Palhaço da boca verde - João Guimarães Rosa


Palhaço com chapéu, de Damião Martins
Palhaço da boca verde

Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham; o amor e seu milhão de significados. Assim, quando primeiro do mesmo se tem direta notícia, viajava o protagonista, de trem, para Sete-Lagoas. Ele queria conversar com uma mulher.
Ano ou meses antes, lembre-se, desfizera-se na região, por óbito de T. N. Ruysconcellos, empresário e dono, o Circo Carré, absorvidos reportavelmente por outro, o Grande Circo Hânsio-Europeu, dos Mazzagrani, o material e mor parte dos artistas. X. Ruysconcellos, que naquele se afamara como o clown Ritripas ou “Dá-o-Galo”, parecia deixado então do mister circense. Distinguia-se ainda moço, tão bem vestido quanto comedido, nem alegre nem triste, apenas o oposto; bebia, devagar, sem se inebriar.
Vir a falar com aquela mulher oferecia-se seu problema; viver sem precisar de milagres seria lúgubre maldição. Ela na ocasião sendo mulher pública aliás, mas singular do comum, mesmo no nome de guerra não usar, senão o próprio, civil, mais ou menos espanhol, de Mema Verguedo; e, talvez com receio ou por ira no peito, negava-se à conversação: a respeito de outra — Ona Pomona.
Ruysconcellos não ia durar. — Toda hora há moribundos nascendo... — quase se desculpava, inculcava-se firmeza. — Se bons e maus acabam do coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas... — e coçava-se a raiz do nariz, isto é, o hilo dos óculos. Mesmo nesses assuntos, pedia a máxima seriedade. Método, queria. Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos, mostrava indiferença ao escárnio, a dos condenados.
Mas buscava toda cópia de informação, sobre Ona Pomona, casada e remota no mundo, no México, na Itália. Mema apenas o inteiraria disso, de Ona Pomona tinha sido a amiga. Uma se fora com o Circo Europeu, a outra se refugiara em prostíbulo. Ele esperava, insistia, não podia sair da cidade.
Mema desatendia recados. — Tranquilo esteja! — re-vezes caminhava no quarto, rapariga alongada e mate, com artes elásticas, de contornos secos recortados. — Se quiser, venha — como os outros!... pelo passatempo, não para indagação em particular. — Se bem, bem, logo, logo... Estava ali com extraordinária certeza; dela de alguma maneira contudo se intimidavam os homens, era o seu o ar dos sombrios entre as dobras de uma rosa.
Mentido o modo, proferia: — Cuquito! — por carinho ou desdém. Nada os aproximara, aventura nem namoro. — Sei, nunca me viu... palhaços só notassem a multidão, não dividiam picadeiro, camarim, plateia. Sorria contrária — toda em ângulos a superfície do rosto — o nariz afirmativo, o queixo interrogador. O que não dizia era ter, escondida, a mala, que lhe não pertencia; e cujo conteúdo não descobrira a ninguém.
Entrado ao trem da paciência, Ruysconcellos lia, relia à-toa jornais, sem saltar palavra ou página. — Já vi um homem se afundar e desaparecer dentro de par de sapatos... — tirou os óculos e se acariciava os olhos com as pontas dos dedos. Tinha de Ona Pomona um retrato, queria entender o avesso do passado entre ambos, estudadamente, metia-se nessa música, imagem rendada; o que a música diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas. — Inútil... a lucidez — está-se sempre no caso da tartaruga e Aquiles.
Dobrou com distraído cuidado a foto — onde Mema via-se também — partiu-a, ainda mais minucioso, destruindo daí essa outra e errada metade. Maldade nele no momento acaso surgisse, em seu siso, uma ameaça a Mema. De vez em nada, tragava gole. Do alvaiadado Ritripas nem lhe restassem mínimos gestos.
Mema, a ela não deixava de voltar quem vez a pressentisse, como num caroço de pêssego há sobrados venenos, como a um vinagre perfumoso. — Ele nunca teve graça, o que divertia era seu excesso de lógica... — tossiu, por nojo. O que ele imaginava, de amor a Ona Pomona, seria no mero engano, influição, veneta. Sob outra forma: não amava. — Ele não quer ser ele mesmo... — Mema entredisse, em enfogo, frementes ventas — como se da vida alguma verdade só se pudesse apreender através de representada personagem.
Simples escorrida se estreitava no rosa-chá vestido, o amarelo é difícil e agudo. Sem vagar, fumava, devia de não comer e ter febre. Sua maior escuridão estava nas mãos. Abriu aquela mala — em que retinha o que de “Dá-o-Galo” do Circo Carré: narizes de papelão postiços ou reviradas pontas de cera, tintas para a cara, sapatanchas, careca-acrescente, amplas bufonas coloridas.
Vindo de São Paulo o secretário do Circo Américas, papéis na pasta, gravata borboleta, trazia a Ruysconcellos empenhada oferta, em vão. Soubesse de Ona Pomona similar à água e à seda? Do azul em que as coisas se perdem e perduram? Intercedendo, procurou então Mema, propôs também engajá-la, com o jeito de tísica. — Ele não vai! — ela tresconversou, em rebelia, quisesse com as levantadas mãos tapar quaisquer alheios olhos.
Ruysconcellos dissera somente a necessária recusa. — Cuspes de dromedário! — até nisso: praguejava com gentileza. Deu-lhe o pó de palidez, esverdeando-se por volta dos lábios.
— Vê? — o retrato, — a parte que guardara. Era o de Mema... E, então, fora o de Ona o rasgado, aconteceu’que, erro, como pudera?! Fez a careta involuntária: a mais densa blasfêmia. Estava sem óculos; não refabulava. Era o homem — o ser ridente e ridículo — sendo o absurdo o espelho em que a imagem da gente se destrói. Disse: — Só o moribundo é onipotente —; a disfarça. Xênio Ruysconcellos, o álcool não lhe tirava o senso de seriedade e urgência. De pé, implorava, falando em aparte.
Tartamudo: — ... nona... nopoma... nema... — e rir é sempre uma humildade. Mema desatinada escrevera-lhe, insultos. Em fúria, não ouviria ela seu primeiro rogo?
Mema mordida escutou o enviado apelo, apagada a acentuação do rosto. — Ele precisa de dinheiro, de ajuda?! — e seu pensamento virava e mexia, feito uma carne que se assa. — Que venha... — de repente chorou, fundo, como se feliz — ... para o que quiser. Ela estava ali com muita verdade, cheirava a naftalina ou alfazema. O vento acaba sempre depois de alguma coisa que não se sabe.
De dia, de fato, tiveram de romper a porta, havido alvoroço. Na cama jazendo imorais os corpos, os dois, à luz fechada naquele quarto. A morte é uma louca? — ou o fim de uma fórmula. Mas todos morrem audazmente — e é então que começa a não-história.
Falso e exagerado quase tudo o que a respeito se propalou; atesta-se porém que ele satisfeito sucumbiu, natural, de doença de Deus. Mema após, decerto, por própria vontade. Nem foi ele o encontrado em festa de vestes, melhor dizendo estivesse sem roupa qualquer; tãopouco travestida ou empoada Mema, à truã, pintada, ultrajada. Infundado, pois, que saídos de arena ou palco na morte se odiassem. Enfim, podiam, achavam, se abraçavam.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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