preso...
— Aurísio interrompe a história, para colher e mastigar uma folha cheirã da erva-cidreira que sobe em tufos na beira da estrada. (— Para desinfetar! — diz.) Depois continua: — Diz-se que, lá na cadeia do arraial, os soldados fizeram graça... Diz-se quê, não! me arrependo: eles fazem mesmo, sei, porque também já estive lá, sem ter culpa de crime nenhum, bem entendido; e eles, na hora em que eu cheguei, foram me perguntando: — “Você matou? Ah, não matou não? Que pena! ... Se tivesse matado, ia ficar morando aqui com a gente!...”
....Bom, eles trancaram o Tião. De certo que eles bateram também no Tião. Mas, e depois?
seu moço?!...
...Ele deve de ter rezado a reza à meia-noite, da feição que o diabo pede, o senhor não acha?
Pois, do contrário, me conte: quem foi que deu fuga ao preso, das grades, e carregou o cujO
de volta para casa — quatro léguas — , que, de-madrugadinha - estava ele chegando lá, e depois na casa do outro, e entrando guerreiro e fazendo o pau desdar, na mulher, no carapina, nos trastes, nas panelas, em tudo quanto há...?! Entrou até embaixo de cama, para quebrar a vasilha!... E: olhe aqui: quando ele tinha chegado, caçou uma alavanca para abrir a porta, com cautela de economia, por não estragar... Pois, no fim da festa, acabou desmanchando a casa quase toda, no que era de recheio...
...Foi precisão de umas dez pessoas, para sujeitar o Tião, e se a gente não tonteasse o pobre... Bem, seu moço, se o senhor vai torar dessa banda de lá, nós temos de se desapartar, que o meu rumo é este aqui. Bom, até outro dia. Deus adiante, paz na guia!...
E o Aurísio Manquitola, se entranhando no mata-pasto e na maria-preta, some.
O meu caminho desce, contornando as moitas de assa- peixe e do unha-de-boi — esplêndido, com flores de imensas pétalas brancas, e folhas hirsutas, refulgindo. No chão, o joá-bravo de fende, com excesso de espinhos, seus reles amarelos frutos. E, de vez em quando, há uma sumauveira na puberdade, reta de esteio fino e cobertura convexa, pintalgada de flores rubras, como um pára-sol de praia.
Entro na capoeira baixa... Saio do capoeirão alto. E acolá, em paliçadas compactas, formando arruamentos, arborescem os bambus.
Os bambus! Belos, como um mar suspenso, ondulado e parado. Lindos até nas folhas lanceoladas, nas espiguetas peludas, nas oblongas glumas... Muito poéticos e muito asiáticos, rumorejantes aos vôos do vento.
Bem perto que está o bosquete, e eu me entorto de curiosidade; mas vai ser a última etapa: apenas na hora de ir-me embora é que passarei para ver os meus bambus. Meus? Nossos...
Porque eles são a base de uma sub-estória, ainda incompleta.
Foi quase logo que eu cheguei no Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambus.
Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó: 
“Teus olho tão singular 
Dessas trançinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa marieta.”

E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:

Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib.
E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais co mas riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios d. ouro. Só, só por causa dos nomes.
Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante de um gravatá, seiva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amor-meuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade!
na direção da altura?
E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. que o capiauzinho analfabeto Matutino Solferino Roberto da Silva existe, e, quando chega na bitácula, impõe: — “Me dá dez ‘tões de biscoito de talxóts!” — porque deseja mercadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitão plebeu deve ser termo deturpado. E que a gíria pede sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cometas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bidimensional, por meio de ensinar-lhes estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopopese, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo (“Ara, todo o mundo entende.. .“) e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, “que tinham muito mais latim”... E que a frase “Sub lege libertas!”, proferida em comício de cidade grande, pôde abafar um motim potente, iminente. E que o menino Francisquinho levou susto e chorou, um dia, com medo da toada “patranha” — que ele repetira, alto, quinze ou doze vezes, por brincadeira boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara a ser selvagem. E que o comando “Abre-te Sésamo etc.” fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambu.
