© Winslow Homer |
A invernada do sossego
Fazia dias que o Balão não aparecia na porteira do curral, e já estávamos ficando apreensivos, menos meu pai, que sempre tinha uma explicação otimista para tudo o que saía fora do costume. Quando eu quis dar uma batida nas vizinhanças para ver se encontrava o nosso cavalinho ele disse que não valia a pena, que o Balão certamente estava amadrinhado com a égua de Seu Boanerges, ou pastando na várzea do major Acácio, onde havia brotado capim novo depois das chuvas; quando sentisse fome de sal ou milho procuraria o caminho de casa. E acrescentou: — Pode ser também que ele esteja cansado de sela...
Isso tinha a intenção de uma branda censura a mim e a meu irmão Benício, que passávamos praticamente o dia inteiro em cima do Balão, às vezes até um na sela e o outro na garupa.
Meu pai falou tão confiante que resolvemos esquecer nossas preocupações. Também estávamos na quadra da moagem da mandioca, e passávamos o dia inteiro na casa da farinha, ajudando a tocar a roda, mergulhando as mãos até os cotovelos nas masseiras, ou apostando quem fazia beijus maiores. Depois do banho na bica do monjolo e do jantar na mesa grande da varanda, meu avô à cabeceira provando cada prato antes de passá-lo aos demais, é que chegava a hora de pensar no Balão; mas aí já estava entardecendo, em pouco tempo escurecia e não podíamos mais sair para procurá-lo.
Não posso dizer com certeza, mas acho que mamãe não estava aborrecida com a falta do Balão. Eu a ouvi dizendo à cozinheira que havia males que vinham para bem, e quando me viram disfarçaram, e desconfiei que falavam dele. Mamãe estava sempre com receio que acontecesse alguma coisa a mim ou Benício em nossos passeios no Balão, e um dia até quis proibir que o montássemos. Papai foi que interveio em nosso favor, disse que menino de fazenda não pode ser criado na barra da saia, e que o Balão era um cavalo manso até demais; quando crescêssemos mais ele ia pôr nós dois pra amansar burro brabo. Mamãe disse que se ele quisesse vê-la morrer do coração era fazer essa loucura; papai respondeu que se isso acontecesse ele não ia ficar viúvo por muito tempo, ela riu quando percebeu que ele estava brincando, e nós continuamos montando o Balão.
Assim eram as coisas lá em casa. Quando se tratava de fazer a nossa vontade papai sempre vencia; e quando se tratava de defender a falta de algum camarada papai resistia e ameaçava, mas quem acabava vencendo era mamãe. Papai dizia que se ela pensava que tocar uma fazenda era fazer caridade a todo mundo, era melhor nós irmos para a cidade dirigir o Asilo de São Vicente.
Quando a farinha já estava torrada e ensacada, e o Balão nada de aparecer, perguntei a papai se não seria bom mandar o Calisto dar uma olhada nas fazendas de perto, no Bate-Bate, na Samurum, no Vaivém, mas ele disse que precisava do Calisto para receber uma conta nos Alverga; para esse serviço não havia outro, e se demorasse Seu Rudino Alverga não seria mais encontrado, estava de saída para a ponta dos trilhos. Benício queria que saíssemos escondidos nós dois mesmos, mas isso eu não tinha coragem de fazer; cada vez que se assustava por nossa causa mamãe ia para a cama com palpitação, e a alegria que a gente podia ter com a brincadeira não pagava o remorso.
De manhã a primeira coisa que fazíamos era olhar se o Balão estava na porteira; e à noite acordávamos cismando ter ouvido o rincho dele, ou o galope dele no descampado. Não podendo verificar no escuro, ficávamos acordados até de manhã, contando as horas no relógio da varanda; mas era imaginação, ou desejo forte.
Jula, a cozinheira, disse que se fizéssemos promessa a São Nunguinho, se Balão estivesse vivo apareceria num triz; fizemos, e foi pior porque ele não apareceu e concluímos que então ele não estava vivo.
Não podíamos imaginar o Balão morto. Aquelas ancas roliças, próprias para a gente montar de garupa, aquela crina repartida no meio e caída para cada lado do pescoço, a estrela branca na testa, os olhos inocentes refletindo a gente quando a gente olhava de perto, como é que tudo isso podia cessar de existir, sumir para onde? Essas coisas aconteciam a outros cavalos, ao Balão não podia.
