Vincent Bourilhon |
Só me lembro de ter sido barrado de uma biblioteca uma vez. Estava fazendo o doutorado e costumava frequentar uma biblioteca de uma universidade privada próxima da minha casa. Não era, decerto, para ter acesso ao acervo. Certo dia, tive a paciência de contar o número de livros de História existentes na Biblioteca Central de uma universidade com curso de graduação em História. Exatos 56 títulos. Eu ia lá para estudar. Mas certo dia fui impedido de entrar pois não era aluno e nem professor. É um estabelecimento privado e pode ser gerido com regras próprias. Mas sabemos que boa parte dos recursos sejam provenientes de programas de bolsas governamentais. Este parasitismo também se dá de outras formas: a universidade pública é que forma os jovens doutores que os estabelecimentos privados contratam para atingir as exigências do Ministério da Educação, ou professores aposentados de universidades públicas para gerir seus programas de pós-graduação.
Minha barração ocorreu na década de 1990, que assistiu a um espetacular crescimento do ensino superior privado no Brasil. Nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) o setor privado dobrou seu número de matrículas. As universidades públicas, embora tenham sofrido um corte de recursos da ordem de 7%, fizeram um bom esforço, aumentando suas vagas em 34%. Mas isso não foi suficiente para impedir uma diminuição da porcentagem que elas representavam, em apenas seis anos, de 1995 a 2001, ela caiu de 40% para 30% do total de estudantes matriculados, devido ao aumento desordenado das vagas nos estabelecimentos privados de ensino superior, fomentado claramente pelo governo.
Em 2016, quando escrevo, apenas um entre cada quatro universitários estuda em uma universidade pública, a despeito do enorme aumento do número de vagas com o programa REUNI - Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. E que se deu de forma desordenada, sem ampliação suficiente da infra-estrutura e sem a contratação proporcional de professores. Dou apenas um exemplo: em 1980, quando entrei no curso de graduação em História na UFF, as turmas eram de 25 alunos. Hoje em dia, uma turma do curso básico é de 62 alunos, mais do que o dobro, sem obviamente terem dobrado o número de professores, a biblioteca ou as instalações em geral.
De qualquer forma, o fato inescapável é que 75% dos universitários são alunos do ensino superior privado. Certa vez, movido pela curiosidade pedagógica, visitei um destes estabelecimentos. Mais precisamente o curso de História do grupo Estácio, que está prestes a se fundir com o gigante Kroton, formando uma empresa que vai ter 1,6 milhões de alunos-clientes, ou seja, apenas 2% a menos do que o total dos matriculados em universidades públicas.
O que encontrei nesta "escola" foi algo muito próximo a um Big Brother pedagógico. No curso presencial, os alunos são obrigados a fazer 20% das disciplinas online. Mesmo nos cursos presenciais, 20% dos pontos vêm da sua “participação” em fóruns da internet interna. Se o professor demorar a responder uma pergunta deste fórum, o sistema automaticamente o acusa. Assim como acusa a entrega de notas com atraso e a demora na feitura de centenas de questões que vão para um banco de dados nacional que mais tarde sorteará as questões de prova. Os alunos também dão a sua contribuição: como cada matéria já tem um programa fixo, não estabelecido pelo professor que a leciona, o aluno pode reclamar se determinado conteúdo, o item 3.1.2, por exemplo, não foi apresentado em aula.
Os coordenadores encarregados de tomar conta de todo o sistema, recebem as queixas dos alunos, devidamente encaminhadas por computador e submetidas (também via máquina) à triagem dos funcionários administrativos. Os vigias também são vigiados: tudo é registrado em uma espécie de protocolo daqueles de telemarketing. Caso o coordenador não resolva bem as reclamações – devidamente pontuadas pelos alunos, deixa de marcar pontos. Nem preciso dizer que a pontuação implica em mais ou menos salário, o famoso pagamento por “produtividade”. Os campi (não seria melhor dizer filiais? Ou franquias?) obviamente competem entre si, implicando em novos incentivos ou punições financeiras. No lugar do chicote: os pontinhos e seu equivalente em dinheiro.
Os alunos odeiam aquilo tudo e resistem ao máximo. Mas todo o seu rendimento também é monitorado através de meios virtuais. Acostumados a apostilas e textos depositados no site do curso, estranham quando o professor passa textos “extras”, livros, por exemplo. De qualquer forma, há alguns materiais importantes disponíveis para os estudantes.
