Roquette-Pinto |
Se, em meio à conversa no seu apartamento atulhado de coisas díspares, sacasse do bolso uma pomba, e a fizesse descrever no ar um bailado de Stravinski, não nos espantaríamos; tinha poder e graça para tanto. A ciência costuma tornar os homens fechados em si mesmos, e desprovidos de outro interesse que não seja o de sua especialidade; mas, tratando-se de Roquette-Pinto, ela não podia com o homem, que cultivava uma noção muito generosa, digamos romântica, de ciência. Escreveu ele, certa vez, que “o mundo anda cheio de técnica científica, mas vive longe do espírito científico; este não poderia servir senão à beleza, à verdade e à justiça”. Este conceito marca bem as raízes humanas — e humanísticas — de sua formação. Assim, num dia remoto em que lhe deu gana de fazer rádio, foi para associá-lo à educação, e esse homem dos mais ilustres do seu meio se pôs em frente ao nosso primeiro microfone, como simples locutor, para ensinar, como quem conta histórias. Durante anos, Roquette-Pinto manteve no Brasil essa noção alta de radiodifusão, e poderia suspeitar-se que falava sozinho, como um doido manso, se não houvesse conseguido cativar outros espíritos de boa vontade, que lhe secundavam e revigoravam o exemplo. A comercialização e cretinização do rádio são o tributo que pagamos pelo domínio desse invento, mas todo preço é baixo, quando conquistamos um meio de unir e sensibilizar o Brasil — e esse serviço, nós o ficamos devendo à fantasia prática de Roquette-Pinto.
Lidou com índios, minerais, plantas, bichos, gravuras, filmes, rendas paraguaias, sambaquis. Interessava-o tudo quanto guardasse um segredo da natureza ou pudesse integrar-se na vida de seus semelhantes e torná-la mais aprazível. Era um brasileiro — perdão, um brasiliano — vivendo a sorte de seus patrícios, e não um mandarim das letras, que se recolhe a seu jardim para aspirar a flor do mundo. Sua ligação com a terra, documentada pela natureza e sabor de seus estudos, está ainda presente nos nomes de espécies que naturalistas quiseram associar ao seu; se esta é homenagem costumeira na classe, ganha no caso um sentido particular: a Agria claudia roquettei, que é uma de nossas borboletas, e o pássaro da região central, conhecido cientificamente como Phylloscartes roquettei, sugerem a intimidade espontânea entre o homem fiel ao espírito da natureza e os seres e coisas que ele amava. Roquette não lhes sabia apenas a biografia exterior, tinha algo de companheiro no carinho com que se debruçava sobre tudo. Era um civilizado a quem a civilização não faria falta, pois seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e extraindo dele valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo instinto.
Na dor de sua perda, parece que ainda lhe escutamos a voz clara, firme e bem timbrada, feita para ensinar e encantar: “O mundo será velho; o homem é muito moço… Há povos que mal conhecem o fogo, e ainda ignoram o mais rudimentar conforto. Os mais civilizados, há somente uns trinta anos conseguiram voar. Só agora se ouvem os homens de continente a continente. Nos arroubos da juventude, a espécie ainda não pôde escutar a voz profética de alguns filhos mais sábios. Ainda crê na violência; e chama sempre justa a causa do seu interesse…”. Homens como Roquette-Pinto nos ensinam a ter esperança no homem.
— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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