© Sorin Dumitrescu Mihaesti |
Ó, professor, é o seguinte. Em todo o meu tempo de PM, que graças a Deus já tá quase acabando... Pois é, nos meus vinte e sete anos de Polícia Militar eu nunca dei entrevista pra ninguém. É verdade que eu tinha um acordo com um jornalista do Povo do Rio quando eu trabalhava no 9º e a chapa tava fervendo na minha área. Eu ligava no sapatinho e dava tempo dele chegar pra tirar foto dos presuntos ainda quentes. Claro que rolava um pixulé. Mas o que eu mais gostava era de ver a foto de vagabundo todo furado de bala e aquelas manchetes maneras do tipo "PM faz barba, cabelo e bigode no Jorge Turco" ou então "PM acabou com a brincadeira no Faz Quem Quer". O senhor não ouviu falar? São duas favelas perto da Favela de Acari, essa todo mundo conhece.
Bem, o senhor tá dizendo que não é entrevista, é depoimento, é isso? Porra, professor, aí piora mais ainda pro meu lado, porque pra mim depoimento é lance de Fórum, advogado, essas paradas. O senhor promete sigilo total? Tá certo, vou confiar porque meu sobrinho estuda com o senhor e disse que o senhor é um cara manero. Mas qualquer coisa, professor, com todo o respeito, já sei onde o senhor trabalha. Então vamos lá, vamos começar logo esse treco. Pode ligar o gravador.
Cardosão sou eu, cabo Cardoso pra quem não me conhece. 47 anos. Nascido e criado em Anchieta. Não gosto de dar confiança. Mais amor e menos confiança, dizia meu pai. Fazer o quê, se essa cambada de oficial frouxo que tem por aqui não honra a farda. Tem que saber se impor, se não, nego monta e aí não dá mais pra correr atrás do prejuízo. O senhor veja o uniforme, por exemplo. Tem um espelho grande pra caralho, fica bem na entrada, logo depois do Corpo da Guarda. Não dá pros filha da puta deixar de ver. Nem de ler:
“ESTE ESPELHO REFLETE VOCÊ E VOCÊ A PMERJ“.
Tá certo, certíssimo, mas tem muito militar lambão por aí. Vê só o Rubens: nem dá pra acreditar que é PM, o mug dele tá sempre mal passado, nem sabe engraxar o bute direito e o que é pior, vive a ostentar um medalhão de S.Jorge mal disfarçado por debaixo da farda, sem falar naquelas correntes de pulso, douradas, que quando balançam fazem mais barulho do que baiana de acarajé. Fica parecendo bandido. Porra, já disse pra ele um milhão de vezes, bandido é bandido e polícia é polícia. É feito óleo e água, não dá pra misturar.
Comigo não tem disso, que nem todo mundo fala, Cardosão reza por outra cartilha. Quem me ensinou foi o finado Sargento Bonfim, que Deus o tenha. Isso é que era Federal, não é que nem esses franguinhos que saem do CEFAP, botam um quepe na cabeça e uma arma na cintura e pensam que entendem do serviço. “Nem todo mundo dá pra essa coisa”, assim me disse o Bonfim no dia em que botei o pé no Trinta e Dois. Na época o bicho tava pegando, guerra no Morro da Gazua, uma das primeiras guerras do tráfico que saiu no jornal, aquela da menininha segurando um trabucão, Julinha o nome dela, os bacanas ficaram tudo assustado... deu até no Jornal Nacional. Assustado à toa: essas meninas de favela já tão tudo sendo enrabada com doze, treze, aos catorze já tão de barriga. Tinha uma num morro lá de Bangu que aos quinze já fora viúva três vezes, tudo de menino do tráfico. Os caras chamavam ela de xoxota assassina. Pior do que isso só as patricinhas que vem na fissura do pó e acabam na vala. Atrás do pó vieste e ao pó voltarás. O que ? Porra professor, tem menininha da Zona Sul, viciada, que chega na Boca disposta a qualquer coisa. Quando o dinheiro termina elas faz de tudo: paga boquete pros cara, topa ir com dois, três ao mesmo tempo. Me contaram uma, essa também já não posso garantir que é verdade, que certa vez um gerente levou a menina pro meio do baile e mandou ela cheirar a carreirinha em cima do pau dele. E a bichinha não se fez de rogada...
Mas eu ia dizendo... O Bonfim só falava te olhando bem firme no meio dos olhos, pra ver se tu tremia nas base. Depois que fiquei mais ou menos amigo dele – o Bonfim nunca abria totalmente a guarda –, fiquei sabendo que ele já ia te manjando na primeira conversa. A partir daí, teu destino tava traçado. Se o Bonfim se agradasse de tu, tu ia formar com ele na linha de frente, como ele chamava. Quando a PATAMO dele subia o morro, era aquele zunzum, os guris já trepavam por aquelas vielas feito cabras malucas, gritando: ‘chegou a Morte, chegou a Morte’. Em um minuto o Morro parecia uma cidade fantasma, igualzinho a filme americano. Daqueles em que o bandidão e sua quadrilha, vestidos de preto ainda por cima, entravam na cidade cavalgando e levantando uma poeira danada, e dava pra ouvir o barulho de uma mosquinha voando. Mas não lembro de ter visto mosca em filme americano que gringo não é otário.