Mas nós estávamos crescendo, e era preciso aprender — foi isso o que meu pai disse quando o Abel chegou com a notícia. A água estava minguando na bica do quintal, e papai tinha mandado o Abel inspecionar o rego até o açude, podia ser um barranco caído, ou algum galho podre retendo a água. Nós estávamos ajudando bater feijão no terreiro quando Abel chegou com o enxadão no ombro e disse que havia encontrado o Balão. Largamos as varas e corremos para ele, queríamos saber por que não trouxe, se era longe ou perto; e quando ele disse que para trazer só se fosse arrastando, porque o cavalo estava morto, ficamos os dois abobalhados, sem saber se chorávamos ou se xingávamos Abel, julgando-o de algum modo culpado, não da morte do Balão, mas da maldade de encontrá-lo morto.
Só depois que vimos acreditamos. O Balão estava morto, morto para sempre. Tombado no açude, com o corpo dentro da água, o rabo boiando como ninho desmanchado, o pescoço entortado no barranco, decerto num último esforço para preservar a respiração, a barriga esticada como bolha que vai estourar, nem parecia o nosso cavalo. Olhei para Benício bem no momento em que ele também me olhava, e desconfiei que estávamos pensando a mesma coisa. Precisava a morte tê-lo mudado daquele jeito? Não podia ele ter morrido como era, bonito e limpo? Quando Abel chegou com outros homens, trazendo dois laços para arrastarem o cadáver, e um dos homens pisou com brutalidade na barriga do Balão, e uma gosma amarela esguichou da boca dele, nem eu nem Benício não quisemos olhar mais. Voltamos calados para casa, cada um pensando suas lembranças, com medo de dizê-las ao outro e ouvir alguma coisa que confirmasse a morte do Balão. Por isso gostei quando lá muito adiante Benício chutou uma lobeira podre, fazendo espirrar semente para todo lado, e perguntou se eu não achava que aquele cavalo que estava no açude podia não ser o Balão. Eu estava justamente pensando como seria bom que fosse outro, e que o nosso Balão estivesse andando por bem longe, trocando pernas em galopes arrojados pelos campos, como gostava de fazer quando sentia cheiro de chuva. Não fazia mal que não voltasse nunca mais; quando chegasse lá em casa um viajante de longe podia contar que tinha visto um brabeza castanho de estrela branca na testa galopando pelo cerrado; eu saberia que era o Balão mas não diria nada.
Não dissemos nada a nossos pais, porque há certas coisas que eles não devem saber, mas combinamos fazer tudo como se o Balão ainda estivesse vivo, até escondemos o cabresto dele no paiol de milho para não ser posto em nenhum outro animal.
Para nos consolar papai lembrou que ficássemos com o rosilho de vovô, disse que o vovô não ia montar mais por causa do reumatismo; não mostramos nenhum entusiasmo, papai compreendeu e não falou mais no assunto. Mamãe queria que fôssemos passar tempo na fazenda de tio Orêncio, a Farturosa, ele estava sempre convidando, mas pai disse que a ocasião não era boa, eles estavam de engenho aceso e era perigoso ter menino perto, principalmente meninos como eu e Benício. Eu não gostava da Farturosa, achava lá um lugar frio e tristonho. Todos os meninos de lá eram empalamados e meio boiotas, tinha um que passava horas escondido no oitão da casa roendo caco de telha, como se fosse coisa de comer, e outro chamado Bonsolhos, mastigava fumo e andava de facão na cintura, um porqueirinha menor do que eu.
Uma noite eu acordei cuidando ter ouvido o bater de cascos em galopes e fiquei de ouvidos atento. Devia ser muito tarde, não havia sinal de vida na casa, só o compasso do relógio na varanda, o tremido da bica despejando água no quintal, o estalar de um caibro no teto, ruídos que a calma da noite ampliava e tornava mais nítidos, como acontece quando a gente limpa o mato em volta de uma roseira e as flores que estavam lá estouram de repente como novas. Abri a janela devagarinho para não acordar mamãe no outro quarto — e não compreendi logo o que estava vendo. O luar clareava tudo com uma luz que deixava ver até a nervura das folhas dos arbustos distantes, os caminhozinhos subindo os morros, as fibras e os chanfros de machado nos barrotes do curral.
