Patanhoca, o cobreiro apaixonado - Mia Couto

© Vladimir Kush

Patanhoca, o cobreiro apaixonado


O Patanhoca (Patanhoca: aquele que agarra cobras) foi ele que matou a china Mississe, dona da cantina da Muchatazina. Agora, a razão que lhe fez matar, não sei. Falam muita coisa, cada qual conforme. Perguntei, fui respondido. Vou contar a estória. Nem isso, pedaços de estória. Pedaços rasgados como as nossas vidas. Juntamos os bocados mas nunca completa.
Uns dizem foi ninguém que matou. Assim mesmo, morreu dentro no seu corpo, razões do sangue. Outros chegaram de ver as feridas onde o veneno deu entrada na falecida.
Não quero mostrar verdade, disso nunca soube. Se invento é culpa da vida. A verdade, afinal, filha mulata de uma pergunta mentirosa.
Começo na Mississe

I — A VIÚVA DAS DISTÂNCIAS

Mississe era uma viúva, chinesa, mulher de segredos e mistérios. A loja dela ficava onde já acabaram estradas e restam só caminhos descalços do pobre. Hora de abrir e fechar não havia: era a vontade dela que mandava. O cedo e o tarde era ela que fazia.
As alegrias saíram-lhe da vida, esqueceram de voltar. A tristeza era cadeado fechado na Mississe. Mesmo diziam era xicuembo (Xicuembo: feitiço) dos chinas e que a terra de longe, viajando em fumos, lhe atacava a alma.
Ninguém conhecia como viera, maneira como despedira com os seus. E a China, todos sabem, uma distância. A viagem é demora tanta que um homem muda cor da sua pele. Vizinhos e clientes perguntavam-se no marido dela que morreu. E as noites de Mississe — ela dividia o frio com quem? Quem lhe apagava o escuro?
Quando chegou Muchatazina ainda era nova. Bonita, dizem os do tempo. Os portugueses, à escondida, vinham visitar a beleza dela. Não entravam na sua graça, ficavam suplentes de ninguém. A viúva embrulhava-se nos azedos, enviuvando sempre mais. Os portugueses, ricos até, saíam de ombros cabis-baixos. Paravam no quintal, no proveito da sombra dos muitos cajueiros. Para distrair raiva arrancavam dos ramos o fruto. Caju é sangue do sol pendurado, doce fogo de bebermos. E afastavam, soprando ameaças.
Aos sábados a viva escorregava nas bazucas (Bazuca: garrafa de cerveja de tamanho grande), uma, duas, mais que mais. Acabava quando a cerveja lhe molhava o sangue todo.
A cantina luzava, o gerador roncando para tchovar (Tchovar: empurrar) aquela luz. Das janelas saíam fumos e mistérios, incensos da china a drogarem as luas. Ouvia-se, então, a dor daquela mulher. Nos corredores rasgavam-se os gritos, a voz dela rodava num poço escuro. Uma noite compreenderam-lhe nos gritos: “Meus filhos! Entrega os meus filhos, assassino.”
Afinal, havia os filhos ? Como se ninguém sabia? Os vizinhos escutavam, admirados, aquele lamento. A viúva gemia, gritava, uivava. Quiseram acudir-lhe, apagar-lhe as frias mas ninguém podia chegar lá. Sempre e sempre a sombra. A morte, único jardim volta da casa, cercava o desespero da viúva.

