© Winslow Homer |
Na estrada do Amanhece
Tubi não acreditava que no mundo tivesse um lugar melhor do que o Amanhece. Lá ele nasceu, e se dava por feliz. Podiam falar nas bondados do Massaranduba, da Salve-Rainha, da Paciência, da Rosa Maria, ele não se interessava. Quando o levavam em passeio nesses outros sítios ele ia triste, reclamando, lamentando o tempo que ia perder, sentindo não existir um jeito de cortar o tempo com tesoura, como se corta cordão, jogar fora o pedaço que não presta e emendar de novo mais adiante. Até os animais, as criações, as serventias do Amanhece eram mais simpáticos, mais amigos. Um sonho que ele não gostava, e que vinha de entoado, era que o pai tinha vendido o Amanhece e comprado outro sítio; felizmente era sonho, senão seria a tristeza maior do mundo.
O Amanhece era bom sem comparação — apesar de certos aborrecimentos que bem podia não ter. Um: ninguém acreditava muito nas coisas fora do comum que Tubi estava sempre descobrindo, ou vendo; diziam que não podia ser, era absurdo, ele tinha sonhado, onde já se viu; tanto que ele não estava mais contando nada, a não ser à mãe — assim mesmo só conforme a disposição dela.
O que fez ele tomar essa precaução foi o caso dos vaga-lumes. Ele tinha andado correndo atrás de vaga-lumes no vassoural em frente à casa, lanhou as pernas muito mas conseguiu pegar um e prender numa caixa de fósforo. Na cama de noite ele olhava a caixa e via quando o vaga-lume estava de luz ligada. Quando viu que ia dormir ele pôs a caixa no chão para não rolar por cima dela e esbandalhar o vaga-lume, mas perto da mão para poder apanhar caso acordasse no meio da noite. Sem mais nem menos ele achou que um só era pouco e saiu para apanhar mais, agora era fácil, bastava fechar a mão a esmo para pegar uma porção de cada vez, num instante ele encheu uma gamela meiazinha.
Ele ia levar a gamela para dentro de casa com a ideia de arranjar bastante linha e pendurar todos eles nos caibros da varanda, depois acordar a mãe para ela ver a casa iluminada com aquelas lanterninhas, invenção dele; mas caiu na asneira de deixar a gamela do lado de fora enquanto procurava a linha, e quando voltou um bezerro tinha comido todos os vaga-lumes e ainda lambia os beiços, com certeza esperando mais. Tubi procurou uma vara, um ferrão, qualquer coisa para castigar o bezerro, rodou, não achou, e quando olhou de novo quase que não acreditou. Com a barriga inchada de vaga-lumes, o bezerro parecia um balão cheio de luzinhas que acendiam e apagavam desencontrado, até se via o sombreado dos ossos das costelas no couro esticado. Tubi tocou a barriga do bezerro para ver se estava quente ou fria, o bezerro não gostou e saiu de peno, levando aquele clarão azulado pelo chão, como se fosse uma sombra clara, saltou o rego, prateando a água na passagem, e sumiu numa moita de cana; mas mesmo escondido o clarão bojudo estava lá nas moitas, denunciando.
De manhã Tubi correu ao curral na frente de todo mundo para ver se tinha acontecido alguma coisa ao bezerro, se ele tinha morrido, ou vomitado, ou adoecido. Que nada, o ladrisco já estava encostado na porteira, lambendo a mãe pelo vão de duas tábuas e berrando, doido para chegar a hora de mamar, parecia que não tinha feito travessura nenhuma durante a noite.
Mas Tubi ficou preocupado, vigiou muito o bezerro, olhou se ele mamava direito, e quando viu ele se deitar perto da mãe no estéreo do curral com os olhos meio fechados, cansado das cabeçadas que dava no úbere para puxar o resto de leite deixado pelo vaqueiro, Tubi achou que podia ser já o sinal do adoecimento, e correu para dizer ao pai na mesa do café que convinha dar um purgante ou qualquer remédio àquele bezerro branquinho filho da Mandinga.
— Purgante pro bezerro? Por que agora?
— Ele... vai ficar doente. Acho que já ficou. O pai olhou para ele desconfiado, investigando.
— O que foi que o senhor já andou fazendo com o bezerro? — Nada não, pai. Foi ele mesmo. Com eu uma gamela cheinha de vaga-lumes.
Os pais se entreolharam e compreenderam que o bezerro não estava em perigo.
— Vai fazer mal. Ele já está deitado, de olhos fechados — disse Tubi.
— Onde foi que ele achou tanto vaga-lume? — perguntou a mãe Tubi baixou os olhos, confessou: — Eu peguei ontem de noite.
— Você pegou e deu pra ele? — perguntou a mãe. Tubi explicou o acontecido, deixando claro que não tivera culpa; falou do brilho na barriga do bezerro, do clarão na moita de cana, dos ossos das costelas aparecendo com o pisca-pisca dos vaga-lumes — de repente parou: não adiantava continuar, ninguém estava acreditando. Nunca mais ele contaria nada a ninguém.
Mas de noite, na hora de lavar os pés para dormir, a mãe puxou o assunto e ele reconsiderou. Estavam sozinhos na cozinha, ela mornando o leite para ele tomar com beiju.
— Com o foi mesmo a história dos vaga-lumes? — ela perguntou.
Sentado na banqueta, com os pés na bacia, ele contou tudo de novo; e vendo que ela escutava com interesse ele revelou detalhes que não tinha lembrado antes, como quando o bezerro parou do outro lado do rego para mijar e o mijo saiu como uma fita de luz azulada, prateou o chão e se espalhou como um derrame de vidrilhos até que a terra chupou tudo, mas mesmo assim ficou meio falseando naquele pedaço.
— Por que você não me chamou? Eu queria tanto ver. Ele ficou com pena de não ter chamado, e justificou-se dizendo que era muito tarde, que também tinha sido muito ligeiro, se ele tivesse saído para chamar, quando voltasse já teria acabado.
— Que pena. Devia ter sido bonito.
Será que ela estava acreditando mesmo, ou fingindo para compensar a descrença do pai? com mãe a gente nunca sabe, e deve desconfiar do que ela diz. E haveria mesmo alguma coisa para acreditar? Relembrando o caso na claridade familiar da cozinha, no meio daqueles utensílios de finalidade exata — o moinho de café na beirada da mesa, o pilão encostado na parede, as panelas emborcadas na prateleira, quente o caldeirão de água no fogo, soltando uma fumacinha preguiçosa, a lamparina na pedra do fogão, a réstia de alho num prego — ele mesmo já pensava que talvez estivesse misturando coisas diferentes, vaga-lume com bezerro. De agora em diante ele só contaria coisas que não deixassem dúvida, e assim mesmo só contaria à mãe; ela sabia compreender e não fazia perguntas que atrapalham.
