George Spaiuc |
Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo.
Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.
Não vou falar sobre relógios. Mas sobre um determinado relógio. O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório é a antiliteratura da coisa.
O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo. Para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.
Não é de pulso: é solto portanto. Tem dois centímetros e fica de pé na superfície da mesa. Eu queria que ele se chamasse Sveglia mesmo. Mas a dona do relógio quer que se chame Horácio. Pouco importa. Pois o principal é que ele é o tempo.
Seu mecanismo é muito simples. Não tem a complexidade de uma pessoa mas é mais gente do que gente. É super-homem? Não, vem diretamente do planeta Marte, ao que parece. Se é de lá que ele vem então um dia para lá voltará. É tolo dizer que ele não precisa de corda, isso já acontece com outros relógios, como o meu que é de pulso, é antichoque, pode-se molhar à vontade. Esses até que são mais que gente. Mas pelo menos são da Terra. O Sveglia é de Deus. Foram usados cérebros humanos divinos para captar o que devia ser este relógio. Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver. Mas é também importante dormir para sonhar com a falta de tempo. Sveglia é o Objeto, é a Coisa, com letra maiúscula. Será que o Sveglia me vê? Vê, sim, como se eu fosse um outro objeto. Ele reconhece que às vezes a gente também vem de Marte.
Estão me acontecendo coisas, depois que soube do Sveglia, que mais parecem um sonho. Acorda-me, Sveglia, quero ver a realidade. Mas é que a realidade parece um sonho. Estou melancólica porque estou feliz. Não é paradoxo. Depois do ato do amor não dá uma certa melancolia? A da plenitude. Estou com vontade de chorar. Sveglia não chora. Aliás ele não tem circunstâncias. Será que a energia dele tem peso? Dorme, Sveglia, dorme um pouco, eu não suporto a tua vigília. Você não para de ser. Você não sonha. Não se pode dizer que você “funciona”: você não é funcionamento, você apenas é.
Você é todo magro. E nada lhe acontece. Mas é você que faz acontecerem as coisas. Me aconteça, Sveglia, me aconteça. Estou precisando de um determinado acontecimento sobre o qual não posso falar. E dá-me de volta o desejo, que é a mola da vida animal. Eu não te quero para mim. Não gosto de ser vigiada. E você é o olho único aberto sempre como olho solto no espaço. Você não me quer mal mas também não me quer bem. Será que também eu estou ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um fio de desejo. Eu preciso que este se fortifique. Porque não é como você pensa, que só a morte importa. Viver, coisa que você não conhece porque é apodrecível – viver apodrecendo importa muito. Um viver seco: um viver o essencial.
Se ele se quebrar, pensam que morreu? Não, foi simplesmente embora de si mesmo. Mas você tem fraquezas, Sveglia. Eu soube pela tua dona que você precisa de uma capa de couro para protegê-lo contra a umidade. Soube também, em segredo, que você uma vez parou. A dona não se afobou. Deu “a ele-nele” umas mexidinhas muito das simples e você nunca mais parou. Eu te entendo, eu te perdoo: você veio da Europa e precisa um mínimo de tempo para se aclimatar, não é? Quer dizer que você também morre, Sveglia? Você é o tempo que para?
Já ouvi o Sveglia, por telefone, dar o alarma. É como dentro da gente: a gente acorda-se de dentro para fora. Parece que seu eletrônico-Deus se comunica com o nosso cérebro eletrônico-Deus: o som é macio, sem a menor estridência. Sveglia marcha como um cavalo branco solto e sem sela.
Eu soube de um homem que possuía um Sveglia e a quem aconteceu Sveglia. Ele estava andando com o filho de dez anos, de noite, e o filho disse: cuidado, pai, tem macumba aí. O pai recuou – mas não é que pisou em cheio na vela acesa, apagando-a? Não parece ter acontecido nada, o que também é muito de Sveglia. O homem foi dormir. Quando acordou viu que um de seus pés estava inchado e negro. Chamou amigos médicos que não viram nenhuma marca de ferimento: o pé estava intacto – só preto e muito inchado, daquele inchado que deixa a pele toda esticada. Os médicos chamaram mais colegas. E decidiram nove médicos que era gangrena. Tinham que amputar o pé. Marcou-se para o dia seguinte e com hora certa. O homem dormiu.
