Paul Gauguin, Pont-Aven, the Village, 1894 |
Sade, o Lata de Água
Tarde de madeira e zinco. Com telhados pendurados, a cacimba a raspar-lhes. Molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos.
No bairro de caniço a paisagem beijada só pela morte. Sade regressa a casa, tropeçando pragas. É rasteirado pela cerveja, toda a tarde entornada no seu desespero.
— Amigos? Caraças, são os primeiros a lixarem um gajo!
Estoiram risos nos umbrais das portas.
— Riam, cabrões.
Remexe os bolsos. Cigarros: nada. Fósforos: nada. As mãos impacientes interrogam o vestuário. Apetecia-lhe o fumo, precisava da força de um cigarro, da segurança dos gestos já feitos.
— Olha o Lata de Água. A mulher nem sai da casa, desde que ele meteu-se na bebida.
Não era verdade. As mulheres sempre recebem o prémio de se ter pena delas. Sacanas dos vizinhos. Só estão perto quando querem espreltar desgraças. No resto ninguém lhes conhece.
Entrou em casa e fechou a porta. A mão ficou no trinco, distraída, enquanto ele passeava os olhos naquele vazio. Lembrou-se dos tempos em que a encontrou: foram bonitos os dias de Júlia Timane!
Tinha havido muito tempo. Estava sentado numa paragem à espera de nada, dessa maneira que só os bêbados esperam. Ela chegou e sentou-se ao lado. A capulana que trazia sobre os ombros parecia pouca para um frio tão comprido. Começaram de falar.
— Sou Júlia, natural de Macia.
— Não tens marido?
— Já tive. Por enquanto não tenho.
— Foram quantos os maridos?
— Muitos. Tenho os filhos, também.
— Onde estão esses filhos?
— Não estão comigo. Os pais levaram.
Ele ofereceu o casaco para a cobrir do frio. Ela ajudou-o a encontrar o caminho para casa. Mas acabou por ficar aquela noite. E as outras noites também.
Quando souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. Ele não quis ouvir. Foi então
que passaram a chamá-lo de Lata de Água. Em toda a parte, alcunha substituiu o nome. A água aceita a forma de qualquer coisa, não tem a própria personalidade.
Com o tempo foi-se apercebendo de uma coisa grave: ela não lhe dava filhos. Isto ninguém podia saber. Um homem pode ter barba, não-barba. Agora filhos tem que tirar: um documento exigido pelos respeitos.
Um dia disse-lhe:
— Temos que ter um filho.
— Não podemos, você sabe.
— Temos que arranjar maneira.
— Maneira, como? Se eu não tenho a culpa? O hospital explicou o problema: você que não tira os filhos.
— Não estou a falar de culpa. Já estudei o problema, a solução já descobri: abastece-se lá fora, mulher.
— Não estou perceber.
— Estou-te dizer: dorme com outro. Eu não vou zangar. Só quero um filho mais nada.
A noite ela saiu. Voltou muito tarde. As noites seguintes ela fez o mesmo. Foram muitas noites.
Ele perguntou:
— Uma vez não chega?
— Não quer um filho? É bom garantir.
— Faça lá maneira que vocês sabem. Mas rápido, não quero falta de respeito.
Júlia engravidou-se. Ele festejou a notícia. Aquelas primeiras semanas foram muito felizes. Até que uma vez ele acordou-a no meio da noite:
— Júlia, quero saber: quem o dono da grávida?
— Armando, você jurou que nunca havia de perguntar
— Agora já quero esse nome. Não podes dar parto sem eu saber a verdade do pai dessa criança.
Júlia permaneceu calada e arrumou-se outram vez na cama. Ele sacudiu-a com violência.
— Vais-me dar porrada? — assustou-se ela.
— Quando não disseres, vou-te dar.
— Não serei eu sozinha a batida. E capaz que vais aleijar o teu filho.
Ele olhou para si mesmo: estava de joelhos, parecia estar de rezas. Um homem que exige não fica na posição dos que pedem. Levantou-se e foi acender o xipefo. Na sombra falou-lhe, já calmo:
— Dorme, Júlia, eu não quero ouvir esse nome. Mesmo quando te pedir outra vez: nunca fales essa pessoa.