II — O PATANHOCA, MECÂNICO DAS SERPENTES

Patanhoca era um coitado, roubado na sorte da vida. Uma qualquer coisa lhe arrancara os lábios, ficara a boca sem em baixo nem em cima. Os dentes nunca afastavam. A boca, da maneira que nunca pestanejava, parecia inveja de uma hiena. A alma toda de um vivente pode ficar atrás dos dentes? Se esse era o castigo do Patanhoca. Diziam era o demónio transferido na Muchatazina. Mentira. Quem disse sobre da cara do diabo? É feia? Ao contrário, o demónio está no mais bonito, para nos enganar a escolher o vice-versa. Um homem assim não tenta com as mulheres: ama as cobras, os bichos e as coisas que não pedem beleza. O apanhador das cobras ensinara-se a solteirar.
Tardes, manhãs e outros quandos, Patanhoca fechava-se com as cobras dele. Mecânico de serpentes, raspava a ferrugem das escamas, educava os venenos das ditas. Arte de quem perdeu técnica de viver, sabedorias do inferno. Nem valia a pena procurar a verdade do caso da vida dele. O Patanhoca sabia, na realmente, o segredo das cobras? Resposta sem documento nem testemunha. Mas os duvidantes, se que havia, nunca foram ouvidos.
As tardes desmanchavam a luz, era quando ele saía, o escuro a segurar o petromax. Os caminhos já estavam cegos mas o Patanhoca arrumava seus passos na direcção da cantina.
No destino ele apagava o petromax e começava o serviço de espalhar feitiço. O encosto dele era ali, no pátio, mocho a teimar nas luzes da Mississe. Qual o motivo do Patanhoca noitar sempre ali? Eram só de graça as demoras? Havia, sim, razão de amor.
A vergonha amarrava as paixões do cobreiro. Olhar era o único saguate (Saguate: gorjeta) das sombras e silêncios. Mostrar o coração sem mostrar o corpo, espalhar ajudas e bondades: assim escolhera João Patanhoca, no segredo da sua vida. Uma viva nãoé mais sozinha que ninguém? Onde está o braço que lhe defende?
Esse braço era o Patanhoca. Os seus poderes afastavam os ladrões da cantina. Todas as noites, dizem, soltava as cobras à volta da casa. Eram tantas as cujas cobras que a areia se envenenava debaixo da noite. Não se precisava ser mordido. Bastava um algum pisar no pátio. De manhã, ninguém podia entrar ou sair sem o dono das serpentes dar ordem das suas rezas. As falas dele varriam o quintal e acabava a fronteira. Tudo isso, todo esse serviço de guarda, o Patanhoca fazia sem pedir a troca. Pendurava os olhos na viúva, já não eram olhos, eram serventes de caprichos chineses.

III — PRIMEIRA NOITE: O CONVITE

Até que uma vez a viúva abriu a porta. Estava nua? Ou era gozo da luz negando-lhe as roupas? Ela fez um aceno. O Patanhoca ficou como estava, sem comparência. Depois ela chamou, voz de mãe:
— Sai do escuro, entra!
Ele continuou parado, sentinela de medos, analfabeto da felicidade. Não tinha para a frente. Ela voltou a chamar, desta vez mais rouca. Desceu as esca-das, adiantando o corpo no escuro. Sentiu o cheiro dos mitombos (Mitombos: remédio, mezinha) espalhando espantos. Nunca ela vira o tamanho de um cheiro assim.
— Volta para dentro Mississe!
Ordem do Patanhoca. Era a primeira vez da sua voz. As palavras saíam cuspidas, raspadas, sem o redondo dos pés e dos bês. As cigarras calaram, a noite sufocava. A viúva finge não ouvir e prossegue, sem volta. De novo, o Patanhoca avisador:
— Passopa! Nhoca! (Passopa, nhoca: cuidado, cobra)
Então, ela parou. Ele veio-lhe mais perto, guardando-se no lado escuro. Estendeu um pequeno saco de pano:
— Aquece este chá: é o remdio.
— Nada. Não preciso.
— Não precisa, como?
— Só quero que você venha ficar aqui.
— Ficar onde?
— Viver aqui, junto comigo. Fica, João.
Ele estremeceu: João? Os olhos fecharam, sofridos: uma palavra, um nada pode fazer tanto mal a um homem?
— Não fale esse nome outra vez, Mississe.
Ela avançou mais, cada vez queria-lhe encostar a sombra.
— João? É o seu nome. Não posso falar, porquê?
O silêncio autorizou as cigarras. Homens e bichos falam por turnos, é assim a lei da natureza.
Um homem chora? Sim, se lhe acordam a criança que tem dentro. O Patanhoca chora, não sabe lagrimar, fazem falta os lábios.
— Por que você não volta mais outra vez?
— Sou Patanhoca, eu mesmo. Não é só nome que fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa.
— Não, você é João. É o meu João.
Ele explica suas mágoas, diz que a sua vida está partida e os pedaços quando se apanham sempre tarde. A chinesa cansa-se do lamento:
— Então, deixa-me sair. Acaba esta prisão de todas as noites, acaba estes sustos, estas cobras a cercarem a minha vida.
Com as frias ele atira o saquinho para o chão e afasta-se do redondo da luz onde conchegara sua tristeza.