E teve um sonho terrível. Um cavalo branco queria agredi-lo e ele fugia como um louco. Passava-se tudo isso no Campo de Santana. O cavalo branco era lindo e enfeitado com prata. Mas não houve jeito. O cavalo pegou-o bem no pé, pisando-o. Aí o homem acordou gritando. Pensaram que estava nervoso, explicaram que isso acontecia perto de uma operação, deram-lhe um sedativo, ele dormiu de novo. Quando acordou, olhou logo para o pé. Surpreso: o pé estava branco e de tamanho normal. Vieram os nove médicos e não souberam explicar. Eles não conheciam o enigma do Sveglia contra o qual só um cavalo branco pode lutar. Não havia mais motivo de operação. Só que não pode se apoiar nesse pé: fraquejava. Era a marca do cavalo de arreios de prata, da vela apagada, do Sveglia. Mas Sveglia quis ser vitorioso e aconteceu uma coisa. A mulher desse homem, em perfeito estado de saúde, na mesa do jantar, começou a sentir fortes dores nos intestinos. Interrompeu o jantar e foi se deitar. O marido preocupadíssimo foi vê-la. Estava branca, exangue. Tomou-lhe o pulso: não havia. O único sinal de vida é que sua testa se perlava de suor. Chamou-se o médico que disse talvez ser caso de catalepsia. O marido não se conformou. Descobriu-lhe a barriga e fez sobre ela movimentos simples – como ele mesmo os fizera quando Sveglia parara – movimentos que ele não sabia explicar.
A mulher abriu os olhos. Estava em saúde perfeita. E está viva, que Deus a guarde.
Isso tem a ver com Sveglia. Não sei como. Mas que tem, tem. E o cavalo branco do Campo de Santana, que é praça de passarinhos, pombos e quatis? Todo paramentado, com enfeites de prata, de crina altiva e eriçada. Correndo ritmadamente contra o ritmo de Sveglia. Correndo sem pressa.
Estou em perfeita saúde física e mental. Mas uma noite eu estava dormindo profundamente e me ouviram dizer bem alto: eu quero ter um filho com Sveglia!
Eu creio no Sveglia. Ele não crê em mim. Acha que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito.
Eu passei cinco anos sem me gripar: isso é Sveglia. E quando me gripei durou três dias. Depois ficou uma tosse seca. Mas o médico me receitou antibiótico e curei-me. Antibiótico é Sveglia.
Este é um relatório. Sveglia não admite conto ou romance o que quer que seja. Permite apenas transmissão. Mal admite que eu chame isto de relatório. Chamo de relatório do mistério. E faço o possível para fazer um relatório seco como champanha ultrasseco. Mas às vezes – me desculpem – fica molhado. Uma coisa seca é de prata de lei. Ouro já é molhado. Poderia eu falar em diamante em relação a Sveglia?
Não, ele apenas é. E na verdade Sveglia não tem nome íntimo: conserva o anonimato. Aliás Deus não tem nome: conserva o anonimato perfeito: não há língua que pronuncie o seu nome verdadeiro.
Sveglia é burro: ele age clandestinamente sem meditar. Vou agora dizer uma coisa muito grave que vai parecer heresia: Deus é burro. Porque ele não entende, ele não pensa, ele é apenas. É verdade que é de uma burrice que executa-se a si mesma. Mas Ele comete muitos erros. E sabe que os comete. Basta olharmos para nós mesmos que somos um erro grave. Basta ver o modo como nos organizamos em sociedade e intrinsecamente, de si para si. Mas um erro Ele não comete: Ele não morre.
Sveglia também não morre. Ainda não vi o Sveglia, como já disse. Talvez seja molhado vê-lo. Sei tudo a respeito dele. Mas a dona dele não quer que eu o veja. Tem ciúme. Ciúme chega a pingar de tão molhado. Aliás, nossa Terra corre o risco de vir a ser molhada de sentimentos. O galo é Sveglia. O ovo é puro Sveglia. Mas só o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval. Por dentro dele é vida; vida molhada. Mas comer gema crua é Sveglia.
Querem ver quem é Sveglia? Jogo de futebol. Mas já Pelé não é. Por quê? Impossível explicar. Talvez ele não tenha respeitado o anonimato.
Briga é Sveglia. Acabo de ter uma com a dona do relógio. Eu disse: já que você não quer me deixar ver Sveglia, descreva-me os seus discos. Então ela ficou furiosa – e isso é Sveglia – e disse que estava cheia de problemas – ter problemas não é Sveglia. Então tentei acalmá-la e ficou tudo bem. Amanhã não lhe telefonarei. Deixarei ela descansar.
Parece-me que escreverei sobre o eletrônico sem jamais vê-lo. Parece que vai ter que ser assim. É fatal.
Estou com sono. Será que é permitido? Sei que sonhar não é Sveglia. O número é permitido. Embora o seis não seja. Raríssimos poemas são permitidos. Romance, então, nem se fala. Tive uma empregada por sete dias, chamada Severina, e que tinha passado fome em criança. Perguntei-lhe se estava triste. Disse que não era alegre nem triste: era assim mesmo. Ela era Sveglia. Mas eu não era e não pude suportar a ausência de sentimento.
Suécia é Sveglia.
Mas agora vou dormir embora não deva sonhar.
Água, apesar de ser molhada por excelência, é. Escrever é. Mas estilo não é. Ter seios é. O órgão masculino é demais. Bondade não é. Mas a não-bondade, o dar-se, é. Bondade não é o oposto da maldade.
