A menina de futuro torcido - Mia Couto

© Andrey Aranyshev
A menina de futuro torcido

Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a solução da sua vida. Viajante que passava, carro que parava, ele aproximava e capturava as conversas. Foi assim que chegou de ouvir um destino para sua filha mais velha, Filomeninha. Durante toda uma semana, chegavam da cidade notícias de um jovem que fazia sucesso virando e revirando o corpo, igual uma cobra. O rapaz tinha sido contratado por um empresário para exibir suas habilidades, confundir o trás para a frente. Percorria as terras e o povo corria para lhe ver. Assim, o jovem ganhou dinheiro até encher caixas, malas e panelas. Só devido das dobragens e enrolamentos da espinha e seus anexos. O contorcionista era citado e recitado pelos camionistas e cada um aumentava uma volta nas vantagens elásticas do rapaz. Chegaram mesmo a dizer que, numa exibição, ele se amarrou no próprio corpo como se fosse um cinto. Foi preciso o empresário ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda hoje o rapaz estaria cintado.
Joseldo pensou na sua vida, seus doze filhos. Onde encontraria futuro para lhes distribuir? Doze futuros, onde? E assim tomou a decisão: Filomeninha havia de ser contorcionista, apresentada e noticiada pelas estradas de muito longe. Ordenou filha:
— A partir desse momento, vais treinar curvar-te, tevar a cabeça até no chão e vice-versa.
A pequena iniciou as ginásticas. Evoluía lentamente para o gosto do pai. Para acelerar os preparos, Joseldo Bastante trouxe da oficina um daqueles enormes bidões de gasolina. A noite amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da curva do recipiente. De manhã, regava-a com água quente quando ela ainda estava a despertar:
— Essa água é para os seus ossos ficarem moles, daptáveis.
Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o sangue articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de tonturas.
— Você não pode querer a riqueza sem os sacrifícios — respondia o pai.
Filomeninha amarrotava a olhos vistos. Parecia um gancho já sem uso, um trapo deixado.
— Pai, estou a sentir muitas dores cá dentro. Deixa-me dormir na esteira.
— Nada, filhinha. Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos vamos deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da tarde, depois dos morcegos despegarem.
Os tempos passaram, Joseldo sempre esperando que o empresário pas-sasse pela vila. Na garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do contratador. Nos jornais os olhos farejavam pistas do seu salvador. Em vão. O empresário recolhia riquezas em lugar desconhecido.
Enquanto isso, Filomena piorava. Quase não andava. Começou a sofrer de vómitos. Parecia que queria deitar o corpo pela boca. O pai avisou-lhe que deixasse essas fraquezas:
— Se o empresário chegar não pode-lhe encontrar da maneira como assim. Você deve ser contorcionista e não vomitista.
Decorreram as semanas, destiladas na angústia de Joseldo Bastante. Numa terra tão pequena só se passa o que passa. O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora, sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se. Vai-se embora tao depressa que nem deixa cinza para os habitantes reacen-derem aquele fogo, se gostarem. O mundo tem sítios onde pra e descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares.
O tempo foi-se enchendo de nadas até que, uma tarde, Joseldo escutou de um camionista a chegada do destino: o empresário estava na cidade preparando um espectáculo.
O mecânico abandonou o serviço e rapidou para sua casa. Disse à mulher:
— Veste Filomeninha com seu vestido novo!
A mulher estranhou:
— Mas essa menina não tem vestido novo.
— Estou a falar o seu próprio vestido. O seu, mulher.
Puseram a menina de pé e meteram-lhe o vestido da mãe. Largo e comprido, via-se que as medidas não condiziam.
— Tira o leno. Artistas não usam panos na cabeça. Mulher: trança lá o cabelo dela, enquanto vou arranjar dinheiro da passagem do comboio.
— Vai onde arranjar o tal dinheiro?
— Não é seu assunto.
— Joseldo?
— Não me chateia mulher.
Horas depois partiam para a cidade. No comboio, o mecânico satisfez-se de pensamentos: um fruto não se colhe só pressas. Leva seu tempo, de verde-amargo até maduro-doce. Se tivesse procurado a solução, como outros queriam, teria perdido esta saída. Orgulhoso, respondia aos apressados: esperar não é a mesma coisa que ficar à espera.
No embalo dos carris seguia Joseldo Bastante a entregar sua pequena filha à sorte das estrelas, à fortuna dos imortais. Olhou a menina e viu que ela estremecia. Perguntou-lhe. Filomeninha queixou-se do frio.
— Qual frio? Com todo esse calor, onde está o frio?
E procurou o frio como se a temperatura tivesse corpo e lhe tocasse num arrepio dos olhos.
— Deixa, filhinha. Quando começar entrar fumo, isto já vai aquecer.
Mas as tremuras da menina aumentavam sempre até serem mais que o balanço do comboio. Nem o vestido largo escondia os estremeções. O pai tirou o casaco e colocou-o sobre os ombros de Filomena.
— Agora veja se pára de tremer que ainda me descose o casaco todo.
Chegaram à cidade e começaram a procurar o escritório do empresário. Seguiram por ruas sem fim.
— Charra, filha, tantas esquinas! E todas são iguais.
O mecânico arrastava a filha, tropeçando nela.
— Filomena, fica direita. Hão-de dizer que lhe levo até no hospital.
Por fim, deram com a casa. Entraram e foram mandados esperar numa pequena sala. Filomeninha adormeceu-se na cadeira, enquanto o pai se entretinha com sonhos de riqueza.
O empresário recebeu-os só no fim do dia. Respondeu sem muitos quês.
— Não me interessa.
— Mas, senhor empresário...
— Não vale a pena perder tempo. Não quero. O contorcionismo já está visto, não provoca sensação.
— Não provoca? Veja lá a minha filha que chega com a cabeça...
— Já disse, não quero. Essa menina está doente.
— Essa menina? Essa menina tem saúde do ferro, aliás de borracha. Só está cansada da viagem, só mais nada.
— A única coisa que me interessa agora são esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e mastigar pregos.
O Joseldo sorriu, envergonhado, e desculpou-se de não poder servir:
— Sou mecânico, mais nada. Parafusos mexo com a mão, não com os dentes.
Despediram-se. O empresário ficou sentado na grande cadeira achando graça quela menina tão magra dentro de vestido alheio.
No regresso Joseldo ralhava com o destino. Dentes, agora são dentes! A seu lado, Filomena arrastava-se, trocando os passos. Entraram no comboio e espe-raram a arrancada
do regresso. O pai foi acalmando. Parecia olhar o movimento da estação mas os seus olhos não passavam além do vidro fosco da janela. De súbito, um brilho acendeu-lhe o rosto. Segurando a mão da filha, perguntou, sem a olhar:
— É verdade, Filomena: você tem dentes fortes! Não é isso que diz a sua mãe?
E como não tivesse resposta, abanou o braço da criança. Foi então que o corpo de Filomeninha tombou, torcido e sem peso, no colo de seu pai.

— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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