Crônica (15 de setembro de 1862) - Machado de Assis

© Emile Verhaeren

Crônicas
15 DE SETEMBRO DE 1862.

Tirei hoje do fundo da gaveta, onde jazia a minha pena de cronista. A coitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la articular por entre os bicos, uma tímida exprobração. Em roda do pescoço enrolavam-se uns fios tenuíssimos, obra dessas Penélopes que andam pelos tetos das casas e desvãos inferiores dos móveis. Limpei-a, acariciei-a, e, como o Abencerragem ao seu cavalo, disse-lhe algumas palavras de animação para a viagem que tínhamos de fazer. Ela, como pena obediente, voltou-se na direção do aparelho de escrita, ou, como diria o tolo de Bergerac, do receptáculo dos instrumentos da imoralidade. Compreendi o gesto mudo da coitadinha, e passei a cortar as tiras de papel, fazendo ao mesmo tempo as seguintes reflexões, que ela parecia escutar com religiosa atenção:

— Vamos lá; que tens aprendido desde que te encafuei entre os meus esboços de prosa e de verso? Necessito mais que nunca de ti; vê se me dispensas as tuas melhores idéias e as tuas mais bonitas palavras; vais escrever nas páginas do Futuro. Olha para que te guardei! Antes de começarmos o nosso trabalho, ouve amiga minha, alguns conselhos de quem te preza e não te quer ver enxovalhada . . . Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias, nem quaisquer outras; de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar. O pugilato das idéias é muito pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te e fecha-te no círculo dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônicas. Seja entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a nulidade, justiceira sempre, tudo isso com aquelas meias-tintas tão necessárias aos melhores efeitos da pintura. Comenta os fatos com reserva, louva ou censura, como te ditar a consciência, sem cair na exageração dos extremos. E assim viverás honrada e feliz.

E havendo dito estas coisas à minha pena, tinha eu acabado de preparar o papel, e eis que ela começou, entre os meus já desacostumados e emperrados dedos, a mencionar que no dia 4 deste mês se efetuou o encerramento da assembléia legislativa, cerimônia sobre a qual nada há que dizer, porque foi conforme os estilos que por sua natureza nada oferecem de notável. Os membros do parlamento foram procurar no remanso da paz o repouso das lutas da tribuna e dos trabalhos com que auxiliaram a administração na sessão finda. Entre os serviços prestados este ano pela representação nacional, convém não esquecer o de haver habilitado o governo a fazer o serviço financeiro de 63 a 64 por meio de um orçamento definido e discutido.

Passo às letras e às artes.

O maior acontecimento literário da quinzena foi o poema de Thomaz Ribeiro, D. Jaime, cujos primeiros exemplares chegaram pelo paquete. A fama chegou com o livro, e assim, todos quantos estimam a literatura, militantes ou amadores, correram à obra mal os livreiros a puseram nos mostradores. Dizia-se que D. Jaime era uma obra de largas proporções, e que Thomaz Ribeiro, como raros estreantes, deitara a barra muito além de todos os estreantes; dizia-se isto, e muitas coisas mais. O poema foi lido, e uma só vírgula não se alterou aos louvores da fama. O poema D. Jaime é realmente uma obra de elevado merecimento, e Thomaz Ribeiro um poeta de largo alento; a sua musa é simultaneamente simples, terna, graciosa, épica, elegíaca; ensinou-lhe ela a ser poeta de poesia, expressão esta que não deve causar estranheza a quem reparar que há poetas de palavras, mas Thomaz Ribeiro não é poeta de palavras, certo que não!

Não me demorarei em referir os episódios mais celebrados do poema, nem em analisar as páginas mais lidas, que o são todas, e no mesmo grau, mas muito de passagem perguntarei com o Sr. Castilho onde há mais pura e doce poesia do que naquele fragmento poético — Os filhos do nosso amor? — Aquele fragmento publicado isoladamente bastaria para cingir na cabeça de Thomaz Ribeiro a augusta e porfiada coroa de poeta.

Antes da chegada do paquete que nos trouxe aquele presente literário, havia sido publicado o terceiro volume da Biblioteca Brasileira, interessante publicação do meu distinto amigo Quintino Bocaiúva. Este terceiro volume é o primeiro de um novo romance do autor do Guarani. Vejamos o que se pode desde já avaliar nas primeiras cento vinte páginas do romance, que tantas são as do primeiro volume.