As aulas online são gravadas em um estúdio de televisão com presença somente do câmera e do técnico. Os professores são altamente “estimulados” a aceitarem gravar cursos inteiros, que serão passados indefinidamente para turmas presenciais de até 100 alunos, sem falar nas multidões internéticas do EAD, Ensino (?) à distância. O campus em questão tem tantos alunos que todo o atendimento na secretaria tem que ser agendado. Adivinhe como? Claro que por computador. Nenhum professor tem qualquer tipo de estabilidade, são todos pagos por hora. Mas não são contados os sábados e domingos à noite trabalhando no computador.
O professor que me permitiu o acesso a esta linha de montagem só permitiu que eu publicasse este artigo dois anos depois de feito, quando ele já havia conseguido passar em um concurso para uma universidade federal. À época em que conversamos, ele me disse, em um tom de cansaço, que não tinha Facebook. Por um motivo simples: havia adquirido horror à Internet, tudo que se relacionava a ela era trabalho, controle e vigilância para ele, que estava claramente traumatizado.
O pior desta história toda é que não foi somente o governo de FHC que estimulou o crescimento da MacEducação. Nunca antes na história deste país o governo deu tanto dinheiro às universidades privadas quantos nos governos Lula e Dilma. O FIES, Fundo de Financiamento Estudantil irriga o mar em que nadam os tubarões do Ensino com bilhões de reais a cada ano, ao mesmo tempo em que no ano passado as universidades públicas sofreram um corte impiedoso de quase 10 bilhões de reais.
O professor me contou que tudo ficou pior e o sistema apertou seus controles depois da Universidade ser comprada por uma grande multinacional do setor de alimentos, dona de muitas outras empresas. Aqui se fabricam diplomas como se fabricam produtos, comenta. Mas o que ruim ainda pode piorar. A Direção acaba de implantar um novo programa, muito similar ao ISO 9000. Além de metas, há também visitas in loco. Uma espécie de inspeção fabril. De qualquer forma, por enquanto ainda são feitas por seres humanos.
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SOBRE O AUTOR
(*) Marcos Alvito Pereira de Souza - Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP)
:: Área de atuação: Cultura Popular Carioca/ História das Favelas/ História e Antropologia
:: Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)
:: Currículo Lattes: ALVITO, Marcos. (acessado em 26.8.2016).
:: Blogue Marcos Alvito. (acessado em 26.8.2016).
Gente, peraí. Acho que misturaram todos os assuntos aqui! Tratar a educação como um produto e oferecer aulas de menor qualidade é compreensível que se reclame, mas reclamar porque o aluno exigiu o seu direito de questionar uma prova que cobra o que não foi ensinado? Reclamar que há um chefe fiscalizando? Reclamar de ter que entregar a nota na data certa? Isso é algo comum em qualquer emprego! Haha! Oi?! Acham que professores são seres especiais que podem entregar trabalho quando quiser, dar a aula que estiver afim e não ter ninguém para cobrar nada? Se fosse tudo oba-oba assim imagina só, íamos fazer uma compra online e receber quando a empresa tiver tempo de enviar, contrataríamos um serviço qualquer e a pessoa faria quando estivesse de bom humor, não existiriam chefes no mundo em nenhuma empresa com nenhum tipo de cobrança! Imagina?! Como seria o mundo nessa desordem/sonho? É o que todo mundo deseja, fazer tudo na hora que quer, mas não funciona na engrenagem de qualquer empresa, cidade, país, sei lá.
ResponderExcluirBasicamente vocês estão reclamando que a Estácio tem organização? Desculpe, mas não é tudo que vem da Federal que é bom não, inclusive ter professores que lançam nota MESES depois que fizemos as provas. Desrespeitoso e vergonhoso! Pior ainda, reclamaram de receber por hora?! Caramba, inúmeros empregos funcionam dessa forma, é absolutamente comum e funciona assim para várias pessoas.
Basicamente o que vi aqui foi um post de alguém que quer trabalhar como está afim, sem chefes, sem cobranças e recebendo independente das horas de serviço, ou seja, recebendo até pra qndo está fazendo nada. Hahaha Sonho de qualquer um, só fica depois de não querer trabalhar, né?!
Hoje estudo numa faculdade privada, e é exatamente essa e assim a angústia. Por um lado me felicito que tantos colegas, antes sem perspectiva de acesso, frequentem o ensino universitário através de FIES e Prouni (como eu). Por outro lado, me desespero pelo preço alto - não financeiro somente, o maior preço, o vital, intelectual, simbólico, temporal - que custa essa guinada(?) social.
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