Até aí, tudo em paz. Deu de ser, porém, que, no domingo seguinte, quando retornei ao bambual, vi que o outro (Quem será? — pensei), vi que o outro poeta antes de mim lá voltara. Cataplasma! E garatujara ele, sob o meu poema dos velhos reis de alabastro: língua de turco rabatacho dos infernos.
Mas também aceitara o floral desafio, já usando certeza e lápis, comigo igual, dessa feita:

Na viola do urubu
o sapo chegou no céu.
Quando pego na viola
o céu fica sendo meu.
O trovador se esmerara. Ou seria outro, um terceiro? Pouco vale: para mim, fica sendo um só: “Quem será”. E “Quem-Será” ficou sendo o meu melhor amigo, aqui no Calango-Frito.
Mj.... não tive dúvida; o mato era um menino dador de brinquedos e fiz: Tempo de festa no céu,
Deus pintou o surucuá:
com tinta azul e vermelha,
verde, cinzenta e lilá.
Porta de c não se fecha:
surucuá fugiu pra cá.
E mais, por haver lugar:
Tem o teu e tem o meu
tem canhota e tem direita,
tem a terra e tem o céu —
escolha deve ser feita! 
Eu mesmo não gostei. Mas a minha poesia viajara muito e agora estava bem depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso me perturbou; escrevi: Ou a perfeição, ou a pândega!
E esperei. No domingo imediato, encontrei no bambu contíguo, que no primeiro não mais havia internúdio útil, a matéria-prima destes versos: Chegando na encruzilhada
eu tive de resolver:
para a esquerda fui, contigo.
Coração soube escolher!
O tema se esgotara, com derrota minha e o triunfo de “Quem-Será”. Me vinguei, lapisando outra qualquer quadra, começo de outro assunto. E nesse caminho estamos.
Não mais avisto os bambus. Agora apanho outra vez a estrada-mestra, que, enquanto isto tudo, contornou o saco-de-serra, esbanjando chão numa volta quilometrosa, somente para aproveitar a ponte grande e para passar no pé da porta da casa da fazenda do Seu Coronel Modestino Siqueira. Aqui ela é largo e longo socalco, talhado em tabatinga. E, do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é “pau dereito”; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacaaís novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se onça em tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crusta do dorso de um caimão.
E, nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas, que lembram bichos do mar rúseo-maculados, e roxos, e ambarinos — ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.
Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo espirais constrictas. De perto, na tectura sóbria - só três ou quatro esgalhos as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato.
Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá embaixo, as águas das Três-Águas.
Três? Muitas mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços, e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. :
E as superficies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabuas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquaraçus. Outras imbaúhas, mui tupis. E o buritizal: renques, aleias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando fiabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas: buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.
Agora, outro trilho, e desço, pisando a humilde guaxima. Duas árvores adiantadas, sentinelas: um cangalheiro, de copa trapezoidal, retaca; e uma cajazeira que oscila os brônquios verdes no alto das forquilhas superpostas. Transponho um tracto de pântano.
Conheço três sendas dedalinas, que atravessam tremedal, ora em linguetas no chão mole, ora em largas praças aterradas. Escolhi a trilha B.
Porque não é a esmo que se vem fazer uma visita: aqui, onde cada lugar tem indicação e nome, conforme o tempo que faz e o estado de alma do crente.
Hoje, vamos, primeiro, às Rendas da Yara, para escutar de próximo os sete rumores do riacho, que desliza em ebulição. Perto, no fresco da relva, na sombra da selva, no úmido dos minadouros que cantam, dormem as avencas de folhagem minuciosa: a avenca-dourada, recurvando em torno ao espique as folhas-centopeias; e o avencão-peludo, que jamais se molha, mesmo sob os respingos. Muitos musgos cloríneos. A delicadeza das samambaias. E os velhos samambaiuçus.
Aqui, convém: meditar sobre as belezas da castidade, reconhecer a precariedade dos gozos da matéria, e ler a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda e da mágica espada Excalibur.
Mas não posso demorar. A frialdade do recanto é de gripar um cristão facilmente, e também paira no ar finíssima poeira de lapidação de esmeraldas, que deve ser asmatizante.
