© Alberto Macone |
(prefácio)
A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentidos de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. No terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.
Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos; donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva — demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato — a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração.
Serão essas — as com alguma coisa excepta — as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins; e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”.
Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: — “Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!...” Larga o herói a carrocinha, corre, vôa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama: — “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...”
Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito.
De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia — e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-gis-de-prender-peru — será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: — “Trocar... com quem?”
Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla:
“Esta sí que es calle, calle;
calle de valor y miedo.
Quiero entrar y no me dejan,
quiero salir y no puedo.”
Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente — e de modo novo original — a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido na multidão, na praça, em festa de quermesse, se aproxima de um polícia e, choramingando, indaga: — “Seo guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!”
Entretanto — e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto? — aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as sucessivas falsas ligações, que o telefone lhe perpetrava: — “Telefonista, dê-me, por favor, um ‘número errado’ errado...”
Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos — sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o incognoscível — a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o telégrafo-sem-fio:
— “Imagine um cachorro basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e a ponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, no Rio, pega a latir...”
— “E é isso o telégrafo-sem-fio?”
— “Não. Isso é o telégrafo com fio. O sem-fio é a mesma coisa... mas sem o corpo do cachorro.”
Já de menos invenção — valendo por “fallacia non causae pro causa” e a ilustrar o: “ab absurdo sequitur quodlibet”, em aras da Escolástica — é a facécia do diálogo:
— “Em escavações, no meu país, encontraram-se fios de cobre: prova de que os primitivos habitantes conheciam já o telégrafo...”
— “Pois, no meu, em escavações, não se encontrou fio nenhum. Prova de que, lá, pré-historicamente, já se usava o telégrafo-sem-fio.”
E destoa o tópico, para o elementar, transposto em escala de ingênua hilaridade, chocarrice, neste:
— “Joãozinho, dê um exemplo de substantivo concreto.”
— “Minhas calças, Professora.”
— “E de abstrato?”
— “As suas, Professora.”
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de operações subtrativas, nesta outra, que é uma definição “por extração” — “O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo...” (Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra a ideia do “nada absoluto”: “... porque a ideia do objeto ‘não existindo’ é necessariamente a ideia do objeto ‘existindo’, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco.” Trocado em miúdo: esse “nada” seria apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.)
Ou — agora o motivo lúdico — fornece-nos outro menino, com sua também desitiva definição do “nada”: — “É um balão, sem pele...”
E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação parcial, como, exemplo à mão, as estrelas, que no “Soir Religieux” de Verhaeren:
“Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,
Dont on n’aperçoit pas monter la tige immense.”
Ou total, como nesta “adivinha”, que propunha uma menina do sertão. — “O que é, o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre?” Resposta: — “É nada.”
Ou seriada, como na universal estória dos “Dez pretinhos” (“Seven little Indians” ou “Ten little Nigger boys”; “Dix petits négrillons”; “Zwölf kleine Neger”)1 ou na quadra de Apporelly, citada de memória:
“As minhas ceroulas novas,
ceroulas das mais modernas,
não têm cós, não têm cadarços,
não têm botões e não têm pernas.”
E é provocativo movimento parafrasear tais versos:
Comprei uns óculos novos,
óculos dos mais excelentes:
não têm aros, não têm asas,
não têm grau e não têm lentes...
Dissuada-se-nos porém de aplicar — por exame de sentir, balanço ou divertimento — a paráfrase a mais íntimos assuntos:
Meu amor é bem sincero,
amor dos mais convincentes:
....................... (etc.).
Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico desilusionante.
Como no fato do espartano — nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco — que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou: — “Você é uma voz, e mais nada!”
Assim atribui-se a Voltaire — que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do espírito” — a estrafalária seguinte definição de “metafísica”: “É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto... que não está lá.”
Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que busca, mas topar resultado mais importante — para lá da tacteada concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan do Zen.
E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico: “R. / Uso int.º / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q. s.” (E eliminou-se de propósito, nesta versão, o “Hidrogeni protoxidis”, que figura noutras variantes.)
Tudo portanto, o que em compensação vale2 é que as coisas não são em si tão simples, se bem que ilusórias. “O erro não existe: pois que enganar-se seria pensar ou dizer o que não é, isto é: não pensar nada, não dizer nada” — proclama genial Protágoras; nisto, Platão é do contra, querendo que o erro seja coisa positiva; aqui, porém, sejamos amigos de Platão, mas ainda mais amigos da verdade; pela qual, aliás, diga-se, luta-se ainda e muito, no pensamento grego.