IV — SEGUNDA NOITE: A REVELAÇÃO

A outra noite, Patanhoca voltou mais cedo. Ela já estava sentada nas escadas, como rainha, vestida de perfumes. Os chibantes (Chibante: bonito, adorno, enfeite) roubavam-lhe a idade, lustrando a pele. O Patanhoca esquece-se de cobrir a vergonha no escuro, aproxima-se nas costas da mulher. Chama-a, ela nada.
— Mississe?
A viúva levanta os olhos e ele estremece.
Estavam ali os vinte anos dela, estava ali o prémio de todos caçadores de desejos.
— Mississe, você estás abusar. As cobras vão te morder.
Ela afastou-se um degrau e convidou:
— Senta aqui, João. Vamos falar.
Um passo atrs.
— Não. Fala daí, estou a ouvir.
— João, aproxima. Juro, não te vou-te olhar. Falo à sua trás.
Ele aceita. Fica enrolado no corpo.
— Então?
— Não há outro homem, não há-de haver. Só você, só.
— Por que estragaste minha vida, Mississe?
— Não vamos falar o problema, faça favor.
— Temos que falar.
Ela pausa. Custa lembrar, na boca já não saliva — é sangue empurrando as palavras.
— Mataste eles, João.
— Mentira, foram as cobras.
Ela começa os nervos, a boca a tropear na raiva:
— E quem trouxe as cobras? Não foi você? Avisei-lhe, tantas vezes pedi: leva-lhes daqui, desapareça-as. Mas você sempre respondia que era artista. Artista de quê?
— Era, sou. Só aquela noite estava grosso. Os segredos fugiram, foi isso.
Ela chora, nem esconde a cara. A lua trança-lhe as lágrimas. Nascem prolas. O calor das autênticas desmaia com a inveja. Ele procura emendar ofensas, sem jeito.
— E eram quem? Crianças sem destino para diante. Mulatos-chinas, raça sem raça. A gente faz filhos para ser mais...
— Cala-se, Patanhoca!
Ela levantou corpo e grito, misturados num subitamente. Atira a porta e fica dentro, soluçadora.
Patanhoca, de pé, mãos juntas frente ao peito, desculpa-se sem encontrar meio. A voz da Mississe chega-lhe, acusadora:
— Todos pensam que você é bom, enquanto não. Pensam que você me ajuda, com as suas cobras à volta da noite. Eu sei, só eu sei que as cobras são para me fechar. Você quer me prender para sempre, para não fugir com outros homens.
Ele vai-se afastando devagar, magoando-se nas palavras dela. Mas aquela dor era quase boa de sentir e, vez em quando, ele demora a sua atenção.
— Você é mau, Patanhoca. Não foi você que escolheu as cobras, elas é que lhe escolheram.
Deixou-se ir, bêbado da sua alma. Ciúmes dos outros, ciúmes dos vivos, era essa a sua maldade. Os outros, seja eram belos ou feios, podiam trocar-se nos dias. Só ele não tinha a moeda precisada. Os outros fumavam, beijavam, sobiavam, mereciam cumprimentos e bons dias. Só ele se cansava de ninguém. A china Mississe roubara-lhe o fogo que a gente acende nos outros.

V — TERCEIRA NOITE: O CONSELHO DO SONO

Era já noite, penúltima, o Patanhoca continuava em sua casa. Estava deitado na esteira a arrumar assuntos de pensamento:
— É verdade. Matei os próprios dois meninos, foi sem querer. Essa noite a bebida confundiu minhas mãos. Troquei os mitombos. Mas essa china castigou-me bem.
E fechava os olhos como se doesse aquela lembrança aleijada, ela batendo-lhe frias na cabeça, partindo a garrafa, vidrando-lhe a carne. Sangue e cerveja escorrendo numa só espuma, os gritos dela desmaiaram no chão onde ele escureceu. Todos pensaram morreu. Mesmo ela que o deixara, feridas e vidros, ao cacimbo da noite. A china mudou-se para o subúrbio da cidade, montara o negócio. Ele rastejara na escuridão, mãos e vozes seguraram-lhe o sopro da vida e levaram-lhe por caminhos que ele só conhecia. Quis esquecer a china mas desconseguiu. Deitava o barco da sua vida nas outras águas: a mesma corrente o amarrava.
Decidiu mudar para o lugar dela, emboscou-se como caçador do seu destino. Encontrou-a e viu que ainda não tinha sido substituído. A Mississe ruava os pretendentes, seja eram ricos e poderosos. Estaria à sua espera?
Medo e vergonha não o deixaram mostrar-se. Apresentou-se pelas cobras, enviadas para afastar ameaças de ladrões. Se ela demorou a compreender, Patanhoca nunca soube. Ela não mostrava mudança, continuava viúva sem esperas. O sossego dela mentia?
Assim pensava suas perguntas João Patanhoca, o cobreiro da Mucha-tazina, enquanto deitava seus cansaços. Adormeceu na espera do conselho dos sonhos. Ouviu as visões com atenção. Diziam o seguinte: ela estava arrependida, perdoara. Ele seria aceite, outra vez João, outra vez nome e cara. Outra vez gostado.