Agora vamos retroceder, para as três clareiras, com suas respectivas árvores tutelares; porque, em cada aberta do mato, há uma dona destacada, e creio mesmo que é por falta de sua licença que os outros paus ali não ousam medrar.
Primeiro, o “Venusberg” — onde impera a perpendicularidade excessiva de um jequitibá-
vermelho, empenujado de liquens e roliço de fuste, que vai liso até vinte metros de altitude, para então reunir, em raqueta melhor que em guarda-chuva, os Seus quadrangulares ramos.
Tudo aqui manda pecar e peca — desde a ciganado-mato e a mucuna, cipós libidinosos, de flores poliandras, até os cogumelos cinzentos, de aspirações mui ter renas, e a erótica catuaba, cujas folhas, por mais amarrotadas que Sejam, sempre voltam, bruscas, a se retesar. Vou indo, vou indo, porque tenho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a Pan.
Um claro mais vasto, presidido pelo monumento da colher-de-vaqueiro, faraônica, que mantém à distância cinco cambarás ruivos, magros escravos, obcônicos, e outro camba maior, que também vem afinando de cima para baixo. Puro Egito. Passo adiante.
Agora, sim! Chegamos ao sancto-dos-sanctos das Águas. A suinã, grossa, com poucos espinhos, marca o meio da clareira. Muito mel, muita bojuí, jati, uruçu, e toda raça de abelhas e vespas, esvoaçando; e formigas, muitas formigas marinhando tronco acima. A sombra é farta. E há os ramos, que trepam por outros ramos. E as flores rubras, em cachos extremos— vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os olhos, escaldantes de vermelhas, cor de guelras de traíra, de sangue de ave, de boca e bâton.
Todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e não-humanos, tão repousantes! Mesmo o cipó-quebrador, que aperta faz estalarem os galhos de uma árvore anônima; mesmo o bebê-
de-folha-rota, que vai pelas altas ramadas, rastilhando de copa em copa, por léguas, levando suas folhas perfuradas, picotadas, e sempre desprendendo raízes que irrompem de Junto às folhas e descem como fios de aranha para segurar outros troncos ou afundar no chão. Mas a grande eritrina, além de bela, calma e não-humana, é boa, mui bondosa — com ninhos e cores, açúcares e flores, e cantos e amores e é uma deusa, portanto.
— Uf! Aqui, posso descansar.
Tiro o paletó e me recosto na coraleira. Estou entre o começo do mato e um braço da lagoa, onde, além do retrato invertido de todas as plantas tomando um banho verde no fundo, já há muita movimentação. A face da lagoa em que bate o sol, toda esfarinhenta, com uma dança de pétalas d’água, vê-se que vem avançando para a outra, a da sombra. E a lagoa parece dobrada em duas, e o diedro é perfeito.
— Chuáá...
É a amerissagem de um pato bravo, que deve ter vindo de longe: tatalou e caiu, com onda espirrada e fragor de entrudo. O marrequinho de gravata é muito mais gentil: coincha no alto, escolhe o ponto, e aquatiza meigamente. Agora singra, rápido, puxando um enfivelamento de círculos e um triângulo. Bordejando, desvia-se para não abalroar as cairinas pesadas, que vão ondulando, de peito, e fazendo chapeleta grossa e esteira de espuma, como a mareta de um peixe. O marrequinho pousa tão próprio, aninhado e rodado, que a lagoa é que parece uma palma de mão, lisa e maternal, a conduzi-lo. O rabo é leme ótimo: só com um jeito lateral, e o bichinho trunca a rota. Pára. Balouça. Sacode a cabeça n’água. Espicha um pezinho, pa ra alimpar o pescoço. E vai juntar-se aos outros marrecos, que chegaram primeiro e derivam à bolina, ao gosto do vaivém da água, redondos, tersos, com uma pata preta sob a asa e a cabeça aninhada nas plumas, bico para trás cada qual.
Já os irerês descem primeiro na margem, e ficam algum tempo no meio dos caniços.
Devem ter ovos lá. Os do frango-d’água eu sei onde estão, muito bem ocultos entre as tabuas.
As narcejas, há tempo que vieram, e se foram. Os paturis ainda estão por chegar. Vou esperá-los. Também pode ser que apareça alguma garça ou um jaburu, cegonhão seu compadre, ou que volte a vir aquele pássaro verde-mar com pintas brancas, do qual ninguém sabe o nome por aqui.
