© Barbara Olsen |
Borboleta angélica
Estavam sentados no jipe, imóveis e silenciosos: moravam juntos havia dois meses, mas não tinham muita intimidade. Naquele dia era o francês que guiava. Percorreram o Kurfürstendamm sacolejando no pavimento desconjuntado, dobraram na Glockenstrasse contornando cuidadosamente uma pilha de escombros e seguiram por ela até a altura da Magdalene: aqui uma cratera de bomba barrava a estrada, cheia de água barrenta; de um duto subterrâneo o gás borbulhava em grandes bolhas viscosas.
“É mais adiante, no número 26”, disse o inglês; “vamos prosseguir a pé.”
A casa do número 26 parecia intacta, mas estava quase isolada. Era circundada por terrenos baldios, limpos de escombros; o capim já crescia, e aqui e ali germinava uma horta raquítica.
A campainha não funcionava; bateram várias vezes sem sucesso, depois forçaram a porta, que cedeu ao primeiro empurrão. Dentro havia poeira, teias de aranha e um cheiro pungente de mofo. Vamos ao primeiro andar — disse o inglês. No primeiro andar encontraram a placa “Leeb”; havia duas fechaduras, e a porta era robusta — resistiu longamente aos seus esforços.
Quando entraram, viram-se no escuro. O russo acendeu uma lanterna e em seguida abriu uma janela; ouviu-se uma rápida fuga de ratos, sem que se vissem os bichos. O quarto estava vazio: nenhum móvel. Havia apenas um andaime tosco e duas varas robustas, paralelas, que corriam horizontalmente de uma parede a outra, a dois metros do piso. O americano tirou três fotos de diversos ângulos e fez um rápido esboço.
No chão havia uma camada de trapos imundos, papéis, ossos, plumas, cascas de fruta; grandes manchas vermelho-escuras, que o americano raspou meticulosamente com uma lâmina, recolhendo o pó num tubinho de vidro. Num canto, um montinho de matéria indefinível, branca e cinza, seca: cheirava a amônia e a ovo podre, e pululava de vermes. “Herrenvolk!”, disse o russo com desprezo (falavam alemão entre eles); o americano também recolheu uma amostra do material.
O inglês apanhou um osso, levou-o à janela e o examinou com atenção. “São de que animal?”, perguntou o francês. “Não sei”, disse o inglês, “nunca vi um osso como este. Parece de um pássaro pré-histórico; mas esta crista só se encontra... bem, será preciso fazer uma secção sutil.” Em sua voz havia asco, ódio e curiosidade.
Recolheram todos os ossos e os levaram para o jipe. Ao redor do veículo havia uma pequena multidão de curiosos: um menino subira no carro e vasculhava embaixo dos bancos. Quando viram os quatro soldados, se afastaram depressa. Conseguiram deter apenas três deles: dois velhos e uma jovem. Foram interrogados: não sabiam de nada. O professor Leeb? Não conheciam. A sra. Spengler, do térreo? Morrera nos bombardeios.
Subiram no jipe e ligaram o motor. Mas a jovem, que já estava indo embora, voltou e perguntou: “Vocês têm cigarros?”. Tinham. A jovem disse: “Quando fizeram a festa com os bichos do doutor Leeb, eu estava lá”. Colocaram-na no jipe e a conduziram ao Comando dos Quatro.
“Então a história era mesmo verdadeira?”, indagou o francês.
“Parece”, respondeu o inglês.
“Um belo trabalho para os especialistas”, disse o francês apalpando o saco de ossos, “mas também para nós: agora devemos redigir o relatório, não há saída. Trabalho infame!”
Hilbert estava furioso: “Guano”, disse. “Que mais vocês querem saber? De que pássaro? Perguntem a uma cartomante, não a um químico. Há quatro dias venho quebrando a cabeça com os seus achados nojentos; que me enforquem se o diabo em pessoa souber algo mais. Tragam-me outras amostras: guano de albatroz, de pingüins, de gaivotas; aí poderei fazer comparações e quem sabe, com um pouco de sorte, voltemos a falar sobre isso. Eu não sou um especialista em guano. Quanto às manchas no pavimento, encontrei vestígios de hemoglobina — mas, se me perguntarem a procedência, acabarei no quartel.”
