Sequência - João Guimarães Rosa

© Benedito José de Andrade
Sequência

Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada — o tom intenso de azamar. Ela solevava as ancas, no trote balançado e manso, seus cascos no chão batiam poeira.
Nem hesitava nas encruzilhadas.
Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e —para lá do rio — a terras de um major Quítérío, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão.
No Arcanjo, onde a estrada borda o povoado, foi notada, e, vendo que era uma rês fujã, tentaram rebatê-la; se esvencilhou, feroz, e foi-se, porém. De beira dos pastos, os anus, que voavam cruzando-a, desvinham de pousar-lhe às costas. No ríachinho do Gonçalves, quase findo à míngua d'água, se deteve para beber.
Deram tiros no campo, caçando às codornas. Latidos, noutra parte, faziam-na entrar oculta no cerrado. Ora corriam dela umas mulheres, que andavam buscando lenha. Se encontrava cavaleiros, sabia deles se alonjar, colada ao tapume, com disfarces: sonsa curvada a pastar, no sofrido símulamento. Légua adiante, entanto, nos Antônios, desabalava em galope, espandongada, ao passar por currais, donde ouvia gente e não era ainda o seu termo. Tio Terêncio, o velho, à porta de casa, conversou com o outro: — "Meo fio, q'vaca qu'é essa?" — "Nhô pai, é a n'é nossa, não." Seguia, certa; por amor, não por acaso. Só, assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente — entre o primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos — o sol saindo à sua frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte de um gado, transportado, de boiadeiros, gado de coração ativo. Viera do Pãodolhão — sua querência. Apressava-se nela o empolgo de saudade que adoece o boi sertanejo em terra estranha, cada outubro, no prever os trovões. Apanhara a boca-da-estrada — para os onde caminhos — fronteando o nascente.
Soada a noticia, seo Rigério, o dono da Pedra, disse: — "Diaba". Ele era alto, o homem, para tão pequenina coisa. Seus sabedores informavam: que a marca sendo a de grande fazendeiro, da outra banda, distante. Seus vaqueiros, postos, prontos. Esse seo Rigério tinha os filhos diversos, que por em volta se achavam. Nem deles, para o que, havia a necessidade. E vede de que maneira tudo então se passou.
Só um dos filhos, rapa, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo: levar em brio e tomar em conta. Atou o laço na garupa.
Disse: — "É uma vaquinha pitanga?"
Pôs-se a cavalo. Soubesse o que por lá o botava, se capaz. Saiu à estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia desconhecidamente. Indo de oeste para leste.
Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava de o bastante. Ante o morro, a passo, breve, nem parava para os capins dos barrancos: arrancava-os, mesmo em marcha, no mesmo surdo insossego. Se subia — cabeceava, num desconjuntado trabalho de si. Se descia era beira-abismos, patas abertas, se borneando. Após, no plano, trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam. Olhava-as: alteou-se e berrou — o berro encheu a região tristonha. O dia era grande, azul e branco, por cima de matos e poeiras. O sol inteiro.
Já o rapaz se anorteava. Só via o horizonte e sim. Sabia o de uma vaquinha fugida: que, de alma, marca rumo e faz atalhos — querençosa. Entrequanto, ele perguntava. Davam-lhe novas da arribada. Seu caval murça se aplicava, indo noutra forma, ligeiro. Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E esquipava. Ia o longo, longo, longo. Deu patas à fantasia. Ali, escampava. Tempo sem chuvas, terrentas campinas, os tabuleiros tão sujos, campos sem fisionomia. O rapaz ora se cansava. Desde aí, o muito descansou. Do que, após, se atormentava. Apertou.
Com horas de diferença, a vaquinha providenciava. Aqui alta cerca a parou, foi seguindo-a, beira, beira dava num córrego. No córrego a vaquinha entrou, veio vindo, dentro d'água. Três vezes esperta. Até que outra cerca travou-a, ia deixando-a desairada. Volveu — irrompida ida: de um ímpeto então a saltou: num salto que queria ser voo. Vencia. E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em bailado, a cauda oscilando. O inimigo já vinha perto.
O rapaz, no vão do mundo, assim vocado e ordenado. Ele agora se irritava. Pensou de arrepender caminho, suspender aquilo para mais tarde. Pensou palavra. O estúpido em que se julgava. Desanimadamente, ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um animal o levava? Oincomeçado, o empatoso, o desnorte, o necessário. Voltasse sem ela, passava vergonha. Por que tinha assim tentado? Triste em torno. Só as encostas guardando o florir de árvores esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas, ipês seu amarelo de agosto. Só via os longes de um quadro. O absurdo ar. Chatos mapas. O céu de se abismar. E indagava o chão, rastreava.