Benício passou de roupa nova e um cabresto na mão debaixo da janela e gritou para cima: — Anda moleza! Quer perder a cavalhada? De jeito nenhum eu queria perder a cavalhada, todo ano nós íamos, papai já tinha até comprado roupa nova e botinas para nós dois.
— Tem cavalo para nós? — perguntei.
— Nós vamos no Balão.
Eu ainda estava pensando como se o Balão ainda não tivesse voltado, mas isso era compreensível considerando o tempo que ele levou sumido.
Corri ao armário, enfiei a roupa às pressas, Benício era bem capaz de sair sem me esperar, xinguei a botina que não queria entrar, nem penteei o cabelo porque o tempo era pouco e eu ainda precisava tomar alguma coisa, não convinha sair em jejum, podia dar tonteira.
Na cozinha encontrei o fogo apagado e as panelas emborcadas no jirau, sinal de que a cozinheira já unha se ido. O jeito era tomar um gole de água quente do caldeirão que estava na pedra. Pensei que ia achar ruim, mas não, até gostei, e se Benício não estivesse esgoelando por mim eu teria bebido um coité cheio.
Como estava bom de sela o Balão, e como andava depressa! Mal passamos o arame na porteira e descemos a baixada do córrego, já íamos longe, em terras muito diferentes das nossas, uma várzea de buritis a perder de vista. De vez em quando o Balão entortava o pescoço para trás, acho que para verificar se estávamos contentes, depois resfolegava feliz, empinava a crina e seguia em passo ganjento. Que terras seriam aquelas? Era fora de dúvida que não podiam ser de nenhuma fazenda conhecida. Quem sabe se não estávamos perdidos, sem jeito nenhum de voltar? Veio-me à lembrança uma conversa com Abel, nós dois sentados na porteira do curral uma tarde. Eu só queria falar no Balão, mas Abel não parecia interessado. Quando senti uma coisa redonda na garganta e ele viu que era a vontade de chorar chegando, disse que eu não devia ficar triste por causa do Balão. Perguntei por que, ele disse que numa hora dessa o Balão devia estar muito feliz na Invernada do Sossego. Eu nunca tinha ouvido falar nessa invernada, pensei que fosse invenção. Ele garantiu que existia, era do outro lado do morro, aliás muito longe, todos os animais desaparecidos acabavam batendo lá. Era um lugar onde não havia cobra nem erva, nem mutuca, a vida deles era só pastar e comer quando tinham vontade, quando dava sono caíam e dormiam onde estivessem, nem a chuva os incomodava, se duvidar até nem chovia. Com o podia haver capim sempre verde sem chuva, ele não explicou nem me lembrei de perguntar.
Agora, vendo aqueles cavalinhos gordos e lustrosos lambendo-se uns aos outros, linchando à toa, perseguindo-se em volta das árvores, fazendo todo o barulho que queriam sem medo de serem espantados, compreendi que Abel não havia inventado nada, a Invernada do Sossego existia, qualquer pessoa podia ir lá se não ficasse aflito para chegar.
O Balão devia ter estado ali muito tempo porque fizera muitos amigos. De entoado éramos saudados pelo rincho alegre de algum cavalo que pastava à beira do caminho, outros deixavam suas brincadeiras e vinham correndo cheirar o Balão no focinho, até pessoas apareciam para alisá-lo no pescoço, e do jeito que faziam via-se que não era a primeira vez. Quando passamos na altura de um angico que ficava a certa distância da estrada alguém chamou Benício da porta de uma barraca. Benício explicou que devia ser o Zeno, menino de uns ciganos que haviam acampado debaixo da gameleira da fazenda, e que lhe dera uma tartaruguinha de presente.
Fizemos o sinal para Zeno e ele veio correndo ao nosso encontro, ainda guardando o canivete com que lavrava uma tala de madeira. Mas parece que ele não queria conversar com nenhum de nós, o que ele queria era brincar com o nosso cavalo, pois quando chegou perto pendurou-se no pescoço do Balão, que se divertia em levantá-lo e balançá-lo no ar, parece que já esquecido de mim e Benício. Cutuquei Benício e ele perguntou: — Você não tem cavalo não, Zeno? Zeno empurrou a cabeça do Balão para um lado e respondeu: — Não pense que eu estou querendo tomar o seu cavalo. Aqui é assim. Os cavalos daqui não têm dono porque são de todos.
