O antropófago - Carlos Drummond de Andrade

Antropofagia, de Tarsila do Amaral 1929

O antropófago

Oswald de Andrade construiu toda uma filosofia da vida, e uma teoria sociológica, para justificar o exercício de sua tendência ao sarcasmo. Apelidou isso de antropofagia, e viu no homem um ser devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e psicologicamente, quanto mais deglute o seu semelhante. No dia em que o ser humano deixa de comer o próximo, a civilização entra em decadência, e se instalam, com o patriarcado, o messianismo e os valores burgueses em geral. Oswald era contra a escravidão, porque esta importa em explorar o adversário, que deve ser comido, e não posto a ferros. Os devorados não contam, mas os devoradores implantarão a cultura da liberdade, de que já surgem os primeiros indícios.
No subsolo dessa doutrina, havia apenas o gosto de Oswald pela sátira, que é a manducação simbólica. De resto, gosto bem curioso, pois coincidia com a capacidade de admiração, que o escritor aplicava a esse ou àquele confrade, mas alternadamente, em intervalos de impulso destrutivo, de uma incoerência por assim dizer cronometrada, que era uma das atrações de seu espírito.
Viajando-se mais longe ainda em sua personalidade, o ser corrosivo cede lugar, imprevistamente… a quem? a um menino sentimental, que queria ser mimado apesar de suas inconsequências, e que adorava o gesto de carinho. Tive ocasião de surpreendê-lo (ou de surpreender-me) numa noite de abandono e confidência, em que pude verificar como geralmente a sua agressividade era forma de defesa, compensação pelo agravo recebido, ou que supunha tal. A grande queixa de Oswald com relação a seus companheiros de aventura literária era que o omitiam sempre. E porque o omitissem, passava à ofensiva mais rude. Às vezes, atacava antes da omissão, como se a previsse. Pelo menos se persuadia de que não era injusto. Dessem-lhe carinho, e o homem cheio de alfinetes e ácidos se aveludava. E quando encontrou carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo depois de outros que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa construção antropofágica, levantada em quase trinta anos de orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.
Uma linha de coerência se esboça através dos zigue-zagues de sua vida. Ora espiritualista ora marxista, criando um dia o Pau-Brasil, e logo buscando universalizá-lo em antropofagia, primitivo e civilizado a um tempo, como observou Manuel Bandeira, solapando o edifício burguês sem renunciar à habitação em seus andares mais altos, Oswald manteve sempre intata sua personalidade, de sorte a provocar, ainda em seus últimos dias, a irritação ou a mágoa que inspirara quando fauve modernista de 1922. Os rapazes que vinham para a literatura com a preocupação excessiva de purezas ou aristocracias verbais (no fundo, variantes tardias de parnasianismo) pretendiam ignorá-lo ou negar-lhe a força, mas uma fisgada mais hábil desse sexagenário (que se dizia sex-appealgenário) lhes doía na pele, e talvez mais fundo; e como é preferível hoje em dia viver com todo mundo, principalmente com os marimbondos, acabavam se aproximando dele, e procurando conquistá-lo.
O marimbondo enternecia-se (pelo menos provisoriamente), e nada mais divertido que as listas sucessivas de talentos jovens, que Oswald, vingador contumaz, costumava estabelecer para indicar onde se depositavam suas esperanças de uma cultura antropofágica brasileira.
Não houve, no modernismo, personagem mais viva do que ele. Manteve até o fim, quando outros “heróis” do movimento se haviam acomodado ou haviam evoluído, uma atitude tipicamente modernista, não isenta de sabor, sobretudo notável porque implicava o culto à indisciplina e ao desrespeito, que infelizmente não caracteriza os moços de hoje. Tinha algo de Jarry, inventor do Ubu Roi e do Surmâle. E seu Serafim Ponte Grande é uma dessas criações que a gente não esquece, pela violência rabelaisiana de sátira, a destruir um mundo de atitudes e ideias que merece realmente ser espandongado.
Vamos sentir falta de Oswald, e também saudade.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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