Paul Cezanne - life in the fields |
Como a viagem ia ser longa, umas dez léguas de mão aberta, precisavam levantar cedo. Sabendo que não seria fácil tirar o menino da cama, o pai teve que empregar o velho truque de puxar o cobertor, o que fez muito contra a vontade porque havia tomado a decisão de não maltratar o menino naquele dia.
O menino tentou ficar um pouco mais na cama, mas sem o cobertor suas perninhas nuas não podiam encontrar conforto no colchão de palha, e ele pulou da cama tremendo e soltando fumaça pela boca e nariz.
Estava ainda muito escuro, o pai havia acendido uma vela na varanda, a vela ficou fincada na boca de uma garrafa em cima da mesa, a chama comendo a cera mais de um lado por causa do ventinho da madrugada que entrava pelas janelas. O menino ficou parado na porta, coçando-se e olhando o quintal escuro.
— Não fique aí parado que é pior — disse o pai, não ralhando mas aconselhando. — Vá lavar o rosto na bica que é bom para a saúde. Eu já lavei o meu.
O menino achou estranha a preocupação com a sua saúde naquela hora, mas sendo obediente aceitou o conselho sem dizer nada. Quando sentiu a água fria nas mãos ele pensou na possibilidade de apanhar uma pneumonia e morrer depressa, naquele dia mesmo; podia ser uma boa lição. E continuou com as mãos na água, sentindo-a ora morna, ora muito fria, como se ela fosse feita de pedaços soltos, que iam caindo da bica e quebrando na laje do tanque. Seria bom se a gente pudesse morrer quando quisesse, só com a força do pensamento, sem fazer nada que doesse. No sítio um camarada fincou um ferrão de carreiro na barriga de propósito para morrer, gemeu e chorou a noite inteira pedindo a benzedora para salvá-lo.
Quando ele voltou o pai estava na cozinha pelejando para acender o fogo e só conseguindo fazer fumaça.
— Diacho de lenha ruim — dizia entre acessos de tosse. — Hoje em dia só querem é ganhar dinheiro de qualquer jeito. Isso é lenha que se corte? O menino lembrou-se da mãe acendendo o fogo sem xingar nem reclamar. Primeiro ela acendia uma pelota de trapos, espalhava um punhado de cavacos por cima, quando a chama subia ela ia jogando gravetos e cascas. Num instante as duas achas grossas, uma de cada lado, iam pegando fogo.
— Deixa que eu acendo — disse o menino.
— É, você tem mais jeito. Depois põe a água pra ferver e vai moendo o café. Enquanto isso eu pego os cavalos.
Os cavalos tinham ficado no quintal para facilitar o trabalho. Eram um rosilho e um castanho menor, presentes de casamento. Depois que ficou sozinho o pai andou querendo vendê-los mas os interessados que apareciam achavam os bichos muito velhos, ofereciam preços ofensivos e ainda davam a entender que estavam fazendo favor. O dono agradecia o incômodo de terem ido olhar e dizia que ia ficando com eles enquanto não encontrasse preço melhor.
O pai amarrou os cavalos na frente da casa e voltou para apanhar os arreios pendurados num canto da varanda. O menino avisou da cozinha que o café estava pronto.
— Bem que senti o cheiro — disse o pai forçando cordialidade.
O menino já havia preparado as tigelas e desembrulhado o prato de biscoitos dados pela vizinha. O pai puxou um tamborete para perto da mesinha de caixote e ficou observando os movimentos do menino, o jeito certo que ele tinha para os serviços de cozinha, e considerou que talvez estivesse sendo apressado demais em resolver uma dificuldade que podia ser passageira. Não poderiam os dois ir tocando a vida sozinhos, o menino cozinhando e ele cuidando de ganhar o sustento? Não estaria ele querendo se ver livre do filho, a pretexto de resolver dificuldades mais temidas do que sentidas? Esse pensamento o entristeceu, ele realmente não sabia o que fazer.
— Você quer ir mesmo? — perguntou quando o menino lhe passou a tigela fumegante, como se a decisão tivesse sido do menino.
— O senhor não já combinou? — respondeu o menino perguntando, sem perceber que poderia ter mudado tudo com outra resposta.
Beberam o café em silêncio, o pai soprando o seu mais do que seria necessário. Um tição resvalou no fogo, espantando para cima uma chuva de fagulhas.
— Você não gostou do sítio das vezes que esteve lá? — perguntou o pai, ainda querendo empurrar a responsabilidade para o filho.