Agora, outra desconhecida, verde-escura esta, parecendo uma grande andorinha. Vem sempre. Tem vôo largo, mas é má nadadora. E incontentável: toma seu banho de lagoa, vai lá adiante no brejo, e ainda tenta ligeira imersão no riacho.
E aquele? Ah, é o joão-grande. Não o tinha visto. Tão quieto.. Mas, de vezinha — itchungs!
— tchungou uma piabinha E daqui a pouco ele vai pegar a descer e a subir o bico, uma porção de vezes, veloz como a agulha de uma máquina de costura, liquidando o cardume inteiro de piabas. Corre o tempo.
A lagoa está toda florida e nevada de penugens usadas que os patos põem fora. E lá está o joão-grande, contemplativo, ao modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista de galo e coral. Só que eu acendo outro cigarro, por causa dos mil mosquitos, que são corja de demônios mirins.
Do mais do povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo das saúvas, que vão sob as folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram todos os problemas do trânsito. Ligeira, escoteira, zanza também, de vez em quando, uma dessas formigas pretas caçadoras amarimbondadas, que dão ferroadas de doer três gritos. Mas aqui está outra, pior do que a preta corredora: esta formiga-onça rajada, que vem subindo pela minha polaina. Está com fome. Quer das provisões. Desço-a e ponho-lhe diante um grumo de geleia e alguns grãos de farinha. Não quis. Fugiu. Quem vai comer do meu farnel é todo o clã das quem-quem, esses trenzinhos serelepes, que têm ali perto a boca do seu formigueiro. Uma por uma, se atrevem; largam os glóbulos de terra, trocam sinais de antenas, circulam adoidadas e voltam para a cratera vermelha. Vou espalhar no chão mais comida, pois elas são sempre simpáticas: ora um menino que brinca, ora uma velhinha a rezar. Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam... E isto é também com o louva-a-deus, que, acolá, erecto, faz vergar a folha do junquilho. Ele está sempre rezando, rezando de mãos postas, com punhais cruzados. Mas, no domingo passado, este mesmo, ou um qual quer louva-a-deus outro, comeu o companheiro em oito minutos justos, medidos no relógio — deixou de lado apenas as rijas pernas-de-pau serrilhadas da vítima, e o seu respectivo colete... Foi-se.
E assim também o tempo foi indo — nada de novo no rabo da lagoa, e aqui em terra firme muito menos — e chegou um momento sonolento, em que me encostei para dormir.
Fiquei meio deitado, de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se sumiu, logo, na orla das tarumãs prosternantes. Então, eu só podia ver o chão, os tufos de grama e o sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro numa mesa de jogo.
Paz.
E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.
Nem houve a qualquer coisa que d regra se conserva sob as pálpebras, quando uma pessoa fecha os olhos: poento obumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado, passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um foco que se apaga, remanescem seus vestígios, uma vaga via-láctea a escorrer; mas, no meu caso, nada havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta. Como se eu estivesse preso no compacto de uma montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma câmara-escura. Ainda pior do que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos.
Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui. Tonteei. Apalpei o chão. Passei os dedos pelos olhos; repuxei a pele — para cima, para baixo, nas comissuras e nada!
Então, pensei em um eclipse totalitário, em cataclismos, no fim do mundo.
Continuava, porém, a debulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços; e, aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau-chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro..
verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas para tempo não perder, vai comendo outrossim as formiguinhas tarus, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã.
E, pois, se todos continuavam trabalhando, bichinho nenhum tivera o seu susto. Portanto...
Estaria eu... Cego?!... Assim a súbito, sem dor, sem causa, sem prévios sinais?...
Bem, até há pouco, estava uma pedra solta ali. Tacteio. Ei-la. Bato com a mão, à procura do tronco da minha coraleira. Sim: a ponta da lagoa fica mesmo à minha frente.
Tangi a pedra, e logo senti que pusera no ato notável excesso de força muscular, O projétil bateu musical na água, e deve ter caído bem no meio da flotilha de marrecos, que grasnaram: — Quaquaracuac! O casal de patos nada disse, pois a voz das ipecas é só um sopro. Mas espadanaram, ruflaram e voaram embora. 