Pois, o próprio Apporelly, em vésperas da nacional e política desordem, costumava hastear o refrão:
“Há qualquer coisa no ar
além dos aviões da Panair...”
Ainda, por azo da triunfal chegada ao Rio do aviador Sarmento de Beires em raid transatlântico, estampou ele no “A Manha”... uma foto normal da Guanabara, Pão de Açúcar, sob legenda: “O Argos, à entrada da barra, quando ainda não se o via...” Mas um capítulo sobre o entusiasmo, a fé, a expectação criadora, podia epigrafar-se com a braba piada.
Deixemos vir os pequenos em geral notáveis intérpretes, convocando-os do livro “Criança diz cada uma!”, de Pedro Bloch:
O túnel. O menino cisma e pergunta: — “ Por que será que sempre constroem um morro em cima dos túneis?”
O terreno. Diante de uma casa em demolição, o menino observa: — “Olha, pai! Estão fazendo um terreno!”
O viaduto. A guriazinha de quatro anos olhou, do alto do Viaduto do Chá, o Vale, e exclamou empolgada: — “Mamãe!
Olha! Que buraco lindo!”
A risada. A menina — estavam de visita a um protético — repentinamente entrou na sala, com uma dentadura articulada, que descobrira em alguma prateleira: — “Titia! Titia! Encontrei uma risada!”
O verdadeiro gato. O menino explicava ao pai a morte do bichinho: — “O gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato.”
Recresce que o processo às vezes se aplica, prática e rapidamente, a bem da simplificação. Entra uma dama em loja de fazendas e pede:
— “Tem o Sr. pano para remendos?”
— “E de que cor são os buracos, minha senhora?”
Ao passo que a nada, ao “nada privativo”, teve aquele outro, anti-poeta, de reduzir a girafa, que passava da marca: — “Você está vendo esse bicho aí? Pois ele não existe!...” — como recurso para sutilizar o excesso de existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal: — Isto é o-que-é que mais e demais há, do que nem não há...
Ora, porém, a idêntica niilificação enfática recorre Rilke, trazendo, de forte maneira, do imaginário ao real, um ser fabuloso, que preexcede — o Licorne:
“Oh, este é o animal que não existe...”
Todavia desdeixante rasgo dialético foi o do que, ao reencontrar velho amigo, que pedia-lhe o segredo da aparente e invariada mocidade, respondeu: — “Mulheres...” — e, após suspensão e pausa: — “Evito-as...!”
Tudo tal a “hipótese de trabalho” na estória dos soldados famintos que ensinaram à velha avarenta fazer a “Sopa de Pedra”. Mistura também a gente interina clara de ovo ao açúcar a limpar-se no tacho; e junta folhas de mamoeiro e bosta de vaca à roupa alva sendo lavada.
Remite-se a mulher. Omita-se igual o homem. Ora. Que o homem é a sombra de um sonho, referia Píndaro, skías ónar ánthropos; e — vinda de outras eras... — Augusto dos Anjos.3
Dando, porém, passo atrás: nesta representação de “cano”: — “É um buraco, com um pouquinho de chumbo em volta...” — espritada de verve em impressionismo, marque-se rasa forra do lógico sobre o cediço convencional.
Mas, na mesma botada, puja a definição de “rede”: — “Uma porção de buracos, amarrados com barbante...” — cujo paradoxo traz-nos o ponto-de-vista do peixe.
Já esperto arabesco espirala-se na “explicação”: — “O açúcar é um pozinho branco, que dá muito mau gosto ao café, quando não se lho põe...” — apta à engendra poética ou para artifício-de-cálculo em especulação filosófica; e dando, nem mais nem menos, o ar de exegese de versos de Paul Valéry... os quais, mal à la manière de, com perdão, poderiam, quem sabe, ser:
Blanche semence, poussière,
l’ombre du noir est amère
trempée de ton absence...
E realista verista estoutra “definição”, abordando o grosseiro formal, externo à coisa, e dele, por necessidade pragmática, saltando a seu apologal efeito fulminante: — “Eletricidade é um fio, desencapado na ponta: quem botar a mão ... h’m ... finou-se!”