E antes de tudo notarei o apuro do estilo em que está escrito este livro; a pena do autor do Guarani distinguia-se pela graça e pela sobriedade; essas duas qualidades dobraram na sua nova obra. O romance intitula-se As minas de prata, e é por assim dizer uma investigação histórica. Serve de base ao romance a descoberta de Robério Dias, no ano da graça de 1557, de umas minas de prata em Jacobina. O romance abre por uma rápida descrição da Bahia de S. Salvador, no dia primeiro de janeiro de 1609. É dia duplamente de festa: dois motivos traziam a população alvoroçada; o primeiro, o dia de ano bom; o segundo, a festa que se preparava para celebrar a chegada à Bahia do novo governador D. Diogo de Menezes e Siqueira.

O autor faz assistir o leitor à entrada das devotas para a igreja da Sé onde devia ser cantada a missa; em ligeiras penadas dá ele amostra dos costumes do tempo, e é por uma cena pitoresca que ele prepara a entrada de alguns dos principais personagens do romance, Estácio Correa, Cristóvão d'Ávila, elegante do tempo, Elvira e Inezita. O namoro destes quatro dentro da igreja é contado em algumas páginas graciosas.

Não acompanharei capítulo por capítulo o primeiro volume; tenho medo de reduzir à prosaica e seca narrativa a exposição interessante das Minas de Prata. Notarei que neste volume, que, como acabo de dizer, é uma exposição, as personagens destinadas a figurar no primeiro plano da história são introduzidas em cena com a importância que as caracteriza: Vaz Caminha, o jesuíta Fernão Cardim, o jesuíta Gusmão de Molina. Se alguma observação me pode sugerir a leitura que fiz do volume, é relativamente a uma simples questão de pormenor. Este padre Molina entra em cena com a cara fechada de um conspirador; deixa-se adivinhar que ele vem em virtude das questões levantadas pela ingerência da Companhia de Jesus nos negócios da administração. Um simples secular que trouxesse uma missão secreta seria reservado; com um jesuíta, não se dá à plausibilidade de suspeitar o contrário; seria prudentíssimo e reservadíssimo. Ora, não me parece próprio de um jesuíta o conselho dado ao lance do xadrez na biblioteca do convento, conselho que, aludindo às suas intenções relativamente ao governador, faz olhar de esguelha o licenciado Vaz Caminha. Talvez esta observação não tenha a importância que eu lhe acho; mas qualquer que seja a insignificância do pormenor a que aludo, lembrarei que é do conjunto das linhas que se formam as fisionomias, e que não sei de fisionomia de jesuíta descuidada e indiscreta.

Entretanto, demos fim à observação e consignemos, ao lado da grata notícia do primeiro volume, o desejo que nos fica, a mim e aos que o leram, da próxima publicação dos dois volumes complementares.

Falemos agora de Arthur Napoleão que acaba de chegar ao Rio de Janeiro. Em 1857, aquele prodigioso menino inspirou verdadeiro entusiasmo nesta Corte, onde acabara de chegar cercado pela auréola de uma reputação. Criança ainda, o prestígio dos tenros anos dava ao seu talento realce maior. Com ele acontecera o mesmo que com Mozart, de quem diz um escritor, aludindo à primeira manifestação do talento na idade pueril: — “C'est ainsi que Mozart apprit la musique, comme en se jouant, ou plutôt la musique se reveillait dans son âme avec le sentiment de la vie.” Desde os primeiros anos, Arthur revelou-se, e desde logo começou para ele essa série não interrompida de trunfos de que se tem composto a sua existência.

Os amigos e patrícios poderiam desconfiar do seu entusiasmo, e indagar entre si se ele não era efeito de um amor sem exame nem reserva, ou pela interessante criança, ou pelo patrício artista. Essa dúvida, se alguma vez se apresentou no espírito dos patrícios e dos amigos, dissipou-se sem dúvida quando Arthur Napoleão, entrando nos grandes centros da arte e dos artistas, recebeu deles a confirmação solene do batismo da pátria. Aplausos, ovações, abraços fraternais o receberam, e cada nome que passava, Rossini, Meyerbeer, Verdi, Talberg, Vieux-Temps, Sivori, deixaram uma nota sua, uma linha, uma palavra no álbum do menino artista.