Estarei escrevendo molhado? Acho que sim. Meu sobrenome é. Já o primeiro é doce demais, é para o amor. Não ter nenhum segredo – e no entanto manter o enigma – é Sveglia. Na pontuação as reticências não são. Se alguém entender este meu irrevelado relatório e preciso, esse alguém é. Parece que eu não sou eu, de tanto eu que sou. O Sol é, a Lua não. Minha cara é. Provavelmente a sua também é. Uísque é. E, por incrível que pareça, Coca-cola é, enquanto Pepsicola nunca foi. Estou fazendo propaganda de graça? Isto está errado, ouviu, Coca-cola?
Ser fiel é. O ato do amor contém em si um desespero que é.
Agora vou contar uma história. Mas antes quero dizer que quem me contou essa história foi uma pessoa que, apesar de bondosíssima, é Sveglia.
Agora estou quase morrendo de cansaço. Sveglia – se a gente não toma cuidado – mata.
A história é a seguinte:
Passa-se numa localidade chamada Coelho Neto, na Guanabara. A mulher da história era muito infeliz porque tinha uma ferida na perna e a ferida não se fechava. Ela trabalhava muito e o marido era carteiro. Ser carteiro é Sveglia. Tinham muitos filhos. Quase nada o que comer. Mas esse carteiro que se imbuiu da responsabilidade de tornar sua mulher feliz. Ser feliz é Sveglia. E o carteiro resolveu a situação. Mostrou-lhe uma vizinha que era estéril e sofria muito com isso. Não havia jeito de pegar filho. Mostrou à sua mulher como esta era feliz em ter filhos. E ela ficou feliz, mesmo com a pouca comida. Mostrou-lhe também o carteiro que outra vizinha tinha filhos mas o marido bebia muito e batia nela e nos filhos. Enquanto que ele não bebia e nunca espancara a mulher ou as crianças. O que a tornou feliz.
Todas as noites eles tinham pena da vizinha estéril e da que apanhava do marido. Todas as noites eles eram muito felizes. E ser feliz é Sveglia. Todas as noites.
Eu queria chegar à página 9 na máquina de escrever. O número nove é quase inatingível. O número 13 é Deus. Máquina de escrever é. O perigo dela passar a não ser mais Sveglia é quando se mistura um pouco com os sentimentos que a pessoa que está escrevendo tem.
Eu enjoei do cigarro Consul que é mentolado e doce. Já o cigarro Carlton é seco, é duro, é áspero, e sem conivência com o fumante. Como cada coisa é ou não é, não me incomodo de fazer propaganda de graça do Carlton. Mas, quanto à Coca-cola, não perdoo.
Eu quero mandar este relatório para a revista Senhor e quero que eles me paguem muito bem.
Como você é, julgue se minha cozinheira, que cozinha bem e canta o dia inteiro, é.
Acho que vou encerrar este relatório essencial para explicar os fenômenos enérgicos da matéria. Mas não sei o que fazer. Ah, vou me vestir.
Até nunca mais, Sveglia. O céu muito azul é. As ondas brancas de espuma do mar são mais que o mar. (Já me despedi do Sveglia, mas só continuarei a falar nele por vício, tenham paciência.) O cheiro do mar mistura masculino e feminino e nasce no ar um filho que é.
A dona do relógio me disse hoje que ele é que é dono dela. Ela me disse que ele tem uns furinhos pretos por onde sai o som macio como uma ausência de palavras, som de cetim. Tem um disco interior que é dourado. O disco exterior é prateado, quase sem cor – como uma aeronave no espaço, metal voando. Espera é ou não é? Não sei responder porque sofro de urgência e fico incapacitada de julgar esse item sem me envolver emocionalmente. Não gosto de esperar.
Um quarteto de música é muitíssimo mais do que sinfonia. Flauta é. Cravo tem um elemento de terror nele: os sons saem esfarfalhados e quebradiços. Coisa de alma de outro mundo.
Sveglia, quando afinal é que você me deixa em paz? Não vai me perseguir por toda a minha vida transformando-a na claridade da insônia perene? Já te odeio. Já queria poder escrever uma história: um conto ou romance ou uma transmissão. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei mais. Mas é verdade que outras vezes desconfiei e no entanto escrevi. O que, porém, hei de escrever, meu Deus? Contaminei-me com a matemática do Sveglia e só saberei fazer relatórios?
E agora vou terminar este relatório do mistério. Acontece que estou muito cansada. Vou tomar um banho antes de sair e perfumar-me com um perfume que é segredo meu. Só digo uma coisa dele: é agreste e um pouco áspero, com doçura escondida. Ele é.
Adeus, Sveglia. Adeus para nunca sempre. Parte de mim você já matou. Eu morri e estou apodrecendo. Morrer é.
E agora – agora adeus.
— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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