Max Pechstein - springtime-1919 |
O doutor Morandi (que ainda não se habituara a ser chamado de doutor) desceu da viatura com a intenção de conservar-se incógnito por no mínimo dois dias, mas logo viu que seria impossível. A proprietária do café Alpino o acolhera com neutralidade (evidentemente não era muito curiosa, ou não muito arguta); mas, pelo sorriso deferente, maternal e levemente debochado da dona da tabacaria, ele entendeu que já era “o doutor novo”, sem possibilidade de adiamentos. “Devo ter o diploma escrito na cara — pensou: ‘tu es medicus in aeternum’, e, o que é pior, todos vão perceber.” Morandi não tinha nenhum gosto pelas coisas irrevogáveis e, naquele momento, sentia-se inclinado a ver naquela história uma grande e interminável chateação. “Algo parecido com o trauma do nascimento”, concluiu de modo não muito coerente.
... No entanto, como primeira conseqüência do anonimato perdido, era preciso encontrar Montesanto, sem mais demoras. Voltou ao café para retirar da mala a carta de apresentação e se pôs à procura do endereço que estava no cartão, cruzando a cidade deserta sob um sol inclemente.
Chegou ao lugar com dificuldade, depois de infinitos giros inúteis; não quis perguntar a rua a ninguém, porque nos rostos dos poucos que avistou pelo caminho pareceu discernir uma curiosidade malévola.
Esperava que a placa de identificação da casa fosse velha, mas a achou mais velha que qualquer expectativa, coberta de ferrugem e com o nome quase ilegível. Todas as persianas da casa estavam fechadas, e a baixa fachada, descascada e sem cor. À sua chegada, houve um rápido e silencioso acender de lâmpadas.
Montesanto em pessoa desceu e veio recebê-lo. Era um velho alto e corpulento, de olhos míopes e vivos num rosto de traços gastos e pesados: movia-se com a segurança silenciosa e maciça dos ursos. Estava de mangas curtas, sem colete: a camisa estava puída e não parecia limpa.
Pela escada e em cima, no estúdio, estava fresco e quase escuro. Montesanto sentou e ofereceu uma cadeira a Morandi, especialmente incômoda. “Vinte e dois anos aqui dentro”, pensou Morandi com um arrepio mental, enquanto o outro lia sem pressa a carta de apresentação. Mirou ao redor, enquanto seus olhos se habituavam à penumbra.
Sobre a escrivaninha, cartas, revistas, receitas e outros papéis de natureza indefinível, todos amarelados e amontoados numa pilha impressionante. Do teto pendia um longo fio de aranha, apenas visível pela poeira que o envolvia, balançando molemente aos sopros imperceptíveis da brisa meridiana. Um armário envidraçado com poucos instrumentos antigos e poucas garrafinhas nas quais os líquidos tinham corroído o vidro, assinalando o nível que por muito tempo haviam conservado. Na parede, estranhamente familiar, a grande moldura fotográfica dos “Laureandi Medici 1911”, bem conhecido dele: aí está o rosto quadrado e o queixo forte de seu pai, Morandi sênior; e logo ao lado (ai, como seria difícil reconhecê-lo!) o aqui presente Ignazio Montesanto, magro, nítido e espantosamente jovem, com ar de herói e mártir do pensamento, tão ao gosto dos formandos da época.
Após a leitura, Montesanto pousou a carta sobre o monte de papéis da escrivaninha, onde ela camuflou-se perfeitamente.
“Bem”, disse em seguida, “estou muito contente que o destino, a sorte...”, e a frase acabou num murmúrio indistinto, seguido de um longo silêncio. O velho médico inclinou a cadeira sobre as pernas posteriores e dirigiu o olhar para o teto. Morandi se dispôs a esperar que o outro retomasse o discurso; o silêncio já começava a pesar quando Montesanto retomou subitamente a fala.
