© Vincent van Gogh |
Os cascamorros
O que chamava atenção não era tanto a frase, mas a posição que o pintor deu às letras. Umas ficavam deitadas, outras de cabeça para baixo, outras eram vistas meio de lado, só umas duas ou três apareciam na posição certa, e o “S” vinha sempre de costas. E o mais curioso era que as letras nem estavam na ordem certa, e muito menos no alinhamento. Verdade que ninguém precisava forçar a cabeça para decifrar o que diziam, a frase saltava aos olhos quase que instantaneamente: COMPRA-SE, TROCA-SE PROBLEMAS. Eu passava ali frequentemente sem atentar para o significado do letreiro — até que um dia a curiosidade feriu-me de repente e resolvi entrar para ver que espécie de negócio se contratava naquela loja.
Eu não sabia que lá dentro era tão escuro, nem que havia uns degraus de tábuas para descer. Se não me agarrasse a umas coisas que estavam penduradas nos portais teria caído de cara no chão. Equilibrei-me mas derrubei tudo — vassouras, espanadores, chocolateiras — em cima de um gato que devia estar dormindo ao pé dos degraus e que saltou bufando para cima do balcão e daí para a sobreloja.
Eu estava ainda atrapalhado com os objetos embaraçantes e barulhentos quando um senhor miúdo de colete xadrez veio lá de dentro piscando muito e ajeitando os óculos.
— O senhor me desculpe. Eu não sabia dos degraus e...
— Não vem ao caso. Não vem ao caso — assegurou ele com certo mau humor. — O senhor deseja?...
A frase ficou suspensa numa interrogação antipática, enquanto eu pensava se queria realmente conversar com ele ou se faria melhor virando as costas e saindo. Ele deve ter notado a minha inclinação à desistência, porque logo mudou de tática: — Não se incomode com essas tralhas. Ainda não tive tempo de arranjar lugar melhor para elas. Em todo caso, antes caiam as vassouras do que os clientes — e sorriu como para mostrar que o bem-estar dos clientes vinha primeiro.
Não sabendo o que ele queria dizer por cliente, não me senti lisonjeado. Empurrei as coisas para um lado com o pé mais para ter o que fazer do que para limpar o caminho, e avancei até o balcão. Mesmo notando que ele me estudava com seus olhinhos aguçados, olhei em volta para ver se deduzia alguma coisa pelo que estivesse à mostra na loja. Em cima do balcão só havia um rolo de fumo montado numa carretilha; e nas prateleiras, que iam quase até o teto, umas caixas enormes de madeira numeradas. O que ele tivesse ali estava bem escondido.
— É melhor o senhor perguntar logo onde é que os guardo — disse ele com um sorriso paciente. — Essa é a pergunta que todos fazem.
Tive de confessar que realmente isso era uma coisa que eu gostaria de saber. Ele sacudiu a cabeça e disse que era mau sinal; se eu tinha vagar para essa curiosidade, o meu interesse era apenas acadêmico.
— O senhor me desculpe — Completou ele — mas eu estou aqui para ajudar, não para distrair.
Achei a observação meio fora de propósito, mas pensando na idade do homem resolvi deixá-la passar. Também para ser justo eu devia admitir que ele tinha razão: imagine-se o pobre homem talvez reumático, talvez cardíaco, com a vista falhando, preso atrás do balcão na loja escura, explicando tudo direitinho a cada curioso que entrasse — e sem o direito de irritar-se uma vez ou outra! Tive pena dele por ter escolhido um ramo tão excêntrico, se é que não se viu metido nele contra a vontade. Senti uma necessidade urgente de ser gentil com ele, de não lhe agravar as atribulações. Disse-lhe que embora fosse verdade que eu havia entrado ali por simples curiosidade, isso não queria dizer que eu não pudesse ser cliente um dia, qualidade que ele mesmo me atribuíra momentos antes.
— Quando eu tiver o que vender ou trocar — prometi — pode ficar certo que lhe darei preferência.
— Quando tiver? Tem certeza de poder falar assim? No futuro? Pense bem.
A sem-cerimônia da observação desconcertou-me, e devo mesmo ter corado; felizmente ele não pôde notar essa minha vulnerabilidade devido à escuridão da loja.
— Bom... que eu saiba... — gaguejei por fim.
