© Almeida Júnior |
Quando eu morrer, que me
enterrem na beira do
chapadão
— contente com minha terra,
cansado de tanta guerra,
crescido de coração.
Tôo.
Barra da Vaca
Sucedeu então vir o grande sujeito entrando no lugar, capiau de muito longínquo: tirado à arreata o cavalo raposo, que mancara, apontava de noroeste, pisando o arenoso. Seus bigodes ou a rustiquez — roupa parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba — causavam riso e susto. Tomou fôlego, feito burro entesa orelhas, no avistar um fiapo de povo mas a rua, imponente invenção humana. Tinha vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de alentar internas desordens no espírito.
Sem jeito para acabar de chegar, se escorou a uma porta, desusado forasteiro. Requeria, pagados, comida e pouso, com frases pálidas, se discerniu por nome Jeremoavo. Mesmo lá era a Domenha, da pensão, o velho deu à aldrava. Desalongou-se, porém, e — de tal sorte que dos lados dobrava em losango as côxas e pernas de gafanhoto — se amoleceu, sem serenar os olhos.
Lhe acudiram, que alquebreirado tonteava, decerto pela cólica dos viajantes. Isso lhes dava longa matéria. Senoitava. Era ali ribanceiro arraial de nem quinhentas almas, suas pequenas casas com os quintais de fundo e onde o rio é incontestável: um porto de canoas, Barra da Vaca, sobre o Urucúia.
Jeremoavo, pois quem. Em aflito caminho para nenhuma parte, aquele logradouro dregava-se-lhe mal e tarde, as pernas lhe doendo nervosas, a cabeça em vendaval, as ideias sacudindo-o como vômitos. Ia fazer ali pouca parada.
Largara para sempre os dele, parentes, traiçoeira família, em sua fazenda, a Dã, na Chapada de Trás, com fel e veemências. Mulher e filhos, tal ditos, contra ele achados em birba de malícias, e querendo-o morto, que o odiavam. Sumiu-se de lá, então, em fúria, pensado. Deixara-lhes tudo, a desdém, aos da medonha ingratidão. Só pegara o que vale, saco e dobros do diário, as armas. Saía ao desafio com o mundo, carecia mais do afeto de ninguém. Invés. Preferia ser o desconhecido somenos. Quanta tristeza, quanta velhacaria...
Ah, prestes vozes. — “O Sr. se agrada?” — era a Domenha, dando-lhe num caneco tisanas de chá, ele estirado em catre. Também o lugar podia ser o para a cama, mesa e cova — repouso — doce como o apodrecer da madeira. Doeu e dormiu.
Doente e por seguintes dias, rogava pragas das brenhas, numa candura de delírio de com ele apiedarem-se, seria febre malignada. Tratavam-no, e por caridade pura, a que satisfaz e ocupa. Não que desvalido: com rolo de dinheiro e o revólver de cano de palmo. Representado homem de bem e posses, quando por mais não fora, e a ele razão era devida. Se’o Vanvães disse, determinou. Visitavam-no.
Melhorou, perguntando pelo cavalo. Se perturbava, pelo já ou pelo depois, nos mal-ficares. Suspirava, por forma breve. Domenha segurava a lamparina — para ver-lhe os olhos raiados de vermelho — a cara na dele quase encostada.
O tempo era todo igual, como a carne do boi que a gente come. Sem donde se saber, teve-se aí sobre ele a notícia. Era brabo jagunço! um famoso, perigoso. Alguém disse.
Se estarreceu a Barra da Vaca, fria, ficada sem conselho. Somente alto e forte, seria um Jerê, par de Antônio Dó, homem de peleja. Encolhido modorroso, agora, mas desfadigado podendo se desmarcar, em qualquer repelo, tufava. Se’o Vanvães disse a Seo Astórgio, que a Seô Abril, que a Siô Cordeiro, que a Seu Cipuca: — “Que fazer?!” — nessas novas ocasiões. Se assentou que, por ora, mais o honrassem.