Quando a mãe estava muito ocupada, como no forno torrando farinha — serviço que pede muita atenção — ou tratando de doente em algum rancho, ele preferia falar sozinho com seus brinquedos. É bom conversar com brinquedo, eles não falam e a gente tem que responder por eles, às vezes sai cada resposta que até assusta. Com o quando ele estava sentado no chão tocando uma boiadinha de mangas verdes, avançando uma rês aqui, atrasando outra ali, desviando outra para um atalho, a boiada preguiçosa não rompia, ele meteu o ferrão num boizinho de barriga amarela.
— Vamos, pateta! Não atrasa a boiada.
— Eu faço o que me mandam. Você não me mandou atrasar? Era verdade. Ele tinha empurrado o boi para um desvio e se esquecido. Com o é que ele podia ralhar com o boi e castigá-lo com o ferrão, depois de ter mandado ele se atrasar? Só Deus pode fazer isso, deixar as pessoas se desviarem de um caminho e depois dar o castigo. Será que está certo isso, ou Deus é diferente do que dizem? Se tudo o que acontece acontece por ordem dele, castigo é injustiça. Conversar sozinho é perigoso, atrapalha muito as ideias. O melhor é fazer como a maioria das pessoas, que não perde tempo com essas bobagens e por isso não vive com medo — de castigo, de inferno, de pecado. Mas se a pessoa não conversa sozinha, pensando, como é que vai descobrir as explicações? Estudando em livro, em escola? Não parece ser caso de estudo. Aquele rapaz que apareceu no sítio pedindo trabalho, o Belmiro, não teve estudo nenhum, e sabia explicar tudo com clareza.
Belmiro sabia explicar tudo, não de uma vez, como quem fala de cor, mas devagar, ponderando, puxando a razão das coisas, ajudando a gente a compreender. O pai de Tubi antipatizou com Belmiro por ele andar de botina o dia inteiro, como se estivesse sempre de saída para uma festa, mas reconhecia que ele era bom no cabo do guatambu.
— Seu Jucá, não olhe para a minha cara nem para as minhas botinas. Olhe para o meu trabalho — disse Belmiro logo no primeiro dia.
Seu Jucá entendeu, mas de vez em quando ainda chamava Belmiro de filósofo, chamava zombando, mas quando Belmiro foi embora bem que Seu Jucá sentiu; ele disse à mulher que se tivesse dois ou três homens como Belmiro podia dispensar os outros todos e ainda tocava o sítio com os pés nas costas. A mulher defendeu, disse que Belmiro era muito bom trabalhador, ninguém dizia o contrário, mas que o serviço dos outros não rendia era porque eles não tinham boa compreensão das coisas.
— É porque são tapados, Zilza.
— Tapados não, Jucá. São gente nascida e criada aqui, como nós.
— Que nada. Você está é querendo me contrariar. Belmiro também pensava como D. Zilza, por isso não se enfezava com as caçoadas dos outros. Uma vez Tubi perguntou por que ele não reagia quando os outros caçoavam da botina dele, Belmiro respondeu: — Deixe eles, coitados. Eles pensam que botina é só para patrão, ou para enfeitar os pés em dia de festa. Não sabem que é para proteger.
— Por que o senhor não ensina? Belmiro estava aparelhando um cabo de foice, parou e disse: — Se eles aprendessem, onde é que iam arranjar dinheiro para comprar botina? Um par de seis em seis meses? Eu trabalho por empreitada, acabo um serviço, recebo, compro o que preciso.
— Meu pai dava. Meu pai não é patrão deles? — Então era preciso ensinar seu pai também. Uma coisa puxa outra.
— O senhor ensinava.
— Eu ensinava? Deus te conserve, Tubi — disse Belmiro, e voltou a trabalhar com o facão na madeira roliça, tirando os nós e raspando.
Belmiro foi a única pessoa que soube consolar Turi quando o Mangarito morreu. Tubi chorava desesperado, o pai ralhou, mandou fechar o bueiro.
Chorando por causa de um cavalo? Morreu, enterra. Te dou outro. Tem tanto poldro aí, é só escolher.
Foi na hora do almoço que o Dito chegou com a notícia. O Mangarito estava caído no pé de uma lobeira, se contorcendo, com falta de fôlego, não podia se levantar. Ou foi mordido de cobra ou comeu erva, parecia mais erva.
Belmiro pediu licença para ir também, levou uma vasilha de leite.
Quando chegaram o Mangarito já estava nas últimas. Deitado de banda, as pernas tesas como se fossem postiças, o pescoço esticado para trás, ele resfolegava forte e tremia compassado. O pelo todo estava molhado, Belmiro disse que era de suor, e os olhos antes tão vivos pareciam sujos de cinza.
— Eu abro a boca e você dá o leite — disse Belmiro. — Devagarinho para ele não engasgar.
Os dentes estavam travados, não houve força que abrisse.
— Despeje por dentro dos beiços, vamos ver se ele engole. Tubi fez como Belmiro indicou, o leite ficou retido na bolsa entre a gengiva e a bochecha, não escorria para dentro. Até a língua parecia paralisada.
— Não vamos judiar do bicho. Deixe ele descansar sossegado — disse Belmiro.
Tubi descansou a vasilha de leite no chão e ajoelhou ao lado da cabeça do Mangarito, ficou conversando manso com ele, alisando, espantando mosquitos que teimavam em incomodá-lo.
Os estremeções foram ficando mais espaçados, os olhos mais mortiços, a respiração mais curta e mais lenta, só notada na barriga dura, esticada.
— Foi erva. Viemos tarde — disse Belmiro.
Com as mãos acariciando a testa, o focinho, o pescoço do Mangarito, Tubi percebeu quando ele parou de respirar.
— Morreu, Seu Belmiro. Olhe aí. Morreu.
Belmiro ajoelhou-se também e apalpou o corpo imóvel.
— É. Não tinha jeito. Mas morreu perto de um amigo. Foi sorte.
— E agora, Seu Belmiro? O que é que eu faço?