Falou por muito tempo, a princípio com muitas pausas, depois com mais rapidez; a sua fisionomia se ia reanimando, os olhos brilhavam ágeis e vivos no rosto desfeito. Surpreso, Morandi se dava conta de experimentar uma nítida e crescente simpatia pelo velho. Tratava-se evidentemente de um solilóquio, um grande devaneio que Montesanto estava se concedendo. Para ele as ocasiões de falar (e se via que sabia falar e que conhecia a importância disso) deviam ser raras, breves retornos a um antigo vigor de pensamento agora talvez perdido.
Montesanto narrava a sua impiedosa iniciação profissional nos campos e trincheiras da outra guerra; a sua tentativa de carreira universitária, iniciada com entusiasmo, continuada com apatia e abandonada entre a indiferença dos colegas, fato que havia enfraquecido todas as suas esperanças; o exílio voluntário no povoado obscuro, em busca de algo muito indefinido para poder ser encontrado; e finalmente a vida atual de solitário, estrangeiro numa comunidade de gente pequena e ociosa, boa e ruim, mas para ele irremediavelmente distante; a prevalência definitiva do passado sobre o presente e o naufrágio último de todas as paixões, salvo a fé na dignidade do pensamento e na supremacia das coisas do espírito.
“Velho estranho”, pensava Morandi; notara que o outro falava havia quase uma hora sem sequer o olhar. De início, tentara várias vezes fazê-lo voltar a um plano mais concreto, indagá-lo sobre o estado sanitário da jurisdição, sobre a renovação dos aparelhos, sobre o armário dos remédios, talvez até sobre a própria organização pessoal; mas não conseguira, por timidez e por um mais ponderado respeito.
Agora Montesanto estava calado, com o rosto virado para o teto e o olhar acomodado no infinito. Era evidente que o solilóquio continuava internamente. Morandi estava embaraçado; perguntava-se se a sua réplica era esperada ou não, e qual seria, e se o médico se dava conta de que não estava sozinho em seu estúdio.
Mas ele se dava conta. De repente deixou a cadeira cair sobre os quatro pés e, com uma voz curiosa e esforçada, disse:
“Morandi, o senhor é jovem, muito jovem. Sei que é um bom médico, ou melhor, que se tornará bom; penso até que deve ser um homem bom. Caso o senhor não seja bom o suficiente para compreender o que eu lhe disse e o que lhe direi agora, espero que seja bom o bastante para não rir de mim. E, se rir, não será um grande mal: como o senhor sabe, dificilmente nos encontraremos de novo; de resto, é da ordem das coisas que os jovens se riam dos velhos. Só lhe peço que não se esqueça de que é o primeiro a saber dessas minhas coisas. Não quero adulá-lo dizendo que o senhor me pareceu particularmente digno de minha confiança. Sou sincero: o senhor é a primeira ocasião que se apresenta há muitos anos, e provavelmente a última.”
“Pode falar”, disse Morandi simplesmente.
“Morandi, já notou com que potência certos odores evocam certas lembranças?”
O golpe chegara imprevisto. Morandi engoliu com esforço: disse que havia notado e podia até arriscar uma teoria explicativa para o caso.
Não se explicava a mudança de tema. Concluiu com seus botões que devia se tratar de um “parafuso” solto, daqueles que todos os médicos têm depois de certa idade. Como Andriani: aos sessenta e cinco anos, cheio de fama, dinheiro e clientela, tivera tempo de cobrir-se de ridículo com a história do campo nêurico.
O outro havia agarrado com as duas mãos os ângulos da escrivaninha e olhava o vazio franzindo a testa. Depois recomeçou:
“Agora mostrarei algo inusitado. Durante os meus anos de assistente em farmacologia, estudei muito a fundo a ação dos adrenalínicos absorvidos por via nasal. Não descobri nada de útil à humanidade, mas apenas um fruto bastante indireto, como o senhor verá.
“Mesmo mais tarde, dediquei muito do meu tempo à questão das sensações olfativas e de suas relações com a estrutura molecular. Trata-se, a meu ver, de um campo extremamente fecundo, aberto inclusive a pesquisadores dotados de recursos modestos. Vi com prazer, ainda recentemente, que alguém está se ocupando disso, e também estou a par das novas teorias eletrônicas, mas o único aspecto da questão que agora me interessa é outro. Creio que hoje possuo o que mais ninguém no mundo possui.