“Por que no quartel?”, perguntou o comissário.
“No quartel, sim: porque, se alguém me perguntar isso, direi que é um imbecil, mesmo que seja meu superior. Há de tudo lá dentro: sangue, cimento, xixi de gato e de rato, chucrute, cerveja, em suma, a quintessência da Alemanha.”
O coronel ergueu-se pesadamente: “Por hoje basta”, disse. “Amanhã à noite vocês serão meus hóspedes. Encontrei um bom lugar no Grünewald, à beira do lago. Voltaremos a falar sobre o assunto quando estivermos lá, com os nervos mais relaxados.”
Era uma cervejaria muito freqüentada, onde se podia encontrar de tudo. Ao lado do coronel estavam Hilbert e Smirnov, o biólogo. Os quatro do jipe estavam sentados nas laterais da mesa; ao fundo, um jornalista e Leduc, do tribunal militar.
“Esse Leeb”, disse o coronel, “era um sujeito estranho. Como vocês sabem, sua época era propícia a teorias, e se a teoria estivesse em harmonia com o ambiente não era necessária muita documentação para que encontrasse boa acolhida e fosse aprovada, mesmo nos altos escalões. Mas Leeb era, a seu modo, um cientista sério: buscava os fatos, não o sucesso.”
“Ora, não esperem que eu lhes explique as teorias de Leeb nos mínimos detalhes: em primeiro lugar, porque só pude entendê-las do ponto de vista de um coronel; em segundo, porque, na condição de membro da Igreja presbiteriana... enfim, acredito na imortalidade da alma, e prezo muito a minha.”
“Ouça, chefe”, interrompeu Hilbert, obstinado, “ouça. Diga-nos o que sabe, por favor. Não é por nada, mas ontem fez três meses, e desde então não pensamos em outra coisa... enfim, me parece que chegou a hora de saber o jogo que estamos jogando. Até para podermos trabalhar com um pouco mais de inteligência, claro.”
“É mais que justo, e é por isso que estamos aqui esta noite. Mas não se espantem se apresento as coisas com uma certa distância. E você, Smirnov, me corrija se eu estiver delirando.
“É o seguinte. Em certos lagos do México vive um animalzinho de nome impronunciável, meio parecido com uma salamandra. Vive tranqüilo há não sei quantos milhões de anos, como se nada fosse, e no entanto é o agente responsável por uma espécie de escândalo biológico, porque se reproduz em estado larvar. Ora, de acordo com o que me explicaram, isso é um fato gravíssimo, uma heresia intolerável, um golpe baixo da natureza contra os seus estudiosos e legisladores. Em suma, é como se uma lagarta, uma fêmea, copulasse com outra lagarta, fosse fecundada e depositasse seus ovos antes de se tornar borboleta. E dos ovos naturalmente nascessem outras lagartas. Então para que serve transformar-se em borboleta? Para que se tornar um ‘inseto perfeito’? Seria perfeitamente dispensável.
“De fato, o axolotle pode prescindir disso (esse é o nome do monstrinho, me esqueci de mencionar). Quase sempre pode prescindir: somente um em cada cem ou mil, talvez um exemplar mais longevo, se transforma num animal diverso tempos depois de se ter reproduzido. Não faça essas caretas, Smirnov, ou então fale você. Cada um se exprime como pode e como sabe.”
Fez uma pausa. “Neotenia: é assim que se chama esse imbróglio, quando um animal se reproduz em estado de larva.”
O jantar havia terminado, e chegara a hora de fumar cachimbo. Os nove homens se transferiram para o terraço, e o francês disse: “Compreendo, tudo é muito interessante, mas não vejo a relação que...”.