— Agora você me ajuda a enterrar ele. Aliás, eu ajudo você. Belmiro foi dando a ideia do que deviam fazer, mas como se estivesse concordando com Tubi: — É, você não vai querer enterrar aqui mesmo. Ficava mais fácil, ficava, mas é muito descampado, não tem marcas, lobeira não dura, amanhã morre. A gente podia fincar uma estaca, mas o mato cobre, não se vê de longe. — Olhou em volta, procurando. — Ali debaixo daquele angico fica melhor. Tem sombra, o angico fica sendo a marca. Você pode olhar todo dia, da janela da varanda você vê.
Mas era preciso arranjar um laço, ou melhor, dois, e chamar uns homens para ajudar. Nesse ponto Seu Jucá deu o contra, enterro naquela hora atrapalhava o serviço, deixassem para mais de tardinha; mas não pôde impedir que Tubi passasse o resto do dia vigiando o cavalo morto, guardando de formigas, moscas, urubus; bem que ele tentou, mas a mãe socorreu, deixasse, menino é assim mesmo, sofre por tudo, ia ficar muito triste se não pudesse vigiar.
Muitos dias depois Tubi ainda chorava a morte do Mangarito, e mais ainda quando se lembrava dele sendo arrastado para debaixo do angico, os homens puxando com força, gritando uns com os outros e rindo sem respeito, como se estivessem arrastando uma pedra ou um pedaço de pau, e o pobre do Mangarito raspando o pelo nas pedras e gravetos, largando chumaços de cabelos pelo caminho e se sujando de terra.
Uma tarde, já quase de noitinha, Belmiro chamou Tubi para visitar o Mangarito debaixo do angico. A mãe não gostou, o menino ainda estava tão choroso; Belmiro percebeu a desaprovação e fez sinal pedindo que deixasse ir.
Quando pisou distraído a terra fofa do lugar onde estava o Mangarito, Tubi caiu no choro.
— Se eu fosse você não chorava — disse Belmiro alisando a terra com o pé.
— Eu gostava dele.
— Eu sei. Por isso mesmo é que você não deve chorar.
— Eu choro porque sinto falta dele. Nunca mais vou ver ele.
— Aí é que está. Você chora porque está pensando mais é em você. Ele também não vai ver você, e aposto que não está chorando.
— Mas ele morreu. Com o é que ia chorar?
— Você tem certeza de que ele morreu? Quem é que garante? — Então não morreu? Não foi enterrado? — disse Tubi quase indignado.
— Aí é que está. Pare de chorar e enxugue esses olhos que eu vou explicar como é que eu entendo a situação. Para todo mundo ele morreu. Parou de respirar, de mexer, foi enterrado. Isso é o que todo mundo diz. Mas eu acho é que ninguém morre. Quando dizemos que uma pessoa, ou um bicho, morreu, o que aconteceu foi que mudou de morada. É assim, ó — e riscou uma linha no chão com um graveto. — Esta linha é a divisa. De um lado os que a gente diz que morreram, de outro os que estão vivos. Quando a pessoa, ou o bicho, passa de um lado para o outro, dizemos que morreu. Mas quem é que sabe qual é o lado dos vivos e qual o dos mortos? Para nós, que estamos do lado de cá, é o lado de lá; mas para eles deve ser o lado de cá. Quando uma pessoa atravessa a linha, morre de um lado mas nasce de outro. Você entendendo isso vai ver que quando Mangarito morria de cá nascia de lá. E você vai chorar só porque o seu cavalo mudou de morada? Tem cabimento isso? Tubi pensou, quis se entusiasmar mas ficou na dúvida, perguntou se o Mangarito quando nasceu do outro lado nasceu pequenininho, se precisava mamar de novo, se nasceu sabendo marchar ou se tinha esquecido, se ia ter saudade do Amanhece e dele, Tubi. Belmiro ia ouvindo e respondendo de maneira a sossegar o menino e fazê-lo esquecer o choro.
— Então quer dizer que de verdade ninguém morre — disse Tubi afinal.
— É isso mesmo. Vejo que você já entendeu.
Tubi não estava no sítio quando Seu Jucá matou o gavião, estava visitando vizinhos com a mãe. Seu Jucá mandou empalhar o gavião na cidade, um cabo de polícia fazia esse serviço muito bem. Tempos depois o gavião voltou, pousado num pedestal de pedra-sabão.
Gavião é um bicho feio-bonito, sisudo, respeitável. Pousados nos galhos altos das casuarinas ou nas pontas de pedras dos morros, eles vigiam o mundo, esticando a cabeça para cima, para baixo, para os lados, não querem perder o que se passa lá embaixo. Os olhos agudos não piscam, nunca piscam. O bico é uma picareta afiada, as garras são torqueses que destrancam e aleijam. Planejam o ataque com calma, e se falham mesmo assim não se afobam; completam o movimento iniciado e voltam à base para organizar novo ataque.
O meio da tarde é a melhor hora. O céu é claro e sem nuvem, o sol esquenta as pedras, os ferros, as telhas. Se a pessoa fica na sombra e olha o chão, principalmente o chão calçado, vê um tremor no ar, como se o chão fervesse. Galinhas procuram sombras e ficam de olhos fechados e bico aberto, para o ar entrar e sair à vontade, os cachorros deitam de lado ou de costas com as pernas abertas encolhidas na barriga. O gato desaparece em alguma moita fresca e ninguém o verá antes da hora do jantar. No campo os animais dormitam, os olhos semifechados, uma perna encolhida, só o rabo fica de plantão espantando moscas. É quando os gaviões atacam.
Primeiro foi um pinto levantado do chão por uma sombra que baixou nítida e esmaeceu novamente levando o grito entre as penas. Alarme geral entre as galinhas, cacarejos nas touceiras, a sesta estragada. A cozinheira veio correndo com a vassoura, ainda viu a sombra riscando a cerca do curral. Foi o filho da Sarapinta, o mais gordinho, gavião miserável. Os frangos e galinhas saíram para campo aberto, comentando, se expondo, outras sombras vieram precisas, cada uma na presa marcada. Seu Jucá estava na varanda pondo cabo num ferro de marcar rês, ouviu o primeiro grito e se preparou, já sabia o que era.
O tiro apanhou o gavião em cima do curral, a presa caiu para um lado, o gavião para outro, os chumbos pegaram numa asa bem na junta.
— Esse não furta mais — disse Seu Jucá, prosa com a precisão da pontaria.