“Há quem não se importe com o passado e deixe que os mortos enterrem seus mortos. E há os que se interessam pelo passado, entristecendo-se com a sua contínua desaparição. Há ainda os que têm o cuidado de manter um diário contínuo, a fim de que cada coisa sua seja salva do esquecimento, e quem conserva em sua casa e em sua pessoa lembranças materializadas: uma dedicatória num livro, uma flor seca, um cacho de cabelo, fotografias, velhas cartas.
“Eu, por natureza, só posso pensar com horror na eventualidade de que uma só de minhas lembranças seja cancelada, e por isso adotei todos esses métodos; mas também criei um novo.
“Não, não se trata de uma descoberta científica, simplesmente tirei partido de minha experiência de farmacologista e reconstruí, com exatidão e numa forma conservável, um certo número de sensações que para mim significam alguma coisa.
“A isso (repito, não pense que falo sempre sobre esse assunto) chamo mnemagogos: ‘suscitadores de memória’. Quer me acompanhar?”
Ergueu-se e dirigiu-se ao corredor. Na metade do caminho, voltou-se e acrescentou: “Como o senhor pode imaginar, devem ser usados com parcimônia, do contrário seu poder evocativo pode diminuir; além disso, não é preciso que lhe diga que são inevitavelmente pessoais. Estritamente. Aliás, pode-se dizer que são a minha pessoa, já que ao menos em parte eu consisto neles”.
Abriu um armário. Ali estavam umas cinqüenta garrafinhas de tampa esmerilhada, todas numeradas.
“Por favor, escolha uma.”
Morandi o olhava perplexo; estendeu uma mão hesitante e escolheu uma.
“Abra e cheire. O que está sentindo?”
Morandi inspirou profundamente várias vezes, primeiro com os olhos em Montesanto, depois erguendo a cabeça numa postura de quem interroga a memória.
“Isso me pareceria cheiro de caserna.” Montesanto cheirou por sua vez: “Não exatamente”, respondeu, “ou pelo menos não é o mesmo para mim. É o cheiro das aulas nas escolas primárias; aliás, da minha sala na minha escola. Não vou me estender sobre a composição: contém ácidos graxos voláteis e uma acetona não-saturada. Entendo que para o senhor não seja nada: para mim, é a minha infância.
“Também conservo a foto dos meus trinta e sete colegas de escola do primeiro ano primário, mas o cheiro desta garrafinha é imensamente mais eficaz na evocação das horas intermináveis de tédio sobre o silabário; o estado de espírito peculiar das crianças (de mim criança!) à espera terrificante da primeira prova de ditado. Quando inalo isto aqui (não agora: é preciso um certo grau de recolhimento, naturalmente), quando cheiro, minhas vísceras se retorcem como quando esperava ser sabatinado aos sete anos. Quer escolher mais uma?”
“Acho que esta me lembra... espere... Na casa de meu avô, no campo, havia um quartinho onde se colocavam as frutas para amadurecer...”
“Muito bem”, fez Montesanto com sincera satisfação. “Exatamente como dizem os tratados. Fico grato de que o senhor tenha escolhido um odor profissional: este é o cheiro do hálito do diabético em fase acetonêmica. Com mais uns anos de prática o senhor certamente teria descoberto sozinho. Como sabe, é um sinal clínico infausto, o prelúdio do coma.
“Meu pai morreu diabético, há quinze anos; não foi uma morte breve nem misericordiosa. Meu pai representava muito para mim. Eu o velei por noites inumeráveis, assistindo impotente à progressiva anulação da sua identidade; não foram vigílias estéreis. Muitas das minhas crenças foram abaladas, muito do meu mundo mudou. Para mim, portanto, não se trata apenas de maçãs ou de diabetes, mas do sofrimento solene e purificador, único na vida, de uma crise religiosa.”
“... Esta não passa de ácido fênico!”, exclamou Morandi, cheirando uma terceira garrafa.
