© Jacek Yerka - Ammonite of Library, 2015 |
Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o Holocausto, a d. Carmen de B. Lopes, a Vida do Mercador e de Antônio de Pádua, o Evangelho de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas entortadas pelo sol.
— Vende-se tudo isso?
— Oh! não. Há quase um ano que os tenho. Os outros sim — modinhas, orações, livros de sonhos, a História da Princesa Magalona, o Carlos Magno, os testamentos dos bichos.
Levantei as mãos para o céu como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo dos meados do século passado!
— Mas não é possível...
— Pode perguntar aos outros vendedores.
Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os vendedores de livros são uma chusma incontável que todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe aos morros, percorre os subúrbios, estaciona nos lugares de movimento. Há alguns anos, esses vendedores não passavam de meia dúzia de africanos, espapaçados preguiçosamente como o João Brandão na Praça do Mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maníacos aos rapazolas indolentes e aos propagandistas da fé. A venda não é franca senão em alguns pontos onde se exibem os tabuleiros com as edições falsificadas do Melro de Junqueiro e da Noite na Taverna. Os outros batem a cidade, oferecendo as obras. E há então toda uma gama de maneiras para passar a fazenda. Os mais atilados, os mais argutos, os mais incansáveis são os vendedores de Bíblias protestantes, com os bolsos das velhas sobrecasacas ajoujados de brochuras edificantes.
— Ó rapaz, por que não fica com esta Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus, onde estão as eternas verdades. E se ficar com ela, vai mais este volume de quebra sobre as feras que devoram o homem, as feras morais...
Os outros não pairam em regiões tão espirituais. Há os solenes — o velho Maia, que aprecia as encadernações vermelhas; foi guarda-livros e virou para a infelicidade quando, um dia, se lembrou de decorar todo o dicionário latino de Saraiva. Há os que têm apelido — Espelho de Psyché, pobre homem, negociante, que a má sorte faz andar agora de cesta ao braço, com uma fita verde no chapelinho. Há os escandalosos relapsos — o Conegundes, negralhão de cavanhaque, gritador. Há os que durante o trabalho percorrem as tabernas, e para impingir aos caixeiros um dos volumes ingerem em cada uma dois da branca — o Artur. Há os que têm admirações literárias — o Camões, zanaga, que vos recita o I Canto dos Lusíadas de cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que apregoam dois dias na semana para descansar os outros cinco.
Há os que têm a arte do pregão e, longe de ir com um embrulhinho perguntar à casa do comprador se quer ficar com a História de Carlos Magno, soltam a voz em gorjeios estentóricos, como o Noite Sonorosa: Meu Deus, que noite sonorosa!
O céu está todo estrelado.
Eu com o cavaquinho na mão E a morena ao lado.
Isto em pleno dia.
Cada sujeito desses pode passar a vida bem. As livrarias vendem baratíssimo os livrecos procurados. Em cada um, os vendedores ganham, no mínimo, seiscentos por cento. Há alguns que, trabalhando com vontade e sabendo lançar — as orações, as modinhas ou a inefável História da Donzela Teodora, arranjam uma diária de dez mil réis, sem grande esforço. Daí, todo dia aumentar o número de camelôs de livros, vir começando a formar-se essa próspera profissão da miséria que todas as cidades têm, ávida e lamentável, num arregimentar de pobres propagandistas do Evangelho e do Espiritismo, de homens que a sorte deixou de proteger, de malandros cínicos, de rapazes vadios.
Os livros, porém, de grande venda ficam sempre os mesmos.
Nós não gostamos de mudar em coisa nenhuma, nem no teatro, nem na paisagem, nem na literatura. É provável que o divórcio tenha caído por esse inveterado e extraordinário amor de não mudar, que nos obceca. Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda dos camelôs têm sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno, a Despedida de João Brandão e a Conversação do Pai Manuel com o Pai José — ao todo uns vinte folhetos sarrabulhentos de crimes e de sandices. Como esforço de invenção e permanente êxito, apareceram, exportados de Portugal, os testamentos dos bichos, o Conselheiro dos Amantes e uma sonolenta Disputa divertida das grandes bulhas que teve um homem com sua mulher por não lhe querer deitar uns fundilhos nos calções velhos.
Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. Contam na Penitenciária que o Carlito da Saúde, preso a primeira vez por desordens, ao chegar ao cubículo, mergulhou na leitura do Carlos Magno. Sobreveio-lhe uma agitação violenta. Ao terminar a leitura anunciou que mataria um homem ao deixar a detenção. E no dia da saída, alguns passos adiante, esfaqueou um tipo inteiramente desconhecido. Só esse Carlos Magno tem causado mais mortes que um batalhão em guerra. A leitura de todos os folhetos deixa, entretanto, a mesma impressão de sangue, de crime, de julgamento, de tribunal. Há, por exemplo, uma obra cuja tiragem deixa numa retaguarda lamentável as consecutivas edições do Cyrano de Bergerac. Intitula-se Maria José, ou a filha que assassinou, degolou e esquartejou sua própria mãe, Matilde do Rosário da Luz, e começa como nas feiras: — "Atendei, e vereis um crime espantoso, um crime novo, o maior de todos os crimes!" Essa Maria ainda era só a matar uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Reinaldos, ensanduichado em frases de louvor a Nosso Senhor, mete-se num rolo doido com os turcos, e o livro louva-o por ir degolando a cada passo um homem.
Tudo quanto é inferior — a calúnia, o falso testemunho, o ódio — serve de entrecho a esses romances mal escritos. Quando a coisa é em verso, toma proporções de puff carnavalesco. A Despedida do João Brandão à sua mulher, filhos e colegas, com um apêndice em que se convence o leitor de que João podia ser um herói cristão, é lida nos cortiços com temor e pena.
A primeira quadra da despedida é assim:
Andando eu a passear,
Com amiga do coração.
Dois passos à retaguarda:
Estais preso, João Brandão.
Que se há de fazer diante destes quatro versos nefelibatas? A Despedida tem quarenta e nove quadras, fora a resposta da esposa. Uma mistura paranóica de remorso, de tolices de religião, saudade e covardia, faz destas quadras o supra-sumo da estética emotiva da turba — cujos sentimentos oscilam entre o temor e a ambição. João Brandão soluça:
Adeus, João Brandão,
Espelho de eu me vestir,
Tu mataste o menino
Que para ti se ficou a rir.
Agora vou degredado,
A paixão é que me mata;
Adeus, Carolina Augusta,
Já não vale a tua prata.
Para alegrar os leitores, esses criminosos anônimos cultivaram o testamento dos bichos. Já testamento é uma ideia inteiramente lúgubre. O testamento da pulga, do mosquito ou da saracura, não seria para fazer rebentar de riso os mortais, nem mesmo agora, neste mortal período de desinfecções e higiene à outrance. Mas que pensam os senhores dessas quadrinhas, das quais já se venderam mais de cem mil folhetos, das quais diariamente e perpetuamente se vendem mais volumes que da Canaã de Graça Aranha? Os testamentos são uma lamentável relação de legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso.
O galo leva quarenta quadras a deixar coisas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do papagaio há esta observação pessoal, sempre aplicável às câmaras:
Há no mundo papagaios
Que falam todos os dias
E nunca sofrem desmaios
Comendo grossas maquias.
Estes são de Pernambuco,
Falam muito, são mitrados;
Eu falei, mas fui maluco,
Logo paguei meus pecados.
E falam do veneno da literatura francesa, que perde o cérebro das meninas nervosas e aumenta o nosso crescido número de poetas! Que se dirá dessa literatura — pasto mental dos caixeiros de botequim, dos rapazes do povo, dos vadios, do grosso, enfim, da população? Que se dirá desses homens que vão inconscientemente ministrando em grandes doses aos cérebros dos simples a admiração pelo esfaqueamento e o respeito da tolice?
Como eu clamasse contra essa teimosa mania de não mudar as suas predileções, um dos vendedores ambulantes, o cantante Meu Deus que noite sonorosa, esticou a perna e disse-me: — Talvez fosse para pior.
Parei convencido, o curso das interrogações. Já outro filósofo seu rival, Montaigne, assegurava que mudar é quase sempre uma probabilidade para o pior. Os vendedores de testamentos passaram a vendê-los como palpites do jogo do bicho, transformando a saracura em avestruz e a mosca em borboleta. Os jogadores não lêem, mas arruínam as algibeiras. E de qualquer forma o mal continua a florescer neste baixo mundo, na literatura e fora dela, como o mais gostoso dos bens. Se nas obras populares aparecer alguma coisa de novo, com certeza teremos tolices maiores que as anteriores ...
— João do Rio, no livro "A alma encantadora das ruas". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012
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