A franga morreu da queda, foi aproveitada para o jantar, o gavião Seu Jucá quis salvar para pôr numa gaiola, exemplo para os outros. Enquanto faziam a gaiola ele ficou num quartinho da casa da farinha, no meio de rodas quebradas, potes, tachos, restos de cangalhas, a asa caída, muito sangue nas penas, mas o olhar altivo, atrevido. Não aceitou as tiras de carne que Seu Jucá jogou perto dele, e no dia seguinte amanheceu morto — de raiva? De vergonha? Do tiro? Agora ele estava em cima da mesa da sala, impressionando as visitas com seu olhar duro de conta. Mesmo empalhado o gavião impõe respeito, como uma arma de fogo ou um punhal que já matou gente. Tubi tinha medo de olhar o gavião, mas volta e meia estava olhando, imaginando quantas galinhas, preás, coelhos, até cobras, aquele bico e aquelas unhas já tinham esbandalhado.
Depois veio a arrumação do sítio para o pouso de folia, gente da Massaranduba, de Paciência, da Rosa Maria ajudando a esfregar, a lavar, a caiar, a fazer doces, biscoitos e bolos, gente dormindo em toda parte, em esteiras e colchões até na varanda. Mau tempo para as criações de quintal, todos os dias morriam bandos de galinhas, patos, leitões, os leitões gritavam de pavor na beira do rego, dava raiva ver aqueles homens brutos, de facas enormes pontudas procurando o melhor lugar para enfiar, os bichinhos esperneando e gritando, os homens rindo e sangrando, o sangue esguichando e molhando as mãos, os braços deles, tanta ruindade. Tubi fugia para longe, tapava os ouvidos mas não conseguia esquecer os bichinhos roliços tão limpinhos esperneando sem esperança, ninguém pensava em acudir, vai ver que nem prestavam atenção. Tubi queria ser mágico ou milagroso para ressuscitar os leitões, soldar o furo da faca e mandar eles embora para bem longe, deixando os homens amedrontados. Mas como? Que palavras dizer, que gestos fazer? Sentindo-se incapaz, ele procurava pensar em outras coisas, a sela nova que o pai prometera encomendar e estava demorando, o passarinho — dragona — que ele estava pelejando para pegar no mandiocal, chegou a ver um bem de perto, as penas pretas azuladas tão lustrosas que pareciam tratadas com brilhantina, e nas pontas, olhando bem, pareciam douradas... Mas os danados dos leitõezinhos parecia que se vingavam, volta e meia tomavam conta do pensamento dele, fossando nas touceiras, resmungando crum-crum-crum, os narizinhos chatos experimentando tudo, os rabinhos se torcendo como parafusos, a gente ficava pensando que iam desatarraxar e cair a qualquer momento.
Tubi rodava triste pela casa, não achava interesse em nada, e quando ia na cozinha comer ou beber alguma coisa Conceição ainda mexia, dizia que o leitãozinho tal já tinha ido, agora estavam afiando a faca para sangrar aquele outro assim-assado; e vendo que ele não estava gostando aconselhava: — Fica assim não, bobo. Leitão vem ao mundo é pra isso mesmo. É tão gostoso.
Seria? Então por que gritavam tanto? Estava tudo pronto para a festa, potes e mais potes de doces, panelões de carne e almôndegas boiando em gordura, gamelas de biscoitos, foi armado um rancho para danças no terreiro, o chão socado com macete para não levantar muita poeira, e outro rancho para as redes dos homens, as mulheres dormiriam dentro de casa, como pudessem, só faltava a folia chegar com a bandeira e a salva, já estava na Rosa Maria. Seu Jucá saiu com um bando de amigos para encontrá-la no caminho, levavam foguetes e muitas caixas de balas. No Amanhece as roqueiras estavam prontas em fila diante da casa para quando a bandeira aparecesse descendo o morro.
Mas as roqueiras não dispararam, nem houve festa. Chegou um cavaleiro na frente avisando para suspenderem as salvas, Seu Jucá vinha carregado numa rede, tinha levado um tiro de garrucha nas costas. D. Zilza saiu correndo a pé pela estrada, foram atrás e seguraram, aconselharam a esperar.
Seu Jucá chegou ensanguentado, gemendo, passaram ele para a cama com muito jeito, Seu Belarmino da Paciência sempre ao lado se culpando e pedindo perdão, quando viu D. Zilza se abraçou com ela e chorou mais alto. Pessoas que tinham assistido explicaram que ninguém teve culpa, foi o cavalo de Seu Jucá que empinou com as salvas e passou na frente da garrucha bem na hora do disparo, uma fatalidade. Seu Belarmino não se conformava, queria ser o culpado, jurava que se Seu Jucá morresse ele ia fazer uma loucura com a mesma garrucha, mas a garrucha não estava mais com ele, estava na cintura de outra pessoa.
E aquelas iguarias todas com certeza iam sobrar, os foliões parece que tinham perdido o apetite, os poucos que pensavam em comer faziam um prato no rancho e se afastavam para longe, como se fosse feio, ou vergonhoso, comer na vista de todos. As sanfonas e violas ficaram largadas nos cantos, os tocadores nem passavam peno, e quando uma sanfona caiu da forquilha onde estava pendurada no rancho, e soltou um gemido comprido ao se fechar no chão, as pessoas que estavam perto fingiram não ter visto nem ouvido.
A bandeira ficou na sala com a salva quase vazia, ninguém se lembrava de ir lá deixar uma esmola, as pessoas faziam grupos no pátio da frente, no terreiro, na varanda, falando baixo, uns diziam que o tiro tinha pegado na espinha e que Seu Jucá era capaz de ficar aleijado, a espinha é que comanda os movimentos do corpo; não, deve ter sido no pulmão, não vê como a voz dele está ficando cada vez mais fraca; quem deu o tiro não foi Seu Belarmino, ele ainda estava carregando a garrucha, o tiro veio mais de trás; e o doutor quando chega? Parece que só chega amanhã, assim mesmo se estiver na cidade quando o chamado chegar. Que festa, hein? Quanta comida perdida, vão ter que jogar para os porcos. Muita gente já está falando em ir embora. E as bebidas? Parece que se esqueceram de servir.
Cansado de andar de um lado para outro, de entrar no quarto e ser posto para fora, Tubi deitou-se num banco da varanda e ficou pensando como seria a vida no Amanhece se o pai morresse, quando há sangue demais há morte, e ele vira muito sangue nas roupas quando a mãe saiu com elas do quarto. Seria ruim demais não ter pai, como dizem que é? De repente ele se lembrou do catecismo, pecado, inferno, fez o nome-do-pai disfarçado, virou-se para a parede e dormiu.