Como eu falei, a favela esvaziava rapidinho, nego que devia e quem não devia também, porque ninguém queria ficar na pista quando o Bonfim pintava na área. Dava até gosto de ver. Não é que nem hoje. Por isso os vagabundo ficam cantando que até o Bope treme. Treme é o caralho, os homi de preto são foda. O problema é que nem todo mundo é caveira. Ali bandido sabe que não vai ter boa vida, o arrego é arriscado e peixe que cai na rede... é cordinha, facão e saco preto. Num tem escapatória, professor.
Mas na época do Bonfim, bastava os vigia bater o olho na placa com fim 66 da Patamo que todo mundo dava pinote. Bonfim impunha respeito. O homem tinha até marca registrada. Depois que mandava o mau elemento pra fazer companhia ao Capeta, mandava nós virar o sujeito de cu pra cima, cara enfiada na lama, dizia que não gostava de olhar pra safado. Pra arrematar, mandava o Fininho arrancar a orelha esquerda. Dizia que na vida, se escutavam dois tipos de conselho, os bons e os maus. Mas que o bandido só tinha orelha pra ouvir, pensar e planejar maldade, por isso mandava o Fininho arrancar o porto de entrada da perversidade – o Bonfim era até metido a poeta nessas horas. Mesmo que a gente não entendesse fazia de conta, ninguém ia se meter a besta.
Sujeito bom de faca, esse Fininho. Se o senhor olhasse pra ele, professor, não dava nada não, parecia um porteiro de prédio, franzino – daí o apelido, bigodinho ridículo e uma risadinha envergonhada e contida, feito hiena. Mas quando chegava a hora da onça beber água, era o braço direito do Bonfim. Era o próprio Bonfim que contava. Uma vez tava de cama e precisava acabar com a moral de uns bandidinhos que tavam desafiando ele. Mandou o Fininho no lugar. Pra que, professor, os homens crescem é no momento da responsabilidade – é isso que eu falo pra esses praça bundão que num sabe nem dar conta de um servicinho à toa, parece até que acreditam nos tais dos direitos humanos. E desde quando bandido é gente? Pois é, como que eu tava contando, o Fininho foi fazer o serviço e botou pra quebrar. Passou o cerol no bando todo, exceto um. Desse um ele arrancou todos os dedos, menos o polegar da mão direita. O Fininho dizia que era pra ele poder fazer sinal de tudo certo! Teve gente que riu. E ainda por cima mandou colocar um dos dedos no formol. Durante um mês, enquanto durou a operação café-da-manhã... Ah, tinha esse nome porque a gente começava na madruga, antes do sol nascer, os filha da puta já acordavam com a gente dando chute na porta e dizendo bom dia, o Bonfim dizia que soldado dele tinha que ser educado. Certo, o negócio do dedo. Botou o dedo do gerente – palavra muito metida a besta, o sr. não acha? – pegou aquele dedo e colocou num vidrinho, dizia que era o talismã dele... O senhor não acredita em mim ? Nem tudo tá nos livros, professor, nem tudo. De qualquer forma, quando o Bonfim voltou mandou ele jogar fora, falou que era de mau agouro. Acho também que ele não queria que o Fininho começasse a aparecer muito. Quem cria cobra...
Mas a história que eu tava querendo contar era outra. Uma vez teve uma velha que ficou parada no meio da rua, só vendo todo mundo batendo em retirada pro seu cafofo. A velha ficou ali, paradinha, olhando pro Bonfim descendo da Patamo, já engatilhado e pronto “pra trabalhar” como ele gostava de dizer. Pois é, o sr. sabe que a velha não arredou pé, nem mesmo quando o Bonfim e a turma dele – eu ainda não havia caído nas graças – correram na direção dela. “Por que tu não correu, velha fedorenta ?” E a velha ainda teve boca pra falar, professor, a coroa era danada. Sabe essas velhinhas que a gente vê na rua, todas encurvadas, tortinhas, andando de teimosia ? Pois essa era assim. Nem dente nem dentadura, só aquelas gengivas estragadas. O Bonfim pensou que ela fosse doida, mas a velha era corajosa. “O Sr. é bicho, por acaso, pra eu ter medo do Sr.?”. O efetivo da Patamo todo riu, não deu pra segurar. Mas o Bonfim não podia perder a moral. Ensopapou a velha, lascou-lhe um tapa: “Toma isso pra deixar de ser folgada”. Os soldado dele engoliu o riso na hora, endireitou o corpo e esbugalhou os olhos se preparando pra qualquer coisa, era mau negócio brincar com fogo. Acredite se quiser, não parou por aí. Aquela velhinha fracotinha da Silva ainda teve força pra botar o dedo na cara do Bonfim. Botou mesmo, olhou pra ele com aqueles olhinhos doídos e falou, com toda a calma: “o Sr. me bateu com essa mão, mas logo, logo, o Sr. não vai mais ter mão pra dar tapa em ninguém”. O Bonfim teve que disfarçar o espanto, disse que aquilo tava atrasando a operação e continuou a subir o morro. Sabe, lá no sul os polícia chama isso de “pedalar barraco”.