Ela sorriu, destapou o lençol e mostrou aquele redondo da lua na barriga.
— É seu filho, Sade. É seu.
A criança nasceu. Ele confirmou, então, a suspeita de um sentimento: o miúdo era um estranho, um remendo na sua honra. Mas um remendo vivo, chorosa testemunha das suas fraquezas. As vezes gostava-o e ele era seu. Outras, o bebé era um intruso que o vencia.
Na vizinhança ninguém desconfiava da identidade do pai. Mas Sade estava cada vez mais inseguro: olhava a criança e parecia que ela sabia de tudo. Quis um filho para esconder vergonha. Agora, tinha um filho que ameaçava o segredo da sua vida. Cada vez mais era difícil aquela morada. Ciumava dos cuidados que a mulher dedicava ao pequeno rival. O futuro atrapalhava-o como um caminho escuro. Mais e mais vezes batia na mulher, cada vez mais passeava nas bebidas. Nunca bateu no miúdo. As porradas que lhe queria dar destinava-as na mulher.
Sentiu a fora do vento na porta e acordou da lembrança. Sempre que se recordava trabalhavam facas dentro da alma. Estava proibido de ir ao passado. E tudo por causa de Júlia, raio de mulher. Fechou a porta com a decisão da fria.
— Sua puta!
E desatou aos pontapés. Queria feri-la, transferir para ela as dores que sentia. Caíram latas, num barulho enorme. Ele não esmoreceu: debruado sobre a cama insultava-a, cuspia-lhe, ameaçava-a da morte derradeira. Os vizinhos. ele já sabia, não viriam acudir. E, aquele noite, a raiva era de mais. Havia de lhe bater até sangrar. Puxou do cinto e usou-o com tanta vontade que o balanço o fez cair sobre a mesa. Pratos e copos caram, rasgando outra vez o silêncio da noite.
De repente, sentiu um barulho na porta. Quando olhou esse algum já tinha entrado. Era Severino, o chefe do quarteirão.
— Que queres, Severino?
— Calma, Sade. Para quê tudo isso?
Ele respirava como se alimentasse muitas almas.
— Senta-te, Sade.
Ele obedeceu. Nos suspiros cicatrizava o fogo da alma.
— Porque que você sempre faz isto? Já viu bater assim numa mulher?
Ele não respondeu. Tentava baixar aquela quentura dentro do peito. Ficou assim uns minutos, até que respondeu:
— Eu não estou a bater em ninguém.
Severino não percebeu. Deve ser está grosso, vai começar uma conversa de muitas coisas. Sade insistiu.
— Não há ninguém nesta casa. Só sou eu sozinho.
Severino olhou em volta, desconfiado. Não havia, realmente, ninguém.
— Pode ver em todo o lado. A Júlia não está, há muito tempo que foi-se embora. Eu não estou a bater contra ninguém.
— Desculpa, Sade. Pensei...
E como não encontrasse palavras decidiu-se a sair. Andava de costas como se a surpresa fosse uma cobra ameaçando saltar-lhe.
— Severino?
— Sim, estou a ouvir.
— Eu faço isto não sei porquê. E para vocês pensarem que ela ainda está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que bato não é ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que ela não sai porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não...
Severino tinha pressa de sair. Sade estava com os braços desmaiados, caídos ao lado do corpo. Parecia que a carne se mudara em madeira e que a desgraça havia esculpido nela. Severino saiu, fechando a porta com o cuidado que se guarda para o sono das crianças.
Lá fora uma multidão aguardava das notícias. O chefe do quarteirão, com um gesto vago, espalhou a sua voz:
— Já podem ir. A mamã Júlia está bem. Ela está pedir que voltem para vossas casas, dormirem descansados.
Alguém protestou:
— Mas Severino. .. Afinal, como é?
O chefe do quarteirao, com sorriso atrapalhado:
— Eh, pá, você já sabe como são essas nossas mulheres.
— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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Saiba mais sobre o autor:
- Mia Couto - o afinador de silêncios (biogafia)
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