Então, eu compreendi que a tragédia era negócio meu particular, e que, no meio de tantos olhos, só os meus tinham cegado; e, pois, só para mim as coisas estavam pretas. Horror!...
Não é sonho, não é; pesadelo não pode ser. Mas, quem que não seja coisa passageira, e que daqui a instante eu não irei tornar a enxergar? Louvado seja Deus, mais a minha boa Santa Luzia, que cuida dos olhos da gente!... “Santa Luzia passou por aqui, com o seu cavalinho comendo capim!.. .“ Santa Luzia passou por... Não, não passa coisa nenhuma. Estou mesmo é envolvido e acuado pela má treva, por um escurão de transmundo, e sem atinar com o que fazer. Maldita hora! Mais momento, e vou chorar, me arrepelando, gritando e rolando no chão.
Mas, calma... calma... Um minuto só, por esforço. Esperar um pouco, sem nervoso, que para tudo há solução. E, com duas engatinhadas, busco maneira de encostar-me à árvore: cobrir bem a retaguarda, primeira coisa a organizar.
Tiro o relógio. Só o tique-taque, claro. Experimento um cigarro — não presta, não tem gosto, porque não posso ver a fumaça. Espera, há alguma coisa... Passos? Não. Vozes?
Nem. Alguma coisa é; sinto. Mas, longe, longe... O coração está-me batendo forte.
Chamado de ameaça, vaga na forma, mas séria: perigo premente. Capto-o. Sinto-o direto, pessoal. Vem do ma to Vem do sul. Todo o sul é o perigo. Abraço-me com a suinã. O coração ribomba. Quero correr.
Não adianta. Longe, no sul. Que será? “Quem será?”... E meu amigo, o poeta. Os bambus.
Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de baralho, que gostavam de vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, então, qual será a realidade, perigosa, no sul? Não, não é perigosa. E amiga.
Outro chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência: — ‘Guenta o relance, izé!
Respiro. Dilato-me. E grito:
— E aguento mesmo!
Eco não houve, porque a minha clareira tem boa acústica. Mas o tom combativo da minha voz derramou em mim coragem. E, imediatamente, abri a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a ninguém. Vamos ver!
Vamos ver o faz-não-faz. Estou aqui num lugar aonde ninguém mais costuma vir. Se tento regressar tacteando e tropeçando, posso cair fácil no brejo e atolar-me até dois ou cinco palmos para cima do couro-cabeludo; posso pisar perto de uma jararacuçu matadora; posso entranhar-me demais pelo esconso, e ficar perdido de todo. Onças de-verdade não há por aqui; mas um maracajá faminto, ou uma maracajá mãe, notando-me assim - mal-seguro, não darão dois prazos para me extinguir. Mau! Só agora é que vejo o ruim de se estar no mato sem cachorro.
De bom aviso é puxar a espingarda mais para perto de mim. Bem. E se eu der uns tiros?
Inútil. Quem ouvir pensará que estou atirando aos nhambus, claro. Pois não vim caçar?...
Agora, se eu não voltar a casa à hora normal, haverá alarme, virá gente à minha procura, acabarão por encontrar-me. É isto. Devo esperar, quieto.
Tempo assim estive, que deve ter sido longo. Ouvindo. Passara toda a minha atenção para os ouvidos. E então descobri que me era possível distinguir o guincho do paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos pulos das cotias, todas brincando nas folhas secas.
Escuto, tão longe, tão bem, que consigo perceber o pio labial do joão-pinto — que se empoleira sempre na sucupira grande. Agora, uma galinhola cloqueou, mais perto de mim, como uma franga no primeiro choco. Deve ter assestado o rostro por entre os juncos. Mas o joão-pinto, no posto, continua a dar o seu assovio de açúcar.
Tão claro e inteiro me falava o mundo, que, por um momento, pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta. Mas, mal que não sendo fixos os passarinhos, como pontos-de-referência prestavam muito pouco. E, alem disso, os sons aumentavam, multiplicavam-se, chegando a assustar. Jamais tivera eu notícia de tanto silvo e chilro, e o mato cochichava, cheio de palavras polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau.