V — A ÚLTIMA NOITE

A Mississe pusera mais outra vez aquele alvoroço no coração dele. Estava ali, na chuva da luz, apagando as estrelas. Só ela brilhava, saia e blusa brancas, cabelo desamarrado a pingar nos ombros. O Patanhoca sobrava do corpo: então era verdade a fala do sonho! Ela bonitava-se para a festa do seu regresso.
— Esta noite, João, vamos divertir.
Ele não respondeu nada, tinha medo de rosnar, desgraçar aquele João que ela lhe chamava. Com um gesto da cabeça ela apontou o corredor da cantina:
— Entra, João, vamos beber.
Ele subiu os degraus de pedra, sacudiu os pés à entrada, cruzou os tapetes, pedindo licenças em todos os cantos. Sobre um armário, na sala, tinha exposição da grande fotografia da felicidade deles, os dois mais os filhos, juntos a comemorar a vida.
Sentou-se com as cerimónias. Ela serviu os copos. Não era cerveja, era desses vinhos que dão tonturas mesmo antes de beber. Desfiava lembranças, doces missangas corriam entre um e outro copo. Ele foi perdendo maneiras e a bebida escorria-lhe no queixo, descarada.
— Vou parar de beber, Mississe. Estou a ver o mundo com muita velocidade.
Ela tinha um sorriso estranho, tranquilo de mais.
— Não, João. Bebe sua vontade. Eu quero que você beba. Depois, tenho um pedido.
E enchia outro copo, inimiga dos vazios. João estranhava o pedido, aflito desse depois que ela prometia. Esperanças e medos cruzavam e ele dizia o que não queria, sempre querendo o que não dizia.
— Mississe: não foi mitombos que eu troquei na minha vida. Troquei-me de mim. Agora, sou João ou Patanhoca?
Ela pegou-lhe nas mãos, fê-las uma e falou:
— João, faz favor, ouve: vai na tua casa, traz aquele mitombo que tu sabes. Quero tomar esta noite.
Então, era esse pedido? Ou talvez era uma armadilha, aldrabice de espe-ranças?
— Não posso, mulher. Estou grosso, faltam as pernas para acertar o caminho.
— Vai, João. O caminho tu sabes, olhos fechados.
Ele olhou em volta: a toalha de linho, a fotografia, coisas do tempo que fugira, estavam ali, testemunhas sem fala das suas vidas desencontradas. A Mississe insiste. Levanta-se e encosta o seu corpo de sabor quente, coloca as mãos nas costas suadas do Patanhoca. Ele estranha, já não sabe receber.
Ergue-se brusco, aponta o corredor e vai. Custa-lhe a linha daquele caminho. No fundo, volta-se num arrependimento quase:
— Mas, você? Qual é o mitombo, Mississe? A vacina das cobras?
Ela não responde, está de costas, na arrumação de pratos e copos.
— Sabes, Mississe? O único remédio sabes qual é?
E ri-se, fungando espirros. Ela olha-o, entristecida. Como custava olhar aquele riso que ele usava mas que não lhe pertencia.
— Mississe, estou-te a dizer: o remédio próprio é esse vinho que já acabamos.
— É tarde. Depressa-te, João.
Ele esforça-se nos degraus e vai-se metendo na noite. Parece que ela diz ainda qualquer coisa, ele não entende, abana a cabeça confuso. Será que ouviu bem? Voltar na China, foi o que ela disse? Tenho pressa da terra para nascer? Mania da china, concluiu ele baixinho.
Sorriu, compreensivo. A velha devia estar bêbada, coitada, até que merecia. Assim pensava, tropeado no caminho, João Patanhoca. Sentia pena dela. Afinal, ela era viva de um vivo, dele próprio. E há tantos anos que não tirava do armário a blusa das rendas, tantos anos que não estendia na mesa a branca toalha das visitas.


— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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