Jeremoavo sarara, fraco, pesava os pecados males, restado o ganho de nada querer, um viver fora de engano. Não podia abreviar com a saída, tinha de ir ficando naquele lugar, até às segundas ou terceiras nuvens. Domenha olhando-o: — “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido...” — disse, o trestanto.
Se’o Vanvães, dada a mão, levou-o a conhecer a Barra da Vaca — o rio era largo, defronte — povoação desguardada, no desbravio. Seo Astórgio convidava-o. Estimou a boa respondência, por agrado e por respeito. Estava ali em mansão, não desfaçado ou rebaixado. Seus filhos e a mulher, sim, isso haviam de saber, se viessem renegri-lo.
Reportou-lhe mais a gente velha da terra, seus bons diabos, vendo como as coisas se davam. Era o danado jagunço: por sua fortíssima opinião e recatado rancor, ensimesmudo, sobrolhoso, sozinho sem horas a remedir o arraial, caminhando com grandes passos. Não aluía dali, porque patrulho espião, que esperava bando de outros, para estrepolirem. Parecia até às vezes homem bom, sério por simpatia com integridades. Mas de não se fiar. Em-adido que no repente podia correr às armas, doidarro.
Jeremoavo em fato rondava o povoado, por esse enquanto. Adiante ou para trás — o rio lá faz muitos luares — sentia o bafo da solidão. Não se animava a traçar do bordão e a reto ir embora, mas esbarrava, como se para melhorar fortuna ou querer os achegos do mundo, e quebrava a ordem das desordens. Ora se descarnava, se afrontava disso, por decisão de homem, resolvido às redobradas. Vir a vez, ia, seguiço; não se deve parar em meio de tristeza. Na família não pensava, nem para condená-los de mal. — “Aqui é quase alegre...” — no portal Domenha dizia.
Torceu mais o espírito. Viu. Ali era o tempo, em trechos, entre a cruz e a cantação, e contemplar vivas águas, vagaroso o rio corre com gosto de terra. Não o podia atravessar? — no amarasmeio, encabruado, fazendo o já feito.
Permanecia e ameaçava. Mais o obsequiavam, os do lugar, o tom geral, em sua espaçada precisão. Se admiravam: eles e ele — na calada da consciência. Sendo que já para uns era por igual o velho da galhofa. Andava pé diante de pé, como as antas andam. Os meninos tinham medo e vontade de bulir com ele.
E aquela aldeiazinha produziu uma ideia.
De pescaria, à rede, furupa, a festa, assaz cachaças, com honra o chamaram, enganaram-lhe o juízo. Jeremoavo, vai, foi. O rio era um sol de paraíso. Tão certo. Tão bêbado, depois, logo do outro lado o deixaram, debaixo de sombra. Tinham passado também, quietíssimo, o cavalo raposo.
Só de tardinha Jeremoavo espertou, com cansaços de espírito. Viu o animal, que arreado, amarrado, seus dele dobros e saco, até garrafa de cerveja. Entendeu, pelo que antes; palpou a barba, de incontido brio. Não podia torcer o passo. Topava com o vento, às urtigas aonde se mandava, cavaleiro distraído, sem noção de seu cavalo, em direitura. Desterrado, desfamilhado — só com a alta tristeza, nos confins da ideia — lenta como um fim de fogueira. Saudade maior eram: a Barra, o rio, o lugar, a gente.
Lá, os homens todos, até ao de dentro armados, três dias vigiaram, em cerca e trincheira. Voltasse, e não seria ele mais o confuso hóspede, mas um diabo esperado, o matavam. Veio não. Dispersou-se o povo, pacífico. Se riam, uns dos outros, do medo geral do graúdo estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da Domenha sincera caçoavam. Tinham graça e saudades dele.
Deu seca na minha vida
e os amores me deixaram
tão solto no cativeiro.
Das Cantigas de Serão de João Barandão.
— João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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