Conforme eu ia dizendo, tiro e queda, puta-que-pariu, será que a porra da velha era macumbeira ? O fato é que na semana seguinte o Bonfim caiu. Era uma operação tranquila, blitz de fim de semana pra arrumar um trocado. O Bonfim também era bom nisso. O que ele fazia era genial, nunca vi. Ao invés de ficar parando carrinho caído, esses fiat uno caindo aos pedaços, fusquinha e toda a qualidade de carro velho, o Bonfim fazia diferente. Mandava parar só carro de bacana. “Quer ver ?” dizia ele, “esses filhas da puta não pagam um imposto”. Não é que ele tava certo, professor ? Ficava besta de ver, cada carrão importado, desses que parecem um tanque quadradão, a madame descia e na hora da documentação, tava tudo em atraso. “E agora, o que eu faço ?” “Não se preocupe, madame, a gente para um táxi pra senhora”. O velho Bonfa ainda tirava onda de cavalheiro. O Federal arrepiava. Fazia o acerto e todo mundo comia uma graninha boa, mas de vez em quando ele cismava, dava uma raiva nele ver aqueles bacanas metidos a besta, olhando a gente do alto, como se polícia fosse sujo. Nem quando eles caíam do cavalo perdiam a pose. Tinha dia que o Bonfim mandava recolher ao depósito. O riquinho ali, feito babaca, sem acreditar que um PM tava fudendo ele, mandando rebocar o BMW. Claro que a gente gostava do dindin, mas a turma vibrava quando o Bonfim ferrava um doutorzinho de terno e gravata.
Às vezes dava merda, é claro. Como no dia em que ele autuou a filha de um juiz... Quase que o comandante dá uma cadeia nele. Mas o Bonfim já tinha feito uns servicinhos pro homem, daí que... peraí, tou esquecendo de contar como o Bonfim caiu. Pois é, a velha bruxa rogou praga e não é que pegou? Eu tava contando, dia de sábado tavamo fazendo uma blitz na Suburbana. Não era nem perto de morro. Corria tudo nos conformes, neguinho sendo parado, documento verificado, um dinheirinho corria aqui, outro ali. De vez em quando pintava uns papelotes, uma ervinha. Tudo beleza. O Bonfim parecia um Gérson, ali no meio de campo, feito maestro, dirigindo tudo, fazendo aquele bico dele, feito o caboclo Urubatão. Era difícil o homem mostrar os dentes.
Pois é, o serviço tava quase terminando, já tavamo quase tocando recolher. Foi aí que pintou aquela moto. Motinha professor, dessas que parecem tá peidando fumaça pra dar 60, sabe como é ? O cara vinha de capacete. Polícia não gosta de capacete. Como é que eu vou trabalhar sem ver a cara do malandro? Aprendi com o Bonfim, já disse. O Bonfim, bem antes da moto chegar, mandou eu parar o cara. Procedimento de rotina, tem muita moto com documentação ruim, tem muito motoqueiro sem carteira. A moto veio parando devagarinho, parece que o desgraçado já sabia que ia ser parado, já tava armando o bote. Pois o senhor acredita que o danado fez que nem o Romário? O senhor vai dizer que nunca viu um jogo do cara? Ele se fazia de morto e de repente dava uma arrancada... Pois é, mas esse elemento da moto, quando todo mundo pensava que ele já estava enquadrado deu uma acelerada de fritar o pneu e passou por mim voado. Quando eu me virei pra atirar num deu mais tempo... O velho Bonfa tava na supervisão e tinha se colocado na frente do doidão. Porra, professor, foi só um tiro, um tirinho desgraçado de certeiro e os miolos dele espalhados pelo chão. Nunca vi coisa igual. Se eu encontro aquela velha...
Tá bom por hoje, né professor?
- Marcos Alvito* (conto, inédito)
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SOBRE O AUTOR
(*) Marcos Alvito Pereira de Souza - Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP)
:: Área de atuação: Cultura Popular Carioca/ História das Favelas/ História e Antropologia
:: Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)
:: Currículo Lattes: ALVITO, Marcos. (acessado em 29.8.2016).
:: Blogue Marcos Alvito. (acessado em 29.8.2016).
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