Seu Jucá escapou, mas quando levantou da cama parecia outra pessoa. Perdeu o desempeno antigo, andava meio encolhido e muito pensativo. Ele e D. Zilza deram para cochichar de noite, e quando Tubi tossia ou se mexia na cama no quarto ao lado eles se calavam ou baixavam ainda mais a voz. Cochichava-se muito no Amanhece naquele tempo, até com desconhecidos que chegavam, eram recebidos na sala e ficavam conversando com Seu Jucá de porta fechada. Tubi achava esquisito, uma vez sondou D. Zilza, ela disse que era assunto de gente grande, em que menino não deve se meter.
Uma tarde Tubi estava brincando de subir no coqueiro do pátio quando chegou aquele homem de um olho só — tinha os dois mas um ficava sempre fechado — e cabelo vermelho enrolado, parecendo maçarocas de corda de viola.
— Viva, nenen. Você é filho de Seu Manuel Jucá? — disse o homem ainda montado.
— Sou sim senhor.
— Diz que é Ernesto Sotero.
Tubi escorregou do coqueiro e entrou em casa. O nome era conhecido no Amanhece, os camaradas sempre falavam nele quando contavam casos de valentia. Agora o homem estava ali, feio e perigoso, com certeza para tomar alguma satisfação, puxar briga.
Seu Jucá estava na rede, não se assustou com o anúncio; em vez disso levantou-se muito calmo, e antes de atender mandou D. Zilza providenciar um café com mistura. Tubi acompanhou o pai meio com medo, mas quando viu a cordialidade dos cumprimentos se acalmou, o assunto era de paz.
— Vamos entrar, Seu Ernesto. Não repare, que a casa é de pobre. Tubi, despeje uma boa cuia de milho no cocho para a mula de Seu Ernesto. Primeiro tira o freio. Ela é mansa, Seu Ernesto? — Mais mansa do que jabuti de cozinha.
Do jeito que Seu Jucá riu, via-se que ele estava interessado em agradar o visitante. Depois de um ligeiro rapapé na porta os dois entraram para a sala. Tubi executou depressa a ordem do pai e voltou a brincar no coqueiro na esperança de pescar o assunto da conversa, mas Seu Jucá muito espertamente chegou à janela e mandou-o para dentro. Na hora de servir o café ele se ofereceu para o serviço, a mãe vetou.
— Não vai lá não. Conceição leva.
Tendo o seu plano frustrado, Tubi foi ver se a mula já tinha comido o milho, se precisava de mais, seria uma boa desculpa para passar no corredor e esticar o ouvido para a porta. Mas a mula não estava interessada em mais milho, tinha deixado um bom punhado no fundo do cocho e estava agora cochilando em pé, uma perna ligeiramente encolhida, decerto para descansar os músculos desse lado. Tubi então se interessou pelo arreio e demais apetrechos.
O arreio de duas barrigueiras — melhor porque dispensa o peitoral — estava coberto com um pelego cor de fogo, com a marca do assento do dono bem visível no amassado do pêlo fofo. Por baixo da aba do arreio do lado esquerdo aparecia o coice de uma carabina. Dizem que fazendo uma cruz com faca na cabeça da bala — estanho é mole, fácil de cortar — ela fica mais perigosa, quando encontra um osso abre em quatro lascas, cada uma vai para um lado fazer seus estragos. Deve ser por isso que carabina faz tanto medo. Carabina leva doze balas, que a pessoa vai empurrando por uma janela do lado direito (ou será do esquerdo?), uma atrás da outra até encher a caixa que fica dentro da coronha. Carabina mata boi com um tiro só, quanto mais gente.
Tendo terminado o exame, Tubi perdeu o interesse na mula e tentou ainda olhar para dentro da sala subindo na porteira, mesmo sabendo que se o pai visse não ia gostar, primeiro porque já tinha mandado ele brincar longe, segundo porque porteira não é para subir, o peso desconjunta o esquadro e descasa o trinco com a fenda de fechar, isso Seu Jucá estava cansado de dizer.
Enganchado na última tábua da porteira ele conseguiu ver a cabeça de Ernesto Sotero mexendo, aprovando, discordando, de vez em quando a mão alisando o cabelo, trabalho inútil porque o cabelo era desses duros que não se despenteiam.
Quando Ernesto Sotero levantou, mostrando até a metade do peito, Tubi escorregou depressa da porteira, e só teve tempo de endireitar a roupa sungada com o raspão nas tábuas, e já o pai aparecia na porta, acompanhando a visita.
— Então estamos entendidos, não é, Seu Manuel?
Seu Jucá aprovou com a cabeça. Seu Ernesto olhou em volta, elogiou o capricho do sítio, avaliado pela limpeza do pátio, a conservação do muro, as boas cercas dos currais. Seu Jucá se abaixou para apanhar um engaço de bananeira que comprometia a limpeza da calçada e jogou-o para cair além do muro, mas a força não deu.
— Que idade tem o curumim? — perguntou Ernesto Sotero pondo a mão na cabeça de Tubi e caminhando com ele para a mula.
— Oito para nove — disse Seu Jucá acompanhando-os.
— Oito para nove. Da idade do meu que eu perdi. É duro, Seu Manuel. A mãe não se conforma até hoje.
Seu Jucá instintivamente abraçou Tubi pelo ombro, procurou palavras de consolo, não achou, não tinha jeito. Ernesto Sotero arrochou um pouco mais as barrigueiras, pôs o freio na mula, montou. Seu Jucá foi abrir a porteira.
— Então até mais ver, Seu Manuel.
— Se Deus quiser, Seu Ernesto.
Seu Jucá fechou a porteira e olhou o tempo, enquanto esperava que a visita se distanciasse. Tubi criou coragem e perguntou: — Pai, o que é que ele queria? — Chouriço para fazer feitiço — disse o pai, completando com uma tapa carinhosa na nuca do menino.
— É verdade que ele mata gente?
— O que eu sei é que ele capa menino. Menino especula.
D. Zilza devia saber o motivo daquela visita, mas era duvidoso que ela contasse. Em todo caso ele ia puxar por ela, com jeito, devagarinho.
