© Alenka Sottler |
Nunca aceitou o leite que eu teimava em lhe dar. Desde o primeiro dia quis carne. Morta, mas às vezes pequenos animais que obtenho com repugnância e jogo no quarto procurando seus olhos que não me entregam a avidez.
Depois, eu sei, atrás da porta fechada ela caça.
Assim é a minha raposa, nunca minha. Pequena, arisca mostrou-me logo os dentes num rosno assoprado, som de desafio que mal passava pela garganta fechada. Gostei da raiva, da selvageria que arqueava o dorso de magras costelas. Pensei que seria bom domesticá-la, fazê-la servil, cão à meus pés, amiga. E a trouxe no colo, feliz por vencer com a força sua resistência.
O leite na tigela. Intato na manhã seguinte, véu sujo salpicado de insetos mortos, cheirando a azedo. Vinco do leite na tigela debaixo da torneira, limpeza, leite fresco, minha insistência prolongando-se na chantagem da fome. E novamente o leite intocado, a sua constância de carnívoro. Até o dia da carne, que não comeu na minha frente, mas da qual não deixou restos.
Fiz tudo para conquistá-la. Só eu lhe dou comida. Só eu entro no quarto onde me recebe esquivando-se a um canto, o dorso tenso, os dentes à mostra. Há anos mantenho a voz igual em chamado monótono que se faça amigo. Há anos me esforço para que me queira.
E um dia aconteceu o bicho vivo. Não sei como me ocorreu, mas depois pareceu-me impossível não ter percebido antes que a caça era a sua necessidade primeira. E resolvi satisfazer o desejo nunca manifesto. Comprei o coelho na loja de animais, escolhido ao acaso na gaiola entre outros que teriam melhor sorte. A culpa pela decisão de um destino misturava-se uma ansiedade nova pelo prazer que lhe daria, pela cumplicidade no sangue do ser vivo, uma ansiedade carnívora.
Fingiu não ver, toda ela presa ao ponto branco refugiado a um canto. E, porque eu me interpunha entre ela e seu momento de instinto, rosnou em ódio.
Fechada a porta atrás de mim, a violência da caçada que intuía me impôs a obtenção de novos animais.
Sei que não dorme à noite. Anda. De uma parede a outra as patas marcam seu tempo, brilham os olhos no escuro que não ouso interromper. E quando pára é sempre debaixo da janela.
Vidros abertos, venezianas fechadas, encontro às vezes o vinco de suas unhas na madeira dura, o sinal dos dentes. É por ali que conta fugir.
O quarto nunca varrido acumula seu cheiro. Os pêlos mortos suavizam os cantos. Os panos que lhe dou e que estraçalha nos dentes logo se confundem com a palha. Nas paredes, a marca das patas denuncia o esforço de evasão.
À noite, no sono da casa, ela marcha seu cativeiro entre as quatro muralhas. A intervalos ergue-se nas patas traseiras, diante da janela, testa a resistência, fareja o ar que vem de fora. O trinco é forte. Mas sua vontade é maior que a minha e um dia a veneziana cederá sob seu peso ou eu mesma a esquecerei aberta. Imóvel no jardim por um instante juntará então suas lembranças à procura do rumo, sem saber que a cidade cresceu ao redor e que ela nunca mais achará o caminho da floresta.
— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999.
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