“Chegaremos lá. Falta ainda dizer que, há algumas décadas, parece que eles (e acenou na direção de Smirnov) conseguem manipular esses fenômenos, controlá-los em certa medida. Que, injetando nos axolotles extratos hormonais...”
“Extrato tireóideo”, especificou Smirnov, de má vontade.
“Obrigado. Com esse extrato tireóideo a mutação sempre ocorreria. Isto é, ocorreria antes da morte do animal. Isso é o que Leeb tinha em mente. Noutros termos: que essa condição não seria tão excepcional quanto parece, que outros animais — talvez muitos, quem sabe o próprio homem — talvez tenham alguma reserva, uma potencialidade, uma ulterior capacidade de desenvolvimento. Que, longe de qualquer suspeita, talvez estejam em estado de rascunho, de borrão, podendo transformar-se em ‘outros’ — e não o fazem somente porque a morte intervém antes. Enfim, que nós também seríamos neotênicos.”
“Em que bases experimentais?”, perguntou-se no escuro.
“Nenhuma, ou pouca. Consta de um longo manuscrito de Leeb, que foi arquivado: uma curiosa mistura de observações argutas, de generalizações temerárias, de teorias extravagantes e obscuras, de divagações literárias e mitológicas, de notas polêmicas e cheias de rancor, de elogios pegajosos a Pessoas Muito Importantes da época. Não me surpreende que continue inédito. Há um capítulo sobre a terceira dentição dos centenários que contém inclusive uma curiosa casuística sobre calvos cujos cabelos voltam a crescer em idade avançadíssima. Um outro diz respeito à iconografia de anjos e demônios, dos sumérios a Melozzo da Forlí e de Cimabue a Rouault; contém uma passagem que me pareceu fundamental, em que, à sua maneira apodíctica e confusa, mas com insistência maníaca, Leeb formula a hipótese de que... enfim, que os anjos não seriam uma invenção fantasiosa, nem seres sobrenaturais, nem um sonho poético, mas são o nosso futuro, ou seja, aquilo em que nos transformaremos, em que poderíamos nos tornar se vivêssemos o bastante ou se nos submetêssemos às suas manipulações. De fato, o capítulo seguinte, que é o mais longo do tratado e que me pareceu o mais impenetrável, se intitula Os fundamentos fisiológicos da metempsicose. Um outro contém um programa de experiências sobre a alimentação humana — um projeto tão ambicioso que cem vidas não bastariam para realizá-lo. Nele se propõe submeter um vilarejo inteiro, por várias gerações, a regimes alimentares alucinados, à base de leite fermentado ou de ovas de peixe ou de cevada germinante ou de baba de algas: com exclusão rigorosa da exogamia, sacrifício de todos os indivíduos de sessenta anos (está escrito assim mesmo: ‘Opferung’) e sucessiva autópsia — que Deus o perdoe, se for possível. Há ainda, em epígrafe, uma citação da Divina comédia, em italiano, onde se trata de vermes, de insetos distantes da perfeição e de ‘borboletas angélicas’. Quase me esqueci: o manuscrito é precedido de uma epístola dedicatória, endereçada sabem a quem? A Alfred Rosenberg, o do Mito do século XX, e é seguido de um apêndice em que Leeb alude a um trabalho experimental ‘de caráter mais modesto’, iniciado por ele em março de 1943: um ciclo de experiências de caráter pioneiro e preliminar, desenvolvido (com as devidas precauções quanto à segurança) em um simples apartamento civil. O alojamento civil que lhe foi concedido para esse fim se situava no número 26 da Glockenstrasse.”
“Meu nome é Gertrud Enk”, disse a jovem. “Tenho dezenove anos e tinha dezesseis quando o doutor Leeb instalou seu laboratório na Glockenstrasse. Morávamos em frente, e da janela podíamos ver várias coisas. Em setembro de 1943, chegou uma caminhonete militar: desceram quatro homens fardados e quatro em trajes civis. Eram muito magros e não levantavam a cabeça: dois homens e duas mulheres.