Assim cresceu Arthur Napoleão na idade, na glória e no talento; de cidade em cidade, a sua viagem foi um triunfo não interrompido; mas, como verdadeiro artista, não se deixou adormecer nos louros e nas delícias de Cápua; estudou viajando, e buscou pelo estudo a perfeição. Nem só executa inspirações alheias; tem-nas suas e das mais originais; e deve-se ao seu estro musical algumas composições esparsas de muito merecimento. Sei mesmo que Arthur Napoleão busca voar mais alto e escrever seu nome em uma obra duradoura: dois poetas ingleses deitaram mãos à obra, a pedido do compositor, e cada um foi depor-lhe nas mãos um poema dramático, tirado um da comédia de Shakespeare, Como queira, e o outro de uma novela de Fenimore Cooper.

Quisera falar de teatros, mas os teatros não me dão largo campo para falar deles, ou, arrisquemos antes a verdadeira expressão, não me dão campo absolutamente nenhum. Nenhuma nova de vulto, digna de menção, foi dada nos dias da quinzena; e a não ser a reprise dos Íntimos, no Ateneu Dramático, para solenizar o grande dia nacional, na presença da imperial família, e cujo desempenho esteve na altura dos melhores dias daquela comédia, não tenho que comentar entre mim e o público. No horizonte aparece notícia de novidades dramáticas, e talvez à hora em que os leitores lerem estas páginas alguma delas estejam na tela da publicidade. Dessas novidades são as principais um drama original no Ginásio e uma tradução no Ateneu; o drama original é do Sr. Dr. Macedo, e intitula-se Lusbellla; a tradução é uma comédia do feliz e talentoso Sardou, o autor dos Íntimos e das Garatujas, intitulada O Borboletismo. É a necessidade que os maridos têm de variar de ocupações, de hábitos e... de mulheres. Borboletear é o verbo, e nesta época em que os costumes sofrem suas mais ou menos profundas facadas, estou certo que esta comédia desafiará a curiosidade angustiosa de muitas esposas. Eu li o original da comédia francesa, e posso afirmar que não há posição mais ridícula do que a do marido borboleteador, e que conclusões de V. Sardou são de consolar as mulheres desventurosas. Ocorre-me agora que também o Ateneu Dramático anuncia uma nova comédia, original brasileiro, cujo título é uma interrogação: O que é o casamento? O autor chama-se* * *.

Este sinal abriu já campo às conjecturas. A comédia é para estréia do distinto artista Joaquim Augusto, que acaba de chegar da cidade de S. Paulo.

Nenhuma ocasião mais azada do que esta para lançar ao papel algumas reflexões que trago incubadas relativamente à situação dos teatros. Para os que, como eu, vêem no teatro uma tribuna e uma escola, é triste contemplar o abandono em que ele jaz, sem que a iniciativa oficial intervenha com a sua força e com a sua autoridade. Assim, vemos hoje duas cenas regulares entregues aos seus próprios recursos; a primeira, o Ateneu Dramático, onde uma reunião dos nossos melhores artistas trabalha com ardor por desempenhar uma tarefa árdua, gloriosa, embora, marcando a cada exibição notável aproveitamento dos seus recursos; a segunda, o Ginásio, onde o grupo de artistas que lhe ficara depois do último desmembramento, procura e se esforça por continuar as tradições passadas. Não sei qual o meio de resolver a situação, ou antes, não quero estender-me ao exame dela; mas o que é fato é que o trabalho fecundo e os recursos bem aproveitados têm direito à atenção do governo; e mais que tudo as duas missões do teatro, a moral e a poética, demandam dos poderes superiores alento e iniciativa. Dito isto, ponho ponto final a esta crônica, e passo a ralhar com a minha pena, que tão esperançosa me surgiu da gaveta, e tão desalinhada e sensaborona se houve nestas páginas.

- Machado de Assis 'Crônicas'. Publicado originalmente em 'O Futuro', Rio de Janeiro, em 15 de setembro de 1862 | Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938.

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