A semana, 24 de junho de 1894 - Machado de Assis

24 de junho

São João Batista, de Paolo Veronese (c.1562)
Peguei na pena, e ia começar esta Semana, quando ouvi uma voz de espectro: “S. João! sortes de S. João!” A princípio cuidei que era alguma loteria nova, e molhei a pena para cumprir esta obrigação. Não tinha assunto, tantos eram eles; mas a boa regra, quando eles são muitos, é deixar ir os dedos pelo papel abaixo, como animais sem rédea nem chicote. Os dedos dão conta da mão, salvo o trocadilho.

Mal escrevera o título, ouvi outra vez bradar: “S. João! sortes de S. João!” Ergui-me como um só homem, desci à rua e fui direito ao espectro. O espectro levava meia dúzia de folhetinhos na mão; eram sortes, eram versos para a noite de S. João, que foi ontem. Arregalei os olhos, que é o primeiro gesto, quando se vê alguma coisa incrível; depois fechei-os para não ver o espectro, mas o espectro bradava-me aos ouvidos; tapei os ouvidos, ele fitava-me os velhos olhos cavados de alma do outro mundo. Vai, disse eu, o Senhor te dê a salvação. O vulto pegou em si e continuou a apregoar as sortes do santo, arrastando os pés e a voz, como se realmente fizesse penitência.

Tornei a casa, e, como nos mistérios espíritas, concentrei-me. A concentração levou-me a anos passados, se muitos ou poucos não sei, não os contei; era no tempo em que havia S. João e a sua noite. Gente moça em volta da mesa, um copo de marfim e dois ou três dados. Fora, ardiam as últimas achas da fogueira; tinham-se comido carás e batatas; ia-se agora à consulta do futuro. Um ledor abria o livro das sortes, e dizia o título do capítulo: “Se há de ser feliz com a pessoa a quem adora”.

Corriam os dados. O ledor buscava a quadrinha indicada pelo número, e sibilava:

Felicidades não busques,
Incauta...

Vós que nascestes depois da morte de S. João, e antes da Morte de D. João, não cuideis que invento. Não invento nada; era assim mesmo. Remontemos ao dia 24 de junho de 1841... Se pertenceis ao número dos meus inimigos, como Lulu Senior, repetireis a velha chalaça de que foi nesse ano que eu fiz a barba pela primeira vez. Eu me calo, Adalberto, ou não respondo, como dizia João Caetano em não sei que tragédia, contemporânea do santo do seu nome. Tudo morto, o santo, a tragédia, o autor, talvez o teatro, — o nacional, que o municipal aí vem.

Remontemos ao dito ano de 1841. Aqui está uma folha do dia 23 de junho. Como é que veio parar aqui à minha mesa? O vento dos tempos nem sempre é a brisa igual e mansa que tudo esfolha e dispersa devagar. Tem lufadas de tufão, que fazem ir parar longe as folhas secas ou somente murchas. Esta desfaz-se de velha; não tanto, porém, que se não leiam nela os anúncios de livros de sortes. É o Fado, que a casa Laemmert publicava, quando estava na rua da Quitanda, um livro repleto de promessas, que mostrava tudo o que se quisesse saber a respeito de riquezas, heranças, amizades, contendas, gostos. Aqui vem outro, o Novíssimo jogo de sortes, “por meio do qual as senhoras podem vir ao conhecimento do que mais lhes interessa saber, como seja o estado que terão na vida, se encontrarão um consorte que as estime e respeite, se terão abundância de bens de fortuna, se serão felizes com amores”. Cá está A mulher de Simplício, que dava uma edição extraordinária “com mais de mil sortes”. Eis agora o Oráculo das senhoras, conselheiro oculto, diz o subtítulo, e acrescenta: “respondendo de um modo infalível a todas as questões sobre as épocas e acontecimentos mais importantes da vida, confirmado pela opinião de filósofos e fisiologistas mais célebres, Descartes, Buffon, Lavater, Gall e Spurzheim”.

Quem não ia pela fé, ia pela ciência, e, à força do Batista ou de Descartes, agarravam-se pelas orelhas os segredos mais recônditos do futuro, para trazê-los ao clarão das velas, porque ainda não havia gás. Tudo por dez tostões, brochado; encadernado, dois mil réis. O mistério ao alcance de todas as bolsas era uma bela instituição doméstica. As cartomantes creio que levam dois ou cinco mil réis, segundo as posses do freguês; é mais caro. Quanto à Pítia, avó de todas elas, os presentes que iam ter ao templo de Delfos, eram custosos, ouro para cima. E nem sempre falava claro, que parece ter sido o defeito dos adivinhos antigos e de alguns profetas. Ao contrário, os nossos livros eram francos, diziam tudo, bem e com graça, uma vez que os buscassem unicamente em três dias do ano.

Agora já não há dias especiais para consultar a Fortuna. Os santos do céu rebelaram-se, deram com a oligarquia de junho abaixo e proclamaram a democracia de todos os meses. Não se limitaram a anunciar coisas futuras, disseram claramente que já as traziam nas algibeiras, e que era só pedi-las. A terra estremeceu de ansiedade. Todas as mãos estenderam-se para o céu. No atropelo era natural que nem todas apanhassem tudo. Não importa: continuaram estendidas, esperando que lhes caísse alguma coisa.

Entretanto, a fartura precisa de limite, e onde entra excesso, pode muito bem entrar aflição. Os oráculos vieram cá abaixo disputar a veracidade dos seus dizeres, e cada um pede para os outros o rigor da autoridade. A opinião de uns é que os outros corrompem os corações imberbes ou barbados, que têm a fé pura e o sangue generoso. Tal é a luta que aí vemos, em artigos impressos, entre Santa Loteria, S. Book-Maker, S. Frontão, e não sei se também S. Prado, dizendo uns aos outros palavras duras e agrestes. Parece que a liberdade da adivinhação, proclamada contra a oligarquia de junho, não está provando bem, e que o meio de todos comerem, é não comerem todos. Esta descoberta, a falar verdade, é antiga, é o fundamento da esmola; mas nenhum dos contendores quer receber esmola, todos querem dá-la, e daí o conflito.

Que sairá deste? Não creio na exterminação de ninguém; pode haver algum acordo que permita a todos irem comendo, ainda que moderadamente. Uma religião não se destrói por excesso de religionários. O pão místico há de chegar a todos, e basta que um par de queixos mastigue de verdade, para fazer remoer todos os queixos vazios. O que eu quisera, é que, no meio da consulta universal, S. João continuasse o seu pequeno e ingênuo negócio, congregando a gente moça, como em 1841, para lhes dizer pela boca do Fado ou do Oráculo das senhoras:

Felicidade não busques,
Incauta...

Poetas, completai a estrofe. Cabe à poesia eternizar a mocidade, e este Batista, que nos pintam com o seu carneirinho branco, é patrão natural dos moços — e das moças também. Digo-vos isto no próprio estilo adocicado daquele tempo.

- Machado de Assis, "A semana". publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24.6.1894|Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.
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