© Gustavo Aimar |
Entre irmãos
O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, ele regula pelos dezessete anos, justamente o tempo que estive solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos, até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece — um menino nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar para ele em nosso mundo, e com urgência porque ele não pode mais ficar de fora.
A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o meu pai. De repente fere-me a idéia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele.
Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de derrubar todas as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras do couro como mapa de rios em miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer fútil eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele? Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado?
Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa, há muito tempo que tenho morado em hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme, e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia, o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter um cão em um quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe, nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo; mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena que eu mesmo não sinto? Confirmo a proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele suspira e diz que então não viveria num hotel nem de graça.
Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá dentro e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou conhecido que o salve do martírio, mas o sol está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim mesmo — uma caixa de sapato dividida ao meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos — e passava horas à beira do rego afiando a faca, servia para descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez naquele tempo? É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade.
Uma mulher entra na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas, entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede desculpa e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro, detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa assim. Olhamo-nos novamente já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos também que nada podemos fazer para nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária — e idiota — que nem me dou ao trabalho de responder.
Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre , não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto? Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro.
A porta abre-se abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as mãos no peito, olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto:
— Sua mãe está pedindo um padre.
Levantamos os dois de um pulo, dando graças a Deus — que ele nos perdoe — pela oportunidade de escaparmos daquela câmara de suplício.
- José J. Veiga, no livro "Os cavalinhos de platiplanto". (contos) Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
-----
Saiba mais sobre o autor:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Gostou? Deixe seu comentário.