— É sempre assim. Eles nunca sabem de nada! — exclamou o velhinho com uma desolação que me pareceu exagerada. — Por que não podem ser sinceros ao menos uma vez na vida? Entram aqui como quem não quer nada, rodeiam, disfarçam, perguntam e acabam eles mesmos tomando o metro ou a balança e tocam a medir e pesar, e ainda infestam na medida! Vendo que ele se irritava com as próprias palavras — as últimas saíram quase berradas — procurei acalmá-lo, mas ele não me dava atenção. Bufando, e tossindo, abaixou-se atrás do balcão e apanhou uma balança, que empurrou bruscamente para perto de mim.
— Está aí. Pese. Quero ver quanto valem.
Pensei que ele esperasse de mim alguma espécie de representação, e apesar de não ter muito jeito para representar senti-me inclinado a atender. A dificuldade era que não sabia como começar, que gestos fazer nem de onde devia tirar a mercadoria — se dos ombros, dos bolsos ou da cabeça. E o velhinho observando, esperando. Olhei a balança, uma dessas de pratos, ponteiro e mostrador. Experimentei-a com a mão, não para ver se estava funcionando mas para me dar tempo de pensar. Infelizmente ele interpretou mal esse gesto e explicou, ofendido: — Foi aferida, sim senhor. Não tenha receio que aqui não se lesa ninguém.
Eu estava mesmo com pouca sorte. Se tivesse me oferecido um metro em vez de uma balança eu poderia fazer os gestos que ele esperava de mim sem denunciar a minha atrapalhação. Porque só há um jeito de medir com metro, que é juntar e separar repetidamente os polegares, tocando com eles as extremidades do metro.
Quando já me parecia que a única saída seria expor francamente a minha atrapalhação, ele virou o mostrador da balança para o lado dele, tirou um caderninho com lápis do bolso do colete, consultou o mostrador e disse: — É. Mais ou menos o que eu calculei. Errei por pouco — assentou qualquer coisa no caderno, disse olhando-me por cima dos óculos: — É só o que podemos fazer por enquanto. Só trabalhamos em consignação.
Como eu continuasse sem entender, era natural que mostrasse espanto.
— Essa tem sido a nossa norma — disse ele defensivamente. — Foi traçada pelos fundadores, e eu não vejo vantagem em modificá-la. Se o senhor não está de acordo... — fez um gesto que tomei como significando que eu poderia levar a mercadoria de volta.
Antes que eu tivesse tempo de dizer o que penso da conveniência das normas para qualquer negócio bem organizado, um homem alto, de braços compridos e avental de couro entrou na loja, curvando-se para passar na porta.
— A carga está aí — disse ele ao velhinho, cocando a cabeça meio inclinada e olhando qualquer coisa entre as unhas.
— Quanto hoje? — perguntou o velho não muito interessado.
— Vinte sacos.
— Descarrega — disse o velho suspirando, como se a descarga não fosse de seu agrado e ele nada pudesse fazer em outro sentido.
— O senhor vê — disse para mim. — O mercado hoje é vendedor. Ninguém quer comprar. Se ainda estamos abertos é por honra da firma. Já não tenho onde empilhar tanto saco.
Perguntei o que ele fazia em caso de deterioração, ele assegurou-me que praticamente não havia perda; a deterioração era mínima, não tinha peso estatístico. Felicitei-o por essa vantagem, ele respondeu que o caso era mais para lamentar do que para exultar.
— Se houvesse deterioração, poderíamos nos livrar de alguns sacos de vez em quando atirando-os em alguma vala. Mas assim... não sei onde iremos parar.
O homem de avental já estava descarregando os sacos, passando com eles por dentro da lojinha acanhada, derrubando caixas das prateleiras, empacando com eles nas portas estreitas. Umas duas ou três vezes tive de ajudá-lo a desembaraçar um saco mais bojudo, forçando-o a socos e aproveitando o pretexto para sentir a consistência da mercadoria. (Não cheguei a uma conclusão, os sacos pareciam levar farinha ou areia fina.) Perguntei o que aconteceria se um daqueles sacos se rasgasse e derramasse a mercadoria. O velhinho olhou-me apavorado, bateu três vezes com os nós dos dedos no balcão.
— Brinca não. Seria um desastre. Todo mundo teria que fugir com a roupa do corpo.
— Sério assim?
— Então! O meu amigo parece que ainda não entendeu. Isso espalha como jiquitaia, entra pelos poros, inutiliza a pessoa. Só escapam os que têm couraça natural invisível, os chamados cascamorros. Fale em derramar isso não, nem brincando. Que horror! Não ganhei para o susto.
E sentou-se arrasado num tamborete, sacudindo a cabeça e abanando-se ofegante.
— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". [seleção de J. Aderaldo Castelo]. São Paulo: Global Editora, 2000.
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