O feiticeiro - Carlos Drummond de Andrade

O feiticeiro


Roquette-Pinto
Muitas linhas se compuseram no desenho da figura de Roquette-Pinto, mas seu traço principal e individualizador está para ser identificado; seria o do mestre ou do feiticeiro? O que ele fez comportava muita indagação própria, dirigida pela disciplina intelectual; era criação em várias províncias do conhecimento, mas fazia-o menos pela ambição de criar do que pela de mostrar como se cria, e o que se pode tirar da imaginação aplicada. Era um professor de imaginação, posta a serviço de utilidades e estudos diversos. E como sua própria imaginação, além de rica, se ornava de um fundo poético peculiar, manifestado menos em verso do que em formas de ação, ele possuía também algo de mágico, que não seria dos menores prestígios de homem tão sedutor.
Se, em meio à conversa no seu apartamento atulhado de coisas díspares, sacasse do bolso uma pomba, e a fizesse descrever no ar um bailado de Stravinski, não nos espantaríamos; tinha poder e graça para tanto. A ciência costuma tornar os homens fechados em si mesmos, e desprovidos de outro interesse que não seja o de sua especialidade; mas, tratando-se de Roquette-Pinto, ela não podia com o homem, que cultivava uma noção muito generosa, digamos romântica, de ciência. Escreveu ele, certa vez, que “o mundo anda cheio de técnica científica, mas vive longe do espírito científico; este não poderia servir senão à beleza, à verdade e à justiça”. Este conceito marca bem as raízes humanas — e humanísticas — de sua formação. Assim, num dia remoto em que lhe deu gana de fazer rádio, foi para associá-lo à educação, e esse homem dos mais ilustres do seu meio se pôs em frente ao nosso primeiro microfone, como simples locutor, para ensinar, como quem conta histórias. Durante anos, Roquette-Pinto manteve no Brasil essa noção alta de radiodifusão, e poderia suspeitar-se que falava sozinho, como um doido manso, se não houvesse conseguido cativar outros espíritos de boa vontade, que lhe secundavam e revigoravam o exemplo. A comercialização e cretinização do rádio são o tributo que pagamos pelo domínio desse invento, mas todo preço é baixo, quando conquistamos um meio de unir e sensibilizar o Brasil — e esse serviço, nós o ficamos devendo à fantasia prática de Roquette-Pinto.
Lidou com índios, minerais, plantas, bichos, gravuras, filmes, rendas paraguaias, sambaquis. Interessava-o tudo quanto guardasse um segredo da natureza ou pudesse integrar-se na vida de seus semelhantes e torná-la mais aprazível. Era um brasileiro — perdão, um brasiliano — vivendo a sorte de seus patrícios, e não um mandarim das letras, que se recolhe a seu jardim para aspirar a flor do mundo. Sua ligação com a terra, documentada pela natureza e sabor de seus estudos, está ainda presente nos nomes de espécies que naturalistas quiseram associar ao seu; se esta é homenagem costumeira na classe, ganha no caso um sentido particular: a Agria claudia roquettei, que é uma de nossas borboletas, e o pássaro da região central, conhecido cientificamente como Phylloscartes roquettei, sugerem a intimidade espontânea entre o homem fiel ao espírito da natureza e os seres e coisas que ele amava. Roquette não lhes sabia apenas a biografia exterior, tinha algo de companheiro no carinho com que se debruçava sobre tudo. Era um civilizado a quem a civilização não faria falta, pois seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e extraindo dele valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo instinto.
Na dor de sua perda, parece que ainda lhe escutamos a voz clara, firme e bem timbrada, feita para ensinar e encantar: “O mundo será velho; o homem é muito moço… Há povos que mal conhecem o fogo, e ainda ignoram o mais rudimentar conforto. Os mais civilizados, há somente uns trinta anos conseguiram voar. Só agora se ouvem os homens de continente a continente. Nos arroubos da juventude, a espécie ainda não pôde escutar a voz profética de alguns filhos mais sábios. Ainda crê na violência; e chama sempre justa a causa do seu interesse…”. Homens como Roquette-Pinto nos ensinam a ter esperança no homem.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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