E — nisso, nisso — mexeu-se, sem meu querer, algum rodel, algum botão em minha cabeça, e, voltei a apanhar a emissora da ameaça. Perigo! Grande perigo! Não devo, não posso ficar parado aqui. Tenho, já, já, de correr, de me atirar pelo mato, seja como for!
Vamos! E por que não? Eu conheço o meu mato, não conheço? Seus pontos, seus troncos, cantos e recantos, e suas benditas árvores todas — como as palmas das minhas mãos. A ele vim por querer, é certo, mas agora vou precisar dos meus direitos, para defender o barato, e posso falar fala cheia, fora de devaneios, evasões, lembranças. Mesmo sem os olhos.
Vamos!
Ando. Ando. Será que andei? Uma cigarra sissibila, para dizer que estou cômico. Fez-me bem. Mas, onde estarei eu, aonde foi que vim parar? Pior, pior. Perdi o amparo da grande suinã. Perdi os croticos das criações de pena da lagoa. E aqui? Este lugar é caminho de vento, e dos rumores que o vento traz: o sabrasil, à brisa, atrita as rendilhas das grimpas; as frondes do cangalheiro larfalham; as palmas da palmeira-leque afiam em papelada; e — pá-pá-pá-pá — o pau-bate-caixa, golpeado nas folhas elásticas, funciona eloquente.
Tomo nota: está soprando do sudoeste; mas, mal vale: daqui a um nadinha, mudará, sem explicar a razão.
E agora? Como chegar até à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém me escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Grito. Nada. Que posso? Nada. E daí? Por mim mesmo, não sou homem para acertar com o rumo. Tomo fôlego. Rezo. enfezo. Lembro-me de “Quem-Será”. E então?: “para a esquerda fui, contigo.
Coração soube escolher.”
Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, transpondo regiões estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os machos e fêmeas de uma porção de amorosos, solitários bichinhos, todos se orientando tão bem, sem mapas, quando estão em seca e precisam de ir a meca?... O instinto. Posso experimentar. Posso. Vou experimentar. Ir. Sem tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixar que o caminho me escolha. Vamos!
Vamos. Os primeiros passos são os piores. Mãos esticadas para a frente, em escudo e reconhecimento. Não. Pé por pé, por si. Um cipó me dá no rosto, com mão de homem. Pulo para trás, pulso um murro no vácuo. Caio de nariz na serapilheira. Um trem qualquer tombou da capanga. O binóculo. Limpo-me das folhinhas secas. Para quê? Rio-me, de mim.
Sigo. Pé .... pé, pé por si. A folhagem vai-se espessando. Há, de repente, gorjeio de um bicudo. Meus olhos o ouvem, também: cordel suspenso, em que se vão dando laços. Uma coisa me arranca, de puxão no ombro. Cipó-vem-cá, ou um tripa-de-porco. À estrada! Pé por pé, pé por si. Uma cigarra se esfrega e perfura. Cicia duas espirais doiradas. Ai! Uma testada em tronco. O choque foi rijo. Mas, a árvore? Casca enrugada, escamosa.. Um pau-de-morcego? Um angico? Pé por pé... Vem alguém! atrás de mim, outra pessoa chocalhando as folhas? Paro. Não ninguém. Vamos. Outra esbarradela, agora contra um tamboril, garanto. Cipós espinhentos, cipós cortinas, cipós cobras, cipós chicotes, cipós braços humanos, cipós serpentinas — uma cordoalha que não se acaba mais. Pé por p...
Outra árvore que não me vê, ai! E a colher-de-vaqueiro: este aroma, estes ramos densos, esta casca enverrugada de resinas — sei, como se estivesse vendo vista a sua profusão de flores rosadas. Vamos. Cheiro de musgo. Cheiro de húmus. Cheiro de água podre. Um largo, sem obstáculos. Lama no chão. Pés no fofo. De novo, as árvores. O reco-reco de um roedor qualquer. Estou indo muito ligeiro. Um canto arapongado, desconhecido: cai de muito alto, pesado, a prumo. De metal. Canso-me. Vou. Pé por pé, pé por si... Péporpé, péporsi... Pepp or pepp, epp or see... Pêpe orpépe, heppe Orcy...