Mas reza pela erística o capiau que, tentando dar a outro ideia de uma electrola, em fim de esforço se desatolou com esta intocável equação: — “Você sabe o que é uma máquina de costura? Pois a victrola é muito diferente...”4
Acima agora do vão risilóquio, toam otimismo e amor fati na conversa fiada:
— “Vou-me encontrar, às 6, com uma pequena, na esquina de Berribeiro e Santaclara...”
— “Quem?”
— “Sei lá quem vai estar nessa esquina a essa hora?!”
Enquanto, com desconto, minimiza nota opressiva o exemplo de não-senso dado por Vinicius de Moraes, que o traduziu do inglês:
“Sobre uma escada um dia eu vi
Um homem que não estava ali;
Hoje não estava à mesma hora.
Tomara que ele vá embora.”
Nem é nada excepcionalmente maluco o gaio descobrimento do paciente que, com ternura, Manuel Bandeira nos diz em seu livro “Andorinha, Andorinha”:
“Quando o visitante do Hospício de Alienados atravessava uma sala, viu um louquinho de ouvido colado à parede, muito atento. Uma hora depois, passando na mesma sala, lá estava o homem na mesma posição. Acercou-se dele e perguntou: ‘Que é que você está ouvindo?’ O louquinho virou-se e disse: ‘Encoste a cabeça e escute.’ O outro colou o ouvido à parede, não ouviu nada: ‘Não estou ouvindo nada.’ Então o louquinho explicou intrigado: ‘Está assim há cinco horas.’”
Afinal de contas, a parede são vertiginosos átomos, soem ser. Houve já até, não sei onde ou nos Estados-Unidos, uma certa parede que irradiava, ou emitia por si ondas de sons, perturbando os rádios-ouvintes etc. O universo é cheio de silêncios bulhentos. O maluquinho podia tanto ser um cientista amador quanto um profeta aguardando se completasse séria revelação. Apenas, nós é que estamos acostumados com que as paredes é que tenham ouvidos, e não os maluquinhos.
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá-los ao sublime; seja daí que seu entre-limite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso.
Conflui, portanto, que:
Os dedos são anéis ausentes?
Há palavras assim: desintegração...
O ar é o que não se vê, fora e dentro das pessoas.
O mundo é Deus estando em toda a parte.
O mundo, para um ateu, é Deus não estando nunca em nenhuma parte.
Copo não basta: é preciso um cálice ou dedal com água, para as grandes tempestades.
O O é um buraco não esburacado.
O que é — automaticamente?
O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho.
Haja a barriga sem o rei. (Isto é: o homem sem algum rei na barriga.)
Entre Abel e Caim, pulou-se um irmão começado por B.
Se o tôlo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia.
A peninha no rabo do gato não é apenas “para atrapalhar”.
Há uma rubra ou azul impossibilidade no roxo (e no não roxo).
O copo com água pela metade: está meio cheio, ou meio vazio?
Saudade é o predomínio do que não está presente, diga-se, ausente.
Diz-se de um infinito — rendez-vous das paralelas todas.
O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo.
Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito.
Ergo:
O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
Quod erat demonstrandum.
1
Tentativamente adaptando:
Eram dez negrinhos
dos que brincam quando chove.
Um se derreteu na chuva,
ficaram só nove.
Eram nove negrinhos,
comeram muito biscoito.
Um tomou indigestão,
ficaram só oito.
(E, assim, para trás.)
2
Ainda uma adivinha “abstrata”, de Minas: “O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista?” (Porque é o sol.) Anedótica meramente.
Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem: velocidade horária, pontos de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina: — “Qual é o nome do maquinista?” Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan: “Atravessa uma moça a rua; ela é a irmã mais velha, ou a caçula?” Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.
3
Pelo menos, no Tártaro, umbrário de sub-abstratos, de chalaça:
“J’ai vu l’ombre d’un cocher
Qui, avec l’ombre d’une brosse,
Frottait l’ombre d’une carrosse”
(Versos dos irmãos Perrault, paródia ao VIº livro da Eneida, que Dostoiévski dá em francês, no meio do original russo de “Os Irmãos Karamázov”.)
4
Corolário, em não-senso: O que respondeu o anspeçada, em exame para sua promoção a cabo-de-esquadra: — “Parábola? É precisamente a trajetória do vácuo no espaço.”
- João Guimarães Rosa, no livro "Tutameia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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