Um dia depois do outro, formando semanas, com domingos no fim, dias de descanso no sítio, de visitas aos vizinhos, de reza no oratório. Seu Jucá foi à cidade pagar o médico, Tubi aproveitou para fazer das suas e se arrependeu. Disseram muitas vezes que ele não teve culpa, que o que tem de acontecer está traçado, mas ele preferia não ter chamado o Guinácio para o passeio no rio, logo aonde, o lugar mais proibido de todos. Também a mania de Guinácio de querer fazer coisas arriscadas para mostrar que era bicharedo. Precisava ele mergulhar no lugar mais fundo do poço, e mergulhar de ponta, pulando do alto? O resultado foi que ele engarranchou a cabeça numa forquilha que ninguém sabia que existia ali, com certeza trazida de longe n’alguma enchente, e não teve força nem fôlego para desengarranchar. Quando Tubi viu que ele estava demorando a aparecer ainda pensou que fosse de propósito, brincadeira para assustar o companheiro ou mostrar que ninguém batia ele em comprimento de fôlego. Mas qualquer fôlego, por mais comprido, tem hora de acabar, e se a pessoa esperar até o último minuto não aguenta chegar em cima. Teria Guinácio nadado por baixo da água e aparecido em alguma moita mais embaixo para deixar Tubi pensando que ele ainda estava no fundo? O medo de passar por bobo, ou assustado, fez Tubi esperar um pouco mais. Por fim ele resolveu gritar. Começou experimentando, fingindo despreocupação, Guinácio podia estar escondido esperando. Vendo que ele não aparecia, abriu a boca com vontade, gritou até ficar rouco, correndo para cima e para baixo. De repente se lembrou que se Guinácio ainda estivesse no fundo do poço não poderia ouvir, e saiu correndo pelo mato, pela estrada, até chegar em casa.
Encontrar Guinácio foi fácil, mas soltá-lo da forquilha é que foi elas. Vários homens mergulharam juntos, experimentaram, puxaram, sacudiram, não havia meio, se fizesse muita força iam arrancá-lo sem a cabeça. Por fim arranjaram um pau, mergulharam com ele, abriram a forquilha, fazendo alavanca, só assim tiraram. O coitado tinha o corpo e a cara da cor de cinza e a barriga esticada de tanta água engolida, e quando deitaram ele no capim, e a cabeça dele pendeu para um lado, a água escorreu em bica fina, como de garrafa tombada. Levaram ele nas costas para o rancho, e logo começou a chegar gente, mulheres mais, todos muito se impressionando com o esbugalhado dos olhos.
A mãe de Guinácio, uma mulher calada, meio boba, puxou um tamborete para junto do jirau onde deixaram o corpo, sentou e não arredou mais, os olhos fixos no rosto do morto, como se esperasse que uma explicação, uma justificação, fosse aparecer nele a qualquer momento. O carapina veio tomar as medidas para fazer o caixão, ela não quis deixar, abria os braços sobre o filho, protegendo. Veio gente tirá-la, ela se agarrou aos pés do jirau, tiveram que desistir, se puxassem derrubavam o corpo. Procuraram o pai para tomar uma providência, não o acharam em parte nenhuma. O carapina fez o caixão mesmo sem as medidas, fez grande para garantia de não sair pequeno. Na hora de pôr o corpo dentro foi mais triste ainda. Experimentaram de novo tirar a mãe de perto, pedindo, aconselhando, ela não atendia, perguntavam pelo pai para ajudar, ninguém sabia.
— Assim também não. É preciso tirar o defuntinho para enterrar — disse alguém no rancho cheio de gente.
Vários homens seguraram os braços da mulher, subjugaram a coitada aos trancos, à moda de soldados prendendo criminoso, ela gritava, mordia, dava pontapés, se embolaram por cima do jirau, os homens estavam tão enfezados que já xingavam, o jirau despencou de um lado e o corpinho escorregou mas não caiu de todo, ficou com um pé no chão e o outro preso nas varas espandongadas, a calcinha de riscado repuxada para cima mostrando a perna escalavrada das travessuras.
— Para, gente! O menino caiu! — gritou alguém.
— Deixa cair, que do chão não passa — respondeu outra voz no bolo que rodava pelo cômodo pequeno derrubando panelas no fogão, esbarrando os pés numa gamela que rolou de um canto, tropeçando nos paus de lenha de uma pilha que se desmanchou.
De repente, ninguém viu como, ela passou a mão num tição e boleou-o para cima dos homens, num instante eles limparam o rancho, passando aos dois e aos três pela porta estreita, aluindo as paredes de pau-a-pique, com perigo de derrubar tudo.
— Ora vá pro... vá pro... — disse um homem indignado lá fora, esfregando as costas da mão alcançada por uma fagulha, e só não completando a frase por respeito ao morto. — Fique com o defunto, durma abraçada com ele. Eu cá não me envolvo mais.
Os outros ficaram de longe, debaixo do mamoeiro, em volta do jaca deliquada, olhando e pensando.
De tarde encontraram o pai do menino dormindo debaixo de uma árvore no mato, com uma garrafa de pinga vazia do lado. Quem achou deu aviso, muitos foram buscar, levaram para o Amanhece, que ficava mais perto, jogaram uma cuia de água no rosto dele, D. Zilza mandou fazer um café forte, deu para ele, foi conversando, se conformasse, Deus sabe o que faz, era preciso enterrar o menino, estava ficando tarde, desse exemplo à mãe, falasse calmo com ela.
Depois que bebeu o café sem açúcar, sentado no banco da cozinha, sem tirar os olhos do chão, ele foi parando de chorar, suspirou, pediu muito desculpa pelo papel que tinha feito, beijou a mão de D. Zilza e foi para o rancho, com aquela gente toda atrás, parece que mais interessada em ver o que pudesse acontecer do que em ajudar.
O pai entrou sozinho no rancho e desapareceu na escuridão sem janela. Ninguém ficou sabendo o que ele disse ou fez lá dentro, quem é que quer graça com tição aceso? Não demorou muito, os dois apareceram na porta, ele com o braço no ombro dela, ela mansa, olhando para o chão; saíram e foram andando sem olhar para ninguém, sozinhos no mundo. Os outros também não diziam nada, só olhavam, desapontados, respeitosos. Os dois sentaram no tronco de uma árvore caída e ficaram lá calados, de cabeça baixa. Não quiseram tomar parte no enterro, que foi feito às carreiras, todos queriam ficar livres depressa, já tinham perdido muito tempo.