Mas, estremeço, praguejo, me horrorizo. O alhum! O odor maciço, doce-ardido, do pau-d’alho! Reconheço o tronco. Deve haver uma aroeira nova, aqui ao lado. Está. Acerto com as folhas: esmagadas nos dedos, cheiram a manga. E ela, a aroeira. Sei desta aberta fria: tem sido o ponto extremo das minhas tentativas de penetração; além daqui, nunca me aventurei, nos passeios de mato a dentro.
Então, e por caminhos tantas vezes trilhados, o instinto soube guiar-me apenas na direção pior — para os fundões da mata, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões do barro comedor de pesos?!...
Ferido, moído, contuso de pancadas e picado de espinhos, aqui estou, ainda mais longe do meu destino, mais desamparado que nunca. Angustio-me, e chego a pique de chorar alto.
Deus de todos! Oh... Diabos e diabos... Oh...
Nisso, calei-me.
Mas, ai, outra vez, chegou a ordem, o brado companheiro: — “Guenta o relance, Izé”...
E, justo, não sei por que artes e partes, Aurísio Manquitola, um longínquo Aurísio Manquitola, brandindo enorme gritou também: — - “Tesconjuro! Tesconjuro!”...
Dá desordem... Dá desordem... E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as blasfêmias, que eu - de cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri.
Às vezes, eu sabia que estava correndo. Às vezes, parava — e o meu ofego me parecia o arquejar de uma grande fera, que houvesse estacado ao lado de mim.
E horror estranho riçava-me pele e pêlos. A ameaça, o perigo, eu os apalpava, quase. Havia olhos maus, me espiando. Árvores saindo de detrás de outras árvores e tomando-me a dianteira. E eu corria. 
Mas, num momento, cessou o mato. Um cavaleiro galopou, acolá, e o tinir das ferraduras nas pedras foi um tom de alívio.
Grunhos de porcos. Os porcos do João Mangolô. João Mangolô!
— Apanha, diabo! — esmurrei o ar, com formidável intenção.
Porque a ameaça vinha cia casa do Mangolô. Minha fúria me empurrava para a casa do Mangolô. Eu queria, precisava de exterminar o João Mangolô!...
Pulei, sem que tivesse necessidade de ver o caminho. Dei, esbarrei no portal. Entrei.
Mulheres consulentes havia, e gritaram. E ouvi logo o feiticeiro, que gemeu, choramingando:
— Espera, pelo amor de Deus, Sinhô! Não me mata!
Fui em cima da voz. Ele correu. Rolamos juntos, para o fundo da choupana. Mas, quando eu já o ia esganando, clareou tudo, de chofre. Luz! Luz tão forte, que cabeceei, e afrouxei a pegada.
Precipitei-me, porém, para ver o que o negro queria esconder atrás do jirau: um boneco, bruxa de pano, espécie de ex-voto, grosseiro manipanço.
— Conte direito o que você fez, demônio! — gritei, aplicando-lhe um trompaço.
— Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...
— E que mais?! — outro safanão, e Mangolô foi à parede e voltou de viagem, com movimentos de rotação e translação ao redor do sol, do qual recebe luz e calor.
— Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p’ra Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, pra não precisar de ver negro feio...
Havia muita ruindade mansa no pajé espancado, e a minha raiva passara, quase por completo, tão glorioso eu estava. Assim, achei magnânimo entrar em acordo, e, com decência, estendi a bandeira branca: uma nota de dez mil-réis.
— Olha, Mangolô: você viu que não arranja nada contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo bom e reza-brava... Em todo o caso, mais serve não termos briga... Guarda a pelega.
Pronto!
Saí. As mulheres, que haviam debandado para longe, me espreitavam, espantadas, porque eu trazia a roupa em trapos, e sangue e esfoladuras em todos os possíveis pontos.
Mas recobrara a vista. E como era bom ver!
Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul. 


“A barata diz que tem
sete saias de filó...
E mentira da barata:
ela tem uma só.”

(Cantiga de roda.)

- João Guimarães Rosa, no livro "Sagarana". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
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