“Depois chegaram várias caixas, com a inscrição ‘Material de guerra’. Éramos muito prudentes e só olhávamos quando estávamos seguros de que ninguém perceberia, porque entendêramos que ali havia algo de pouco claro. Por muitos meses não aconteceu mais nada. O professor vinha sozinho, uma ou duas vezes por mês; só ou com os militares e membros do partido. Eu tinha muita curiosidade, mas meu pai sempre dizia: ‘Deixe estar, não se preocupe com o que se passa lá dentro. Nós, alemães, quanto menos coisas soubermos, melhor’. Depois vieram os bombardeios; a casa do número 26 ficou de pé, mas por duas vezes o deslocamento de ar rompeu as janelas.
“Na primeira vez, foi possível ver no quarto do primeiro andar as quatro pessoas deitadas no chão, em colchões de palha. Estavam cobertas como se fosse inverno, quando naqueles dias fazia um calor excepcional. Parecia que estavam mortas ou que dormiam: mas não deviam estar mortas, porque o enfermeiro que as acompanhava lia tranqüilamente o jornal enquanto fumava cachimbo; e, se estivessem dormindo, não teriam acordado com as sirenas que anunciavam o fim do ataque?
“Na segunda vez, no entanto, não havia nem colchões nem pessoas. Havia quatro tábuas postas de través, a meia altura, e quatro monstrengos pousados sobre elas.”
“Quatro monstrengos como?”, indagou o coronel.
“Quatro pássaros: pareciam águias, embora eu só tenha visto águias no cinema. Estavam assustados e davam gritos aterradores. Parecia que tentavam pular das tábuas, mas deviam estar acorrentados, porque nunca tiravam os pés dos apoios. Também pareciam tentar voar, mas com aquelas asas...”
“Como eram as asas?”
“Asas por modo de dizer, com poucas penas, e ralas. Pareciam... pareciam asas de um frango assado. Não se viam bem as cabeças, porque nossas janelas eram muito altas; mas não eram nada bonitas e causavam grande impressão. Pareciam cabeças de múmias expostas nos museus. Mas depois logo chegou o enfermeiro, que estendeu cobertores de modo que não se pudesse ver dentro. No dia seguinte as janelas já estavam reparadas.”
“E depois?”
“Depois mais nada. Os bombardeios eram cada vez mais pesados, dois, três por dia; nossa casa ruiu, todos morreram, salvo meu pai e eu. No entanto, como já disse, a casa do número 26 continuou de pé; só a viúva Spengler morreu, mas na rua, surpreendida por uma metralhada rasante.
“Os russos chegaram, a guerra acabou, e todos tinham fome. Nós havíamos erguido uma barraca ali defronte, e eu sobrevivia como podia. Numa noite, vimos muita gente falando na rua, em frente ao número 26. Depois alguém abriu a porta e todos entraram, esbarrando uns nos outros. Então eu disse a meu pai: ‘Vou ver o que está acontecendo’; ele sempre me repetia a mesma coisa, mas eu tinha fome e fui. Quando cheguei lá em cima, não tinha sobrado quase nada.”
“Sobrado o quê?”
“Fizeram a festa com eles, usando bastões e facas: já os haviam feito em pedaços. Quem estava à frente de todos era o enfermeiro, acho que o reconheci; além disso, era ele que tinha a chave. Alias, lembro que no final ele se deu ao trabalho de fechar todas as portas, sabe-se lá por quê: não havia mais nada lá dentro.”
“E o que foi feito do professor?”, perguntou Hilbert.
“Não se sabe exatamente”, respondeu o coronel. “Segundo a versão oficial, enforcou-se com a chegada dos russos. Mas estou convencido de que não é verdade: porque homens como ele só desistem diante do fracasso, e ele, ao contrário — como quer que se julgue essa história abjeta —, teve o seu sucesso. Creio que, procurando bem, ele seria encontrado, talvez nem esteja longe daqui; creio que ainda ouviremos falar do professor Leeb.”
— Primo Levi, no livro "71 contos". [tradução de Maurício Santana Dias]. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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