Não é só o inferno... - Machado de Assis

5 de junho

© Eliseu Visconti
Não é só o inferno que está calçado de boas intenções. O céu emprega os mesmos paralelepípedos. Assim que, a ideia de organizar um Club Cívico, destinado a desenvolver o sentimento de patriotismo, entre nós, merece o aplauso dos bons cidadãos. Apareceu esta semana, e vai ser posta em prática.

Pode acontecer que o resultado valha menos que o esforço; nem por isso perde de preço o impulso dos autores. A boa intenção calça, neste caso, o caminho do céu. Se cada um entender que o seu negócio vale mais que o de todos, e que antes perder a pátria que as botas, nem por isso desmerece a intenção dos que se puserem à testa da propaganda contrária. Levem as botas os que se contentarem com elas; os que amam alguma coisa mais que a si mesmos, ainda que poucos, salvarão o futuro.

Há um patriotismo local, que não precisa ser desenvolvido, é o das antigas circunscrições políticas, que passaram à república com o nome de Estados. Esse desenvolve-se por si mesmo, e poderia até prejudicar o patriotismo geral, se fosse excessivo, isto é, se a idéia de soberania e independência dominasse a de organismo e dependência recíproca; mas é de crer que não. Haverá exceções, é verdade. Nesta semana, por exemplo, vimos todos um telegrama de um Estado (não me ocorre o nome) resumindo a resposta dada pelo presidente a um ministro federal, que lhe recomendara não sei que, em aviso. Disse o presidente que não reconhecia autoridade no ministro para recomendar-lhe nada. Não sei se é verdadeira a notícia, mas tudo pode acontecer debaixo do céu. Por isso mesmo é que ele é azul: é para dar esta cor às superfícies mais arrenegadas do nosso mundo.

E daí pode ser que a razão esteja do lado do presidente (presidente ou governador, que eu já não sei a quantas ando). Crer que o ministro federal fala em nome do presidente da União, e que a União é a vontade geral dos Estados, é negócio de sentido tão sutil, que não passa dos subúrbios ou da barra; arrebenta logo no Engenho Velho, ou em Santa Cruz. O que chega lá fora, é o antigo modo de ver o centro, o opressor, o Rio de Janeiro, a vontade pessoal, o capricho, o sorvedouro, e o diabo. Que culpa tem o governador (salvo seja) de ler pela cartilha velha?

Tudo isso se modificará com o tempo, e os Estados acabarão de acordo sobre o que é soberania. Pela minha parte, só uma coisa me dói na composição dos Estados: é o nascimento da palavra co-estaduano. Não é mal feita, e admito até que seja bonita; mas eu sou como certas crianças que estranham muito as caras novas, e não raro acabam importunando os respectivos donos com brincos. Pode ser que eu ainda trepe aos joelhos de co-estaduano, que lhe tire o relógio da algibeira e que lhe puxe os dedos e o nariz. Por enquanto, escondo-me nas saias da ama seca. Co-estaduano tem os olhos muito arregalados. Co-estaduano quer comer eu.

Podem retorquir-me que é pior, que eu sou carioca, e dentro em pouco, organizado o Distrito Federal, fico com milhares de co-distritanos. Concordo que é mais duro; mas será o que for, tomara eu já ver organizado o distrito. A nova assembléia local acabará provavelmente com a mania de condenar casas à demolição. Só no mês passado foram condenadas mais de quarenta. Ora, eu pergunto se o direito de propriedade acabou. Eu, dono de duas daquelas casas, a quem recorrerei? Para tudo há limite, defesa, explicação. Uma casa sem livros ou com livros mal escriturados, outra sem dinheiro, outra sem ordem, acham amparo nas leis, ou, quando menos, na vontade dos homens. Por que não terão igual fortuna as casas de pedra ou de tijolo? Que certeza há de que uma casa venha a cair, pela opinião do engenheiro X, se eu tenho a do engenheiro Z, que me afirma a sua perfeita solidez, e ambos estudaram na mesma escola? Já admito que o meu engenheiro desse aquela opinião com o fim exclusivo de me ser agradável; mas onde é que a delicadeza de sentimentos de um homem destrói o direito anterior e superior de outro?

Estas questões pessoais irritam-me de maneira que não posso ir adiante. Sacrifico o resto da semana.

Não trato sequer da reunião de proprietários e operários, que se realizou quinta-feira no salão do Centro do Partido Operário, a fim de protestar contra uma postura; fato importante pela definição que dá ao socialismo brasileiro. Com efeito, muita gente, que julga das coisas pelos nomes, andava aterrada com a entrada do socialismo na nossa sociedade, ao que eu respondia: 1°, que as idéias diferem dos chapéus, ou que os chapéus entram na cabeça mais facilmente que as idéias, — e, a rigor, é o contrário, é a cabeça que entra nos chapéus; 2°, que a necessidade das coisas é que traz as coisas, e não basta ser batizado para ser cristão. Às vezes nem basta ser provedor de Ordem Terceira.

Outrossim, não me refiro ao pugilato paraguaio, que aliás dava para vinte ou trinta linhas. A influenza argentina (moléstia) com os quatorze mil atacados de Buenos Aires merecia outras tantas linhas, para o único fim de dizer que um afilhado meu, doutor em medicina, pensa que o homem é o condutor pronto e seguro do bacilo daquela terrível peste, mas que eu não acredito, nem no bacilo do mal, nem na balela, que é alemã. Gente alemã, quando não tem que fazer, inventa micróbios.

Excluo os negócios de Mato Grosso, o serviço dos bondes de Botafogo e Laranjeiras, as liquidações de companhias, os editais, as prisões, as incorporações e as desincorporações. Uma só coisa me levará algumas linhas, e poucas em comparação com o valor da matéria. Sim, chegou, está aí, não tarda... Não tarda a aparecer ou a chegar a companhia lírica. Tudo cessa diante da música. Política, Estados, finanças, desmoronamentos, trabalhos legislativos, narcóticos, tudo cessa diante da bela ópera, do belo soprano e do belo tenor. É a nossa única paixão, — a maior, pelo menos. Tout finit par des chansons, em França. No Brasil, tout finit par des opéras, et même un peu par des operettes... Tiens! J’ai oublié ma langue.

- Machado de Assis, "A semana". Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de junho de 1892 | Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. 
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