© Roger de la Fresnaye (detalhe) |
— Alô, Mestre! Não repare se entrei sem me anunciar. Vi a porta aberta, e, como sabe, a juventude tem pressa.
— Está-se vendo. Posso saber por que motivo o encontro a esta hora da manhã em minha cozinha?
— Mas está na cara: o rosto da mocidade é um espelho de seus desejos. Em segundo lugar, o apartamento do Mestre só tem quarto e kitchenette, e o senhor estava nesta última.
— É, mas, de qualquer modo, a etiqueta…
— Não vamos perder tempo com esses resíduos do século xix. O senhor já foi moço, talvez…
— Mancebo, sua insolência é igual à de Alfred de Vigny ao visitar Royer-Collard, quando este não queria recebê-lo. E, ao que parece, você não é um segundo Vigny.
— Mas o senhor talvez seja o próprio Royer-Collard, de quem aliás nunca ouvi falar nem bem nem mal. Posso contar com o seu voto?
— Que voto? Não me meto em política.
— Mestre, não pense que tem à sua frente um candidato a vereador pelo Distrito. Minha ambição é mais pura. Sonho com a Academia, ou melhor, a Academia me faz cócega em sonhos.
— Continue sonhando.
— Não posso. Meu sonho é da espécie explosiva, e exige confirmação imediata na realidade. O Mestre será meu padrinho.
— Que idade você tem, meu filho?
— Vinte e dois.
— E quando chegou do Pará?
— Há duas semanas. Como vê, já perdi um tempo precioso. Duas semanas na vida de um homem, na era atômica…
— Mas não há vaga, menino.
— Como não? Há a do Filogônio e a do Mamede.
— O Filogônio baixou num terreiro e legou a vaga a um afilhado. Foi uma doação solene, e temos que respeitar a vontade dos mortos, já que ninguém respeita a dos vivos. Quanto ao Mamede, há uma combinação de escrutínios que dará a vitória, na quinta rodada, a um desembargador do Guaporé, candidato desde 1908. É justo.
— Quer dizer que não posso aspirar nem a uma vitória moral?
— São as mais difíceis, rapaz. Você está exigindo muito.
— Por isso é que o Brasil não vai adiante. Os novos são governados pelos velhos, e os velhos pelos mortos. E eu que tinha grandes planos para a Academia.
— Pode-se saber quais eram?
— Primeiro, substituir o chá com sequilhos por uísque e salgadinhos. É uma vergonha para as letras esse regime de donas de casa reunidas em confeitaria.
— Insensato, quando chegamos à Academia já renunciamos ao fígado.
— Levaríamos a literatura ao povo, através de comícios, atos públicos, manifestos contra o artipurismo, a invasão da Guatemala e os vícios da burguesia.
— Espero estar morto antes de chegar esse dia. Ofereço-lhe a minha vaga.
— Tomo nota do oferecimento, mas vai ver que o Mestre não fala isso de coração. Já a prometeu a outros.
— Cet âge est sans pitié! Vocês são capazes de matar um cristão para fazer-lhe o elogio.
— Não exagere, Mestre, o elogio não é o nosso fraco. Posso lhe garantir que nos detestamos cordialmente uns aos outros. Mas voltando à vaca-fria: nenhuma esperança para as próximas vagas?
— Insofrido, seu jeito franco merece retribuição. Saiba que as próximas vagas, a julgar pelos eletrocardiogramas e pelas informações das empregadas, serão abertas pelo Fredolindo, pelo Sesóstris, pelo Janduí e pelo Cabeção. Estão prometidas a quinhentos escritores e jornalistas, mas aposto no Fioravanti, no Pituquinha, no general Porfírio e na Violeta.
— Mas a Violeta não pode eleger-se. É mulher, e vive na Europa!
— Ser mulher não é defeito insanável. O estatuto não permite, mas dá-se um jeito. Houve um papa chamado Joana. Ela vive na Europa, mas alguns colegas nossos também vivem. Vamos fazer uma experiência com a Violeta, e se ela promete não escrever nada, outras escritoras terão sua vez. Sou contra escrever.
— Protesto! A geração de 1954, que eu represento, e que é uma geração sacrificada, lutará nas praias, nas ruas e nas casas pela democratização da Academia! Vocês, velhotes…
— Rua
— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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