Agora, manchava o campo a sombra grande de uma nuvem. O rapaz lançou longe um olhar. De repente, ajustou a mão à testa, e exclamou. Do ponto, descortinou que aquela, a vaquinha, respoeirando. Aí e lá, tomou-a em vista. O vulto, pé de pessoa, que a cumeada do morro escalava. Ver o que diabo.
Reduzida, ocupou, um instante, a lomba linha do espigão. Aí, se afundou para o de lá, e se escondeu de seus olhos. Transcendia ao que se destinava. O rapaz, durante e tanto, montado no bom cavalo, à espora avante, galgando. Sempre e agudamente olhava. Podia seguir com os olhos como o rastro se formava, perseguia a paisagem. Preparava-se uma vastidão: de manchas cinzas e amarelas. O céu também em amarelo. Pitavam extensões de campo, no virar do sol, das queimadas; altas, mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se.
O rapaz — desdobrada vida — se pensou: — "Seja o que seja". Aí, subia também ao morro, de onde muito se enxergava: antes das portas do longe, as colinas convalares — e um rio, em suas baixadas, em sua várzea empalmeirada. O rio, liso e brilhante, de movimentos invisíveis. Como cortando o mundo em dois, no caminho se atravessava — sem som. Seriam buracos negros, as sombras perto das margens.
Depois dos destornamentos, a vaquinha chegava à beira, às derradeiras canas-bravas. Com roubada rapidez, ia a levantar o desterro. Foi uma mexidinha figura — quase que mal os dois chifres nadando — a vaca vérmelha o transpondo, a esse rio, de tardinha; que em setembro. Sob o céu que recebia a noite, e que as fumaças chamava.
Outrarte o ouro esboço do crepúsculo. O rapaz, o cavalo bom, como vinham, contornando.Antes do rio não viam: as aves, que já ninhavam. A beira, na tardação, não queria desastrar-se, de nada; pensava. As pausas, parte por parte. Não ouviu sino de vésperas. Tinha de perder de ganhar? Já que sim e já que não, pensou assim, jamais, jamenos... — o filho de seo Rigério. A fatal perseguição, podia quebrar e quitar-se. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que ele mesmo não sabia — a oculta, súbita saudade. Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou — de peito feito. Àquelas quilas águas trans — às braças. Era um rio e um além. Estava, já, do outro lado.
— "A vaca?" — e apertava o encalço — à boa espora, à rédea larga. Mas a vaca era uma malícia, precipitava-se o logro. Nisso, anoiteceu. E não é que, seu cavalo, murça, se sentia — da viagem de pelo a pelo: os joelhos bambeava, descaía, quase caia para a frente o cavaleiro. Iam-se, na ceguez da noite — à casa da mãe do breu: a vaca, o homem, a vaca — transeuntes, galo-pondo. — "Onde então o Pãodolhão? Cujo dono? Vinha-se a qual destinatário?"
Pelas vertentes, distante, e até ao cimo do monte, um campo se incendiava: faiscas — as primeiras estrelas. O andamento. O rapaz: obcego. Sofria como podia, nem podia mais desespero. O arrepio negro das árvores. O mundo entre as estrelas e os grilos. Semiluz: sós estrelas. Onde e aonde? A vaca, essa, sabia: por amor desses lugares. Chegava, chegavam. Os pastos da vasta fazenda. A vaca surgia-se na treva. Mugiu, arrancadamente. Remugiu em fim. A um bago de luz, lá, lá. As luzes que pontilhavam, acolá, as janelas da casa, grande. Só era uma luz de entrequanto? A casa de um major Quitério.
O rapaz e a vaca se entravam pela porteira-mestra dos currais. O rapaz desapeava. Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a escada. Tanto tinha de explicar. Tanto ele era o bem-chegado! A uma roda de pessoas. As quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: — "É sua". Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados.
Amavam-se.
E a vaca — vitória, em seus ondes, por seus passos.

- João Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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Um comentário:

  1. Texto do mestre Guimarães Rosa que me transporporta à minha infância muito feliz na Fazenda Olhos D'agua no município de Presidente Juscelino MG terra do meu pai.
    Ai que saudade...
    Tio Neco & Tia Nair com a primaiada, quase quinze.
    Leite ao pé da vaca, milho na brasa e manga chupada.
    Manga espada da boa!!
    Broa de fubá, carne de porco na lata,
    Brincadeiras de "mininu", banho no poço límpido, córrego na estrada.
    Lamparina, lampião...
    Luz elétrica no poste da porteira.
    Gado no curral bezerro no beiral da varanda.
    Que cheiro bão!

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