Paul Gauguin - 1885 |
São fazendas dos fins do século passado, não mais. Seus donos ainda estão lá; já não se balançam, é verdade, nas cadeiras austríacas da varanda; nem ouvem a partida desse bando de maritacas que se muda para o morro do outro lado da várzea.
Ou talvez ouçam, quem sabe. Mas estão hirtos dentro de suas molduras, nas paredes da sala. Assim, rígidos, pintados a óleo, eles parecem reprovar nossos uísques e nossas conversas. Mas eis que Mário Cabral toca o Corta-Jaca no velho piano de cauda, e creio que eles gostam, talvez achem uma interessante novidade musical vinda da Corte. Mário ataca uma velha música francesa — Solitude — e creio bem que vi, ou senti, a senhora viscondessa suspirar de leve.
Ah, senhora viscondessa! Que solidão irremediável não sentis dentro de vossas grossas molduras douradas. Olhais para a frente, dura, firme. Lá fora as mangueiras e jabuticabeiras estão floridas, na pompa da manhã. Um beija-flor azul corta o retângulo da janela no seu voo elétrico e se imobiliza no ar, zunindo; insetos zumbem; a menina da casa passa no cavalo em pelo, a galope. Onde está vosso belo silhão? Onde está o senhor visconde?
Ele está em outra parede, também duro, de uniforme e espada, e seu casaco militar tem um pendão de penas de tucano. Não olha a esposa. Os dois não se olham. Alguma intriga? Não. Apenas eles estão cansados de estar casados, cansados de estar mortos, cansados de estar pintados, cansados de estar emoldurados e pendurados — e tão cansados e enfadados que há mais de sessenta anos não chupam uma só jabuticaba, sequer.
Se eu dissesse que cantava, mentiria. Não cantava. Estava quieto; demorou-se algum tempo, depois partiu.
Mas eu presto meu depoimento perante a História. Eu vi. Era um sabiá, e pousou no alto da palmeira. “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá.” Não cantou. Ouviu o canto de outro sabiá que cantava longe, e partiu.
Era um sabiá-laranjeira, de peito cor de ferrugem; pousou numa palmeira cheia de cachos de coquinhos, perto da varanda. Ouviu um canto distante, que vinha talvez dos pés de mulungu. Sabeis, naturalmente: é agosto e os mulungus estão floridos, estão em pura flor, cada um é uma grande chama cor de tijolo. Foi de lá que veio um canto saudoso, e meu sabiá-laranjeira partiu.
Mas ele estava pousado na palmeira. Descansa em paz nas ondas do mar, meu velho Antônio Gonçalves Dias; dorme no seio azul de Iemanjá, Antônio. Ainda há sabiás nas palmeiras, ainda há esperança no Brasil.
Vamos pela estrada, e de vez em quando divisamos a sede de uma fazenda. Esses fazendeiros das margens do Rio Preto e do Paraibuna eram todos barões, pelo menos. E tanto mais fidalgos quanto maiores suas senzalas e seus terreiros de café. Diante das casas plantavam palmeiras imperiais.
As enxurradas arrastaram o húmus de seus cafezais, abriram voçorocas; os negros libertos viraram erosão social e as casas imensas ficaram mal-assombradas. Restaram os morros de pasto, hoje pintalgados de vacas holandesas. Dentro das capoeiras altas os pés de café velho se escondem, como árvores nativas; viraram mato. Agora, de vez em quando, um bisneto derruba o mato, planta café novo, com mão de obra cara e difícil. Revejo com alegria essa eterna paisagem de minha infância, os morros penteados de cafezais, entre rios tortos. Mas as novas gerações não aprenderam nada e não esqueceram nada. Os cafeeiros continuam a ser plantados morro acima, sem obedecer à curva de nível, sem nenhuma defesa contra as águas precípites dos temporais estrondosos de verão. O penoso trabalho de meio século da natureza vai ser outra vez desperdiçado; voltamos a plantar decadência.
Ah, no lugar de palmeiras imperiais refaçam suas aleias com palmeiras finas e líricas de palmitos. Assim pelo menos os seus netos cortarão as palmeiras e comerão os palmitos, antes de partir definitivamente para um emprego em qualquer iapeteque.
Mas ainda há cercas vivas de bambu, no lombo dos morros. Ainda há céu; ainda acontecem nuvens de leite nas amplas tardes morenas. E os rios, talvez mais magros, continuam a rolar entre pedras sob os ramos pensativos das ingazeiras pardas e verdes. E nos beirais continua a haver andorinhas.
Passo a tarde à toa, à toa como o poeta, vendo andorinhas. Amo seu azul metálico, a elegância aguda de suas asas em voo, seu chalrear álacre dos mergulhos enviesados, quando caçam insetos. Onde vivia a andorinha, no tempo que não havia casas? Ela é amiga da casa do homem. Arquiteto, meu amigo arquiteto, nenhuma casa é funcional se não tiver lugar para a andorinha fazer seu ninho.
Mas é na casa da fazenda que a andorinha está à vontade. Melhor do que nessas casas imensas dos coronéis e dos velhos barões, elas só se dão mesmo nas grandes casas de Deus, as velhas igrejas escuras e úmidas que elas povoam de vida e de inquietação. Nenhuma outra ave do céu é mais católica.
É noite na fazenda; e a lua nasce, atrás do morro. Fico sozinho na varanda assistindo com uma vaga, irracional emoção, a esse antigo mistério. Luar, amar... Seria preciso amar alguém, talvez aquela sinhá tão moça e tão antiga, cujo retrato está no salão de jogos. A mesma que aparece com seus quarenta e cinco anos, ainda bela, no quadro ao lado. Essa já viveu na República. Ouvi contar suas histórias. Era mesmo linda, e foi feliz; o marido a adorava.
Ah, se eu fosse daquele tempo ela não seria minha, a bela sinhá. Ela seria a moça fazendeira e eu seria um colono pobre e feio, sempre meio barbudo e calado.
Penso de repente essa coisa triste, triste, e deixo a varanda, abandono a lua, regresso ao governo Kubitschek.
Estado do Rio, setembro, 1957.
— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.
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