“De fato. Pensava que para o senhor esse cheiro também dissesse alguma coisa; mas ainda não faz um ano que o senhor terminou os turnos de hospital, a recordação ainda não amadureceu. Porque o senhor deve ter notado — não é verdade? — que o mecanismo evocatório de que estamos falando exige que os estímulos, depois de terem agido repetidamente, associados a um ambiente ou a um estado de alma, em seguida cessem de agir por um tempo bastante largo. De resto, o senso comum diz que as recordações, para serem sugestivas, devem ter um sabor antigo.
“Eu também dei muitos plantões em hospitais e respirei ácido fênico a plenos pulmões. Só que isso ocorreu há um quarto de século, e, além disso, desde aquela época o fenol deixou de constituir o fundamento da anti-sepsia. Mas no meu tempo era assim, e é por isso que ainda hoje não posso cheirá-lo (não o quimicamente puro, mas este, a que acrescentei pitadas de outras substâncias que o tornam específico para mim) sem que me surja na mente um quadro complexo, de que fazem parte uma música então em voga, o meu entusiasmo juvenil por Blaise Pascal, uma certa languidez primaveril nos rins e nos joelhos e uma colega de curso que, fiquei sabendo, tornou-se avó recentemente.”
Dessa vez ele mesmo escolhera uma garrafa; ofereceu-a a Morandi:
“Confesso que até hoje sinto orgulho deste preparado. Apesar de nunca ter publicado seus resultados, considero-o o meu verdadeiro sucesso científico. Gostaria de ouvir a sua opinião.”
Morandi aspirou com todo o cuidado. Certamente não era um cheiro novo: poderia ser qualificado de ardente, enxuto, quente...
“... Quando se chocam duas pedras de ignição...?”
“Sim, também. Parabéns pelo seu olfato. Sente-se esse cheiro no alto da montanha, quando a rocha se escalda ao sol; especialmente quando há um desmoronamento de pedras. Asseguro-lhe que não foi fácil reproduzir in vitro e tornar estáveis as substâncias que o constituem sem alterar suas qualidades sensíveis.
“Antigamente eu ia muito à montanha, quase sempre sozinho. Quando chegava ao topo, deitava sob o sol no ar parado e silencioso e me parecia que alcançara um objetivo. Naqueles momentos, e só se me concentrasse, percebia esse cheiro suave, raro de ser sentido em outros lugares. No que me diz respeito, deveria chamá-lo aroma da paz conquistada.”
Superado o desconforto inicial, Morandi começava a se afeiçoar ao jogo. Pinçou ao acaso uma quinta garrafa e a estendeu a Montesanto: “E esta?”.
“Isto não é um lugar nem um tempo. É uma pessoa.”
Fechou o armário; havia falado em tom definitivo. Morandi preparou mentalmente algumas expressões de interesse e de admiração, mas não conseguiu superar uma estranha barreira interna e renunciou a externá-las. Despediu-se apressadamente, com uma vaga promessa de nova visita, e precipitou-se pela escada em direção ao sol. Sentiu que enrubescera intensamente.
Depois de cinco minutos entre os pinheiros, subia furiosamente pela parte mais íngreme, calcando o bosque macio, longe de qualquer caminho. Era muito agradável sentir os músculos, os pulmões e o coração funcionando a pleno vapor, assim, naturalmente, sem necessidade de intervenções. Era muito bom ter vinte e quatro anos.
Acelerou o ritmo da subida o mais que pôde, até sentir o sangue batendo forte nos ouvidos. Depois se estirou na grama, com os olhos fechados, contemplando o brilho do sol através das pálpebras. Até que se sentiu como lavado e novo.
Então aquele era Montesanto... Não, não era preciso fugir, ele não se tornaria assim, não se deixaria transformar daquele jeito. Também não mencionaria o caso a ninguém. Nem a Lucia, nem a Giovanni. Não seria generoso.
Embora no fundo... somente com Giovanni... e em termos estritamente teóricos... Existia algo que não se pudesse comunicar a Giovanni? Sim, escreveria a Giovanni. Amanhã. Aliás (conferiu a hora), imediatamente; a carta talvez ainda partisse com o correio da noite. Logo.
— Primo Levi, no livro "71 contos". tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
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