© Roger de la Fresnaye |
Fui levar ao aeroporto o meu amigo Carlos Manuel. Trata-se de um inveterado viajante, mas que realiza sempre o mesmo percurso aéreo. Já viajava antes de ser, e conservou o hábito. Há em seu passaporte apenas dois carimbos, invariavelmente repetidos. Porque já o conheçam bastante, ou por um segundo motivo, que se deduzirá no fim, as autoridades aeronáuticas, alfandegárias e policiais não o convidam a identificar-se (e se o fizessem não seriam atendidas, pois meu amigo é displicente e omisso em muitas situações civis). Ele chega ao país e sai com desembaraço, embora sem arrogância, abstendo-se de fazer qualquer declaração. Costuma bocejar diante das formalidades, e se alguém de mais préstimo se dispõe a cumpri-las em sua intenção, isso é lá com a pessoa. O céu constitui a rua entre duas casas, e não vai um cristão incomodar-se toda vez que precisa sair de um domicílio e entrar noutro.
Alheia-se totalmente da organização política das duas nações, mas tira da vida cotidiana de ambas boa parte de seus interesses. Está muito ligado ao povo, com quem mantém contato direto e espontâneo, aprazendo-se na companhia de empregadas domésticas, sorveteiros, jornaleiros, estafetas, operários de construção civil, e outros ramos (sem ser demagogo). E não desdenha o convívio com as classes mais favorecidas, cujos salões frequenta moderadamente, não sendo raro vê-lo deixar o living de uma casa amiga para se dirigir aos fundos e ali estabelecer relações cordiais com o pessoal de serviço.
Dono de insaciável curiosidade intelectual, meu amigo é dos que pretendem aprender tudo e o mais depressa possível, resultando daí certa confusão encantadora entre os materiais do seu saber, a começar pelo veículo do pensamento, que engloba dois modos distintos de falar. Não se sabe onde acaba uma língua e começa outra. Há meses em que tem predominância um idioma, com sua estética e psicologia próprias; em outros períodos, as peculiaridades da segunda fala se destacam, quando não se mesclam às da primeira, de forma arbitrária, mas imperiosa; e nesse último caso, os lábios do meu amigo deixam escapar qualquer coisa como o sabir, o pidgin-English ou o broken English, uma dessas línguas mistas que, segundo Vendryes, resultam da fusão de dois ou mais idiomas, e que, desprovidas de morfologia característica, não podem ser reivindicadas por nenhum dos idiomas componentes — verdadeiro caso de hibridação linguística.
Nossa profunda e leal amizade não é isenta de corisco e chuva miúda, mas logo o tempo clareia, e reconhecemos a mútua boa-fé. Se uma vez, magoado pela injustiça, me anunciou seu intento de voar no mesmo dia para a outra cidade, e lá apanhar uma “escopeta” com que “mataria mi corazón”, a verdade é que, um instante depois, revelava que isso era “de broma”. E sou obrigado a confessar que frequentemente me acusa de falta de juízo, pelos riscos físicos a que o exponho oferecendo-lhe objetos de uso perigoso que, por incapacidade de escolher presentes adequados, me parecem os mais festivos e recomendáveis às pessoas de minha estima.
Não costuma contar-me sua vida, embora conte a minha a terceiros, e certa vez uma senhora abordou-me, sorrindo: “Já sei que esta manhã não ficou nada satisfeito, porque a crônica não saiu boa; o Carlos Manuel me contou”. Conspirasse eu contra o regime, e estaria bem arranjado, pois é comum o meu amigo chegar a uma assembleia e dizer: “Sabem quem foi ver ontem o cda? Chico Barbosa”. A feijoada, a vitrola que não funciona, um dinheiro que entrou a mais, uma calça que se rasgou, tudo são fatos que atravessam o sigilo familiar e se expõem ao olho público. E o que em outros seria indiscrição, nele é uma forma de gostar e louvar. Finalmente, o narrador se esquece do que contou. Ao mesmo tempo, conta-me histórias absurdas, que não aconteceram “no corpo”, mas que, ao serem contadas, acontecem. E não é mentiroso nem poeta, mas natural.
Sonha muito e dorme pouco. De sua luta com o sono falarei na próxima. Idade do meu amigo: quatro anos e três caramelos[1].
— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[1] - Carlos Manuel Graña Drummond, neto mais velho de Drummond.
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