— E não sai briga? — perguntei.
— Com gente daqui, não. Quem briga são os Capadócios, que aparecem de repente armados de garrucha e fazem um estrago medonho.
— Eles não gostam de cavalo? — perguntou Benício.
— Gostam muito, mas é pra matar.
— E vocês que vivem aqui, por que que deixam?
— Vontade de correr com eles não falta, mas ninguém aguenta. Não se pode nem chegar perto, fedem muito.
— Nem tapando o nariz?
— Que esperança!
— Então não se pode fazer nada?
— Nada. Só recolher as ossadinhas. O outro dia...
Zeno parou de falar e ficou farejando o ar com a cabeça levantada.
— Vocês não estão sentindo? — perguntou.
Eu e Benício farejamos também para ajudar, mas nada sentimos, não tínhamos prática. Mas o povo todo da invernada já havia sentido e corria em confusão, puxando cavalos, recolhendo-os para dentro das barracas, deitando-os à força no fundo de vaiados.
— São eles! — gritou Zeno. — Precisamos esconder o Balão.
Mas onde? A barraca era muito pequena, o angico era muito alto e difícil de subir.
— Vamos enterrá-lo! Me ajudem! — gritou Zeno, já de cócoras e furando a terra com as mãozinhas.
Ajoelhamos ao lado dele e começamos a furar também, mas o trabalho não rendia porque o Balão escolheu justamente aquele momento para brincar, dava cabeçadas e nos derrubava, às vezes de lado, às vezes de costas, até dava raiva.
Balas zuinchavam perto de nós, cavalos passavam desembestados, rinchando, coiceando e caindo, e sempre aquela catinga de tontear, a gente não sabia se cavava ou se tapava o nariz. Quando afinal conseguimos abrir um buraco de bom tamanho, já não encontramos o Balão ao nosso lado. Zeno culpou Benício, Benício caiu no choro, eu tive raiva dos dois por armarem discussão naquela hora.
— Vamos campeá-lo antes que seja tarde, seus pamonhas! — gritei, puxando-os para fora do buraco.
Empurrei os dois cada um para um lado e corri pelo centro atrás de um bando de cavalos que passavam de rabo esticado, mas vi logo que era perder tempo, naquela confusão de tantas patas, crinas e ancas nunca que eu acharia o Balão. Corri muito, levei muitos tropeções e devo ter perdido a direção porque de repente me vi caído dentro do mesmo buraco que tínhamos acabado de cavar.
Meti a cabeça de fora para ver o que estava acontecendo, mas a fumaça era tanta que eu mal podia abrir os olhos. Eu tinha medo era que um dos Capadócios levasse um tiro e caísse em cima de mim, vi vários deles tombarem de seus cavalos e serem arrastados pelo campo, largando chumaços de cabelo no chão. Era preciso sair dali depressa, não importava o perigo das balas.
Fiz o Pelo-Sinal e armei o pulo para sair, mas quem diz que eu conseguia levantar o corpo? Um peso impossível segurava-me no fundo do buraco. Que poderia ser? Algum cavalo morto? Fechando os olhos para não ver, fui apalpando devagar aquele corpo quente que pesava em cima de mim e concluí que não podia ser cavalo. Cheirei a mão com medo — e compreendi. Os Capadócios pesam mais do que chumbo, era inútil tentar escapulir.
Com dificuldade afastei um braço que me cobria os olhos e fiquei olhando as nuvens passarem no céu alto, tão livres e tão remotas, os pássaros cumprindo o seu dever de voar, sem se importarem que no fundo de um buraco um menino morria de morte humilhante, morria como barata, esmagado como barata. O ar não alcançava mais o fundo do meu peito, meu olhos doíam para fora, os ouvidos chiavam, e ninguém perto para me dar a mão. Eu estava sozinho no escuro, sozinho, sozinho.
— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". [seleção de J. Aderaldo Castelo]. São Paulo: Global Editora, 2000.
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Biografia do autor veja aqui:
José J. Veiga - escritor goiano cosmopolita
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