Quando Seu Jucá chegou, dois ou três dias depois, Tubi cortou voltas para não ficar perto dele; tomou a bênção depressa e desapareceu. Na hora do jantar alegou enjoo de estômago e escondeu-se na casa da farinha até que tirassem a mesa, mais tarde defendeu-se com Conceição. No dia seguinte aplicou a mesma desculpa da doença para não levantar cedo, mas na hora do almoço Seu Jucá foi buscá-lo dentro da tulha de arroz na casa dos mantimentos.
— Acabe com isso e vem comer. Já sei de tudo, sua mãe me contou. Que te sirva de lição para não ser desobediente.
Tubi saiu da tulha desapontado e levou muito tempo espanando os grãos de arroz da roupa e do cabelo; e entrou em casa satisfeito por ter se livrado daquela preocupação.
Durante o almoço Seu Jucá conversou muito, quebrando a sua própria norma de não falar na hora da comida. Contou as novidades da cidade, deu notícias de pessoas conhecidas de D. Zilza, comunicou o convite que fizera ao Dr. Eugênio para passar uns tempos no sítio logo que pudesse montar a cavalo — ele esteve quase à morte, você soube? — e D. Zilza teve dificuldade em saber quem era o Dr. Eugênio, só se lembrou quando Seu Jucá disse que era o Eugênio filho de D. Joana Loureiro. Então D. Zilza recordou uma surra que o Eugeninho levou da mãe ali mesmo no Amanhece por ter quebrado a mão de um Sagrado Coração quando brincava de esconder atrás das dobras da toalha de mesa do oratório. Seu Jucá não se lembrava, já fazia muito tempo, há quantos anos que D. Joana tinha morrido. Por fim Seu Jucá deu a notícia que deixou Tubi alvoroçado.
— Estou nos casos de comprar o automóvel do Major Boanerges. Mas D. Zilza ficou alarmada.
— Não é perigoso não, Jucá? Automóvel corre muito, bate em barranco; desembesta ladeira abaixo.
— Perigoso nada, mãe. Cavalo é muito mais. Espanta com qualquer coisa, pula, arrebenta a barrigueira, derruba quem está montado. Henricão não quebrou a perna numa queda de cavalo? E ele é peão, estava acostumado.
Para evitar discussão Seu Jucá disse que era apenas uma ideia, ainda não tinha decidido, dependia de muitas coisas. Tubi murchou imediatamente, mas de noite sonhou com o automóvel levantando poeira pelas estradas do Amanhece, ele na direção.
A notícia chegou num dia escuro de chuva miúda, dia próprio para acontecimentos tristes. Quem a levou, de longe parecia um bicho esquisito, de perto era um homem embrulhado numa caroça. Vinha da Paciência avisar que Seu Belarmino tinha morrido. Quem ouviu primeiro foi D. Zilza, não acreditou.
— Morreu de quê, homem de Deus! Uma pessoa tão forte, tão sadia! — Morreu matado, sim senhora.
— Valha-me Nossa Senhora! Quem matou? Por quê? — Ninguém sabe não senhora. Foi achado na beira da estrada já duro, formigas passeando na boca.
D. Zilza nem teve cabeça para mandar o homem apear. Correu lá dentro e mandou chamar Seu Jucá para ajudá-la a receber a notícia. Ele estava no canavialzinho consertando uma cerca com o Firmino de Rita, veio reclamando.
O homem repetiu a notícia, não esclareceu mais do que já tinha falado, só sabia aquilo.
— É. Tenho que ir dizer adeus ao Belarmino — disse Seu Jucá.
D. Zilza queria ir também para consolar a viúva, ajudar nas rezas, no que fosse preciso, Seu Jucá desaconselhou; não convinha ir com chuva, podia adoecer, ela já não estava queixando de dor na perna, como é que queria sair com aquela friagem? Pessoas diligentes já tinham preparado o corpo e levado para a sala. Deitado entre velas, vestido de preto, um lenço envolvendo a nuca e a boca para disfarçar o estrago das formigas. Seu Belarmino não convencia como morto; parecia que ele estava brincando de assustar os amigos, e a qualquer momento podia sentar na mesa, pular para o chão e dar uma de suas gargalhadas sadias. As pessoas chegavam pisando leve, paravam ao lado da mesa e ficavam olhando Seu Belarmino com todo o respeito, e quando achavam que já tinham se demorado bastante saíam de cabeça baixa, torcendo o corpo de lado para abrir passagem e dar lugar a outros. Cumprida essa obrigação, ficavam livres para acender cigarros e conversar sobre o acontecido, indagar como foi mesmo, por que teria sido, aventurar hipóteses.
As mulheres, mais práticas em assuntos de tristeza, chegavam de rosário na mão, persignavam-se, rezavam um pouco, com os olhos presos a uma marca qualquer da toalha da mesa, suspiravam, persignavam-se de novo e saíam chorosas para conversar lá dentro. Ninguém deixava de notar os vaivéns do cachorro Balisco em sua inquietação pela casa, entrando e saindo da sala, farejando em volta da mesa, deitando-se em um canto, levantando-se em seguida para sair e logo reaparecer na busca de uma pista que o ajudasse a entender.
As visitas achavam aquilo extraordinário, imaginem, o cachorro sente que o dono morreu, está procurando; depois dizem que bicho não tem alma.
