Nós, os temulentos - João Guimarães Rosa

© Sorin Dumitrescu Mihaesti
Prefácio

Nós, os temulentos

Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perquiria tanto. Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém-túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio representar de símbolo; menos, ainda, se exibir sob farsa. De sobra afligia-o a corriqueira problemática quotidiana, a qual tentava, sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar.
Exercera-se num, até às primeiras duvidações diplópicas: — “Quando... — levantava doutor o indicador — ... quando eu achar que estes dois dedos aqui são quatro”... Estava sozinho, detestava a sozinhidão. E arejava-o, com a animação aquecente, o chamamento de aventuras. Saiu de lá já meio proparoxítono.
E, vindo, noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: — Bêbado, outra vez... — em pito de pastor a ovelha. — É? Eu também... — o Chico respondeu, com, báquicos, o melhor soluço e sorriso.
E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o apostrofaram: — Bêbado, outra vez? E: — Não senhor... — o Chico retrucou — ... ainda é a mesma.
E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. — Feia! — o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. — E você, seu bêbado!? — megerizou a cuja. E, aí, o Chico: — Ah, mas... Eu? ... Eu, amanhã, estou bom...
E, continuando, com segura incerteza, deu consigo noutro local, onde se achavam os copoanheiros, com método iam combeber. Já o José, no ultimado, errava mão, despejando-se o preciosíssimo líquido orelha adentro. — Formidável! Educaste-a? — perguntou o João, de apurado falar. — Não. Eu bebo para me desapaixonar... Mas o Chico possuía outros iguais motivos: — E eu para esquecer... — Esquecer o que? — Esqueci.
E, ao cabo de até que fora-de-horas, saíram, Chico e João empunhando José, que tinha o carro. No que, no ato, deliberaram, e adiaram, e entraram, ora em outra porta, para a despedidosa dose. João e Chico já arrastando o José, que nem que a um morto proverbial. — Dois uísques, para nós... — Chico e João pediram — e uma coca-cola aqui para o amigo, porque ele é quem vai dirigir...
E — quem sabe como e a que poder de meios — entraram no auto, pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. — Qual dos senhores estava na direção? — foi-lhes perguntado. Mas: — Ninguém nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás...
E, deixado o José, que para mais não se prezava, Chico e João precisavam vagamente de voltar a casas. O Chico, sinuoso, trambecando; de que valia, em teoria, entreafastar tanto as pernas? Já o João, pelo sim, pelo não, sua marcha ainda mais muito incoordenada. — Olhe lá: eu não vou contar a ninguém onde foi que estivemos até agora... — o João predisse; epilogava. E ao João disse o Chico: — Mas, a mim, que sou amigo, você não podia contar?
E, de repente, Chico perguntou a João: — Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado?! Ao que o João obtemperou: — Se eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar — para minha mulher ma contestar...
E, desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o que, este penúltimo, alegre embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-se-lhe. — Sou como Diógenes e as Danáides... — definiu-se, para novo prefácio. Mas, com alusão a João: — É isto... Bêbados fazem muitos desmanchos... — se consolou, num tambaleio. Dera de rodear caminhos, semi-audaz em qualquer rumo. E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: — Pode me dizer onde é que estou? — Na esquina de 12 de Setembro com 7 de Outubro. — Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade...
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: — Faz favor, onde é que é o outro lado? — Lá... — apontou o sujeito. — Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
E retornou, mistilíneo, porém, porém. Tá que caiu debruçado em beira de um tanque, em público jardim, quase com o nariz na água — ali a lua, grande, refletida: — Virgem, em que altura eu já estou!... E torna que, se-soerguido, mais se ia e mais capengava, adernado: pois a caminhar com um pé no meio-fio e o outro embaixo, na sarjeta. Alguém, o bom transeunte, lhe estendeu mão, acertando-lhe a posição. — Graças a Deus! — deu. — Não é que eu pensei que estava coxo?
E, vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas. Sentou-se a um portal, e disse-se, ajuizado: — É melhor esperar que o cortejo todo acabe de passar...
E, adiante mais, outra esbarrada. Caiu: chão e chumbo. Outro próximo prestimou-se a tentar içá-lo. — Salve primeiro as mulheres e as crianças! — protestou o Chico. — Eu sei nadar...
E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste. Pediu-lhe: — Pode largar meu braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho... Com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e ibibibidem. Foi às lágrimas: — Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!
E, chorado, deu-lhe a amável nostalgia. Olhou com ternura o chapéu, restado no chão: — Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Temos de nos separar, aqui...
E, quando foi capaz de mais, e aí que o interpelaram: — Estou esperando o bonde... — explicou. — Não tem mais bonde, a esta hora. E: — É? Então, por que é que os trilhos estão aí no chão?
E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: — Não entendo... — ingrato resmungou. — Recebo respostas diferentes, o dia inteiro.
E não menos deteve-o um polícia: — Você está bebaço borracho! — Estou não estou... — Então, ande reto nesta linha do chão. — Em qual das duas?
E foi de ziguezague, veio de zaguezigue. Viram-no, à entrada de um edifício, todo curvabundo, tentabundo. — Como é que o senhor quer abrir a porta com um charuto? — É... Então, acho que fumei a chave...
E, hora depois, peru-de-fim-de-ano, pairava ali, chave no ar, na mão, constando-se de tranquilo terremoto. — Eu? Estou esperando a vez da minha casa passar, para poder abrir... Meteram-no a dentro.
E, forçando a porta do velho elevador, sem notar que a cabine se achava parada lá por cima, caiu no poço. Nada quebrou. Porém: — Raio de ascensorista! Tenho a certeza que disse: — Segundo andar!
E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. Pôde entrar no apartamento. A mulher esperava-o de rolo na mão. — Ah, querida! Fazendo uns pasteizinhos para mim? — o Chico se comoveu.
E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: — Que?! Um homem aqui, nu pela metade? Sai, ou eu te massacro!
E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe. — Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você não tirar os óculos? — o Chico se arrependeu.
E, com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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Veja aqui Biobibliografia do autor:

3 comentários:

  1. Genial conto de bêbado e da condição humana da solidão, a linguagem infinitamente criativa de Guimarães Rosa!

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  2. Genial! Não paro de rir nunca mais, kkkkkk

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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