Seu Belarmino e Balisco. Descobriram que no dia e na hora provável da morte o cachorro acordou de repente e começou a uivar, depois deitou-se debaixo da cama de Seu Belarmino e ficou gemendo baixinho. Não adiantou chamarem, ele não saía. Quiseram tocar com um pau, ele ameaçou morder. Faculdades fantásticas eram atribuídas aos cachorros, aos bichos em geral, e ouvindo todos aqueles depoimentos Tubi lamentava ser apenas gente, uma espécie aparentemente inferior. Cachorro, por exemplo, vê o que gente não vê, ouve o que gente não ouve. Aí alguém tomou a defesa do homem, disse que eles também adivinham quando a morte vai chegar. O próprio Seu Belarmino devia ter pressentido que ia morrer. Dias antes ele desistira de comprar as terras de Seu Tônico Vaz, depois de levar anos insistindo pelo negócio; disse que o compromisso era grande e que ninguém sabe o dia de amanhã. E de repente todos os presentes que tiveram contato com ele nos últimos tempos foram se lembrando de passagens então consideradas triviais ou obscuras, e que agora se iluminavam e se explicavam. A velha pendenga com Osmínio Coelho, que ameaçava acabar em pescoções ou mesmo tiros, foi resolvida pacificamente num encontro casual na estrada. “Olhe aqui, Osmínio. Vamos acabar com essa desavença boba entre vizinhos. Você diz que gente minha matou sua vaca. Se mataram, eu arco com o prejuízo. Quanto é a vaca?” Seu Osmínio disse que caiu das nuvens, não esperava aquilo, não quis cobrar. “Então você vai lá no sítio e escolhe outra a seu gosto.” Para encerrar o assunto Seu Osmínio, prometeu ir, mas ainda não tinha ido. Teve também o caso da viúva que foi pagar uma dívida antiga ainda deixada pelo marido. Seu Belarmino nem deixou que ela desembrulhasse o dinheiro do lenço, disse que guardasse para os meninos. Ela protestou, fazia questão, era pedido do marido. “Dívida é dívida, Seu Belarmino. Me deixe pagar que eu ainda fico agradecida pela sua paciência.” Ele pensou e propôs: “Então pague em reza”. A mulher chorou e beijou a mão dele, sem saber que estava se despedindo para sempre. Contaram ainda uma discussão com um empregado, todo mundo pensou que ele ia pôr o homem para fora do sítio com a família e os badulaques, como fizera de outras vezes que fora desrespeitado. Seu Belarmino virou as costas e foi para dentro, o homem ficou esperando as contas. Mais tarde Seu Belarmino chamou e propôs: “Vamos pôr uma pedra nisso, Dito. Você sempre foi bom empregado. Se quiser ficar, o seu serviço está aí”. Agora Dito era um dos que choravam na sala.
E os passeios que ele deu de fazer. De repente, sem mais nem menos, arreava o cavalo e saía sem destino, quando voltava era falando em coisas insignificantes, que nunca o tinham interessado antes — um ninho de beija-flor que tinha visto, uma paineira carregada, um joão-de-barro fazendo casa; parecia que ele estava tomando posse do sítio com anos e anos de atraso, mas agora viam que ele estava era se despedindo. Um dia ele teve vontade de comer requeijão quente, não estavam fazendo requeijão. D. Elisa teve que apanhar um da despensa e desmanchar no fogo, não ficou igual mas ele disse que servia, dava uma ideia. Seu Belarmino estava vivendo com pressa, queria abarcar muito em pouco tempo.
Tudo isso se contava, se juntava e inteirava. Ele viera dando as deixas aqueles dias todos e ninguém percebeu — nem a mulher, que teve um aviso muito claro quando lembrou a ele a necessidade de fazer roupas novas para a festa do Barro Preto e ele respondeu que desconfiava muito que esse ano não ia ter Barro Preto para eles.
Por que então ele não falou claro, minha gente eu vou morrer por esses dias, uma coisa me diz? Uns achavam que ele não tinha certeza, apenas desconfiava e não queria passar por fiteiro caso nada acontecesse; outros que ele recebeu o aviso mas com a proibição de falar, por isso só pôde fazer sinais que ninguém entendeu. Agora ele estava ali deitado entre velas, não precisava mais falar cifrado. Só ele sabia quem o matou, e por quê. Deitado na mesa, os pés meio abertos com o peso da botina, Seu Belarmino era um enigma.
Na volta para o Amanhece Tubi ia preocupado com uma pergunta que tencionava fazer ao pai mas não achava jeito. Por várias vezes ele esteve a ponto de abrir a boca mas se conteve, receando que a voz não saísse no tom certo. Era preciso muita cautela para não revelar o motivo da pergunta, imagine se o pai desconfiasse da cisma dele. Tubi ensaiou várias maneiras de perguntar, e quando achou que tinha achado a maneira certa, faltou a coragem. Então ele foi marcando prazos improrrogáveis. Quando chegarmos naquele cupim eu pergunto. Chegavam ao cupim, ele ficava na dúvida se era aquele ou outro mais adiante. Marcava outro cupim, ou uma árvore, ou um boi pastando, e na hora o pai estava acendendo um cigarro, ou se desviava muito para um lado da estrada, ou tossia, e Tubi perdia a oportunidade. Estaria ele sendo injusto com o pai? Pecando contra o mandamento de honrar pai e mãe? Os cavalos pisavam surdo na terra mole da chuva da véspera. Uma tartaruguinha morta na estrada, a barriguinha cor-de-rosa virada para cima, murchando ao sol frouxo. Tubi parou o cavalo e se inclinou para olhar. Formiga não perde tempo. Lá estavam elas, ativas, atacando. Aí ele pensou nos muitos bichos que morrem na estrada e são comidos por outros bichos. A estrada é perigosa para todos, até para formigas. Quantas formigas aqueles dois cavalos não tinham matado naquele dia? Numa pisada só, quantas não morrem? Não é só bala que mata. Bala de carabina 44, a ponta rachada em cruz pra fazer maior estrago.
Tubi olhou o pai que seguia na frente, o chapéu já meio puído na quina do amassado, um chapéu que seria reconhecido mesmo separado do dono (o chapéu de Seu Belarmino estava pendurado num cabide na varanda da Paciência, quem olhasse para ele via em continuação a cabeça e o rosto de Seu Belarmino, engraçado esse casamento do chapéu com o dono), o paletó esticado nas costas por causa da curvatura que Seu Jucá apanhara depois do tiro. Seu Jucá também podia ter morrido, e se tivesse eles não estariam ali juntos, de volta da despedida ao cadáver de Seu Belarmino. Tubi teve uma saudade repentina do pai, uma vontade de ser amigo dele, de nunca desobedecê-lo nem lhe dar trabalho; cutucou o cavalo com os calcanhares, alcançou o pai.
— Pai, o senhor vai mesmo comprar o automóvel? O pai deu uma chupada demorada no cigarro, jogou-o fora, soprou a fumaça pelo nariz, depois pela boca; respondeu como se falasse com gente grande: — Vou, filho. Estou resolvido. Bobagem a gente viver poupando dinheiro. De repente cai morto e não fez o que teve vontade. Não viu Seu Belarmino?
Tubi esqueceu o morto, as tristezas da noite, tudo o que tinha pensado e sofrido. Mas surgiu uma dúvida.
— E quem vai guiar?
— O Jorgito de Amélia vai me ensinar. Depois eu ensino a você.
É. Com um automóvel o Amanhece ia ser melhor ainda.
— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". [seleção de J. Aderaldo Castelo]. São Paulo: Global Editora, 2000.
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Biografia do autor veja aqui:
José J. Veiga - escritor goiano cosmopolita
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