O filho não respondeu, estava mastigando um biscoito, a mãe o ensinara a não falar com a boca cheia. Ele gostara sim, mas a mãe tinha ido também, e sem ela não seria a mesma coisa.
O pai começou a picar fumo para um cigarro (não estava muito com vontade de fumar, estava era esperando a ocorrência de alguma ideia). O menino ia recolhendo as vasilhas para lavar, o pai interveio: — Deixe isso que D. Ana lava. Ela vem aí para limpar e cuidar das galinhas. Em vez disso, apague o fogo.
O resto dos biscoitos foi guardado numa lata, a lata num embornal de lona, onde já havia uma palha com paçoca de carne seca; a chave da casa foi deixada na janela de D. Ana, conforme combinação; o pai ergueu o filho do chão para a sela; perguntou se estava direito, montou também, saíram.
Quando desciam a ladeira perto da ponte o menino lembrou-se da caixinha de lápis de cor que ficara na gaveta da varanda. Não convinha pedir ao pai para voltarem, ele podia ralhar. Também podia ser que não tivesse tempo de desenhar no sítio, e nesse caso era melhor não ter os lápis perto, tentando.
Ao passarem pela última casa antes da ponte, onde morava um amigo, o menino olhou as janelas fechadas, o quintal escuro atrás do muro e achou bom estar saindo de madrugada, assim não precisava se despedir, nem explicar. O pai tentou puxar conversa, os assuntos não rendiam, eles não tinham o hábito de conversar, a cada tentativa o menino respondia é sim senhor, não sei não senhor, parece — e ficavam nisso.
Quando pegaram a estrada real o menino experimentou distrair-se contando os vultos dos postes telegráficos, mas eram tantos e tão longe um do outro que ele perdeu a conta e o interesse. Uma ocasião ele julgou ouvir os fios zunindo, e enquanto pensava se perguntava a razão do zunido o pai parece que adivinhou e explicou que deviam estar passando telegrama.
Telegrama era com Mestre Belmiro, sentado em sua salinha no largo, os suspensórios caídos para os lados, a mão direita apalpando aquela espécie de carimbo em cima da mesa, ou desenrolando entre os dedos aquela fita comprida e escrevendo o resultado numa folha de bloco, as folhas seguindo para aqui e para ali, alegrando ou assustando gente.
Às vezes em dia de festa Mestre Belmiro estava muito bem tocando clarineta na banda, de repente olhava o relógio, tampava a clarineta com o copinho e saía apressado para atender o telégrafo. Mestre Belmiro parece que fazia parte daquela máquina, de longe ele sentia o chamado dela.
Na paisagem sem morro o dia clareou depressa, o sol apontou vermelho e quente. Com o sol vieram as moscas, os mosquitos, os besourinhos, os muitos bichos que voam ou boiam no ar acompanhando o viajante, zumbindo nos ouvidos dele, fazendo cócega nas orelhas do cavalo. O menino matou um bichinho — abelha ou mosquito — que teimava em rodear a cabeça dele, causando um ruído incômodo nos ouvidos, e logo pensou se não teria feito um grande mal no caso de mosquito ter pai e mãe? Se aquele mosquito que ele tinha acabado de matar fosse mãe de outros menores não ia fazer falta? Também se a gente vai pensar toda hora em tudo o que tem de fazer acaba não fazendo nada.
O pai disse qualquer coisa, e não tendo percebido o que era o menino fingiu estar ocupado em espantar outros bichos, deu um tapa raspado na orelha, deu outro na frente do rosto, isso justificava a falta de resposta caso a fala do pai requeresse resposta; mas o pai já estava com a atenção num cigarro que não queria pegar, sinal de que não esperava resposta.
O calor ia aumentando, o sol já queimava o pescoço e uma perna do menino, o suor que se formava do lado de dentro fazia gosma no couro velho da sela, ele sentiu o visgo escorrendo até o pé, incomodando sem remédio. Um carro cantou longe na frente, o pai disse que devia ser cana para o engenho dos Cruvinel.
— Podemos parar lá para tomar uma garapa, se você quiser...
— O senhor é quem sabe...
O número de animais ia aumentando, agora eram muitos, mais unidos. Vacas com bezerros, éguas com cria, uns poldrinhos de cabelo na testa espertos e brincalhões, provocando as mães para correrias.
— Daqui a pouco esses poldros vão precisar de ser amansados — disse o pai. — Você querendo já pode ajudar.
O menino lembrou-se do medo que a mãe tinha de vê-lo montar em cavalo, das mil recomendações que fazia quando o padrinho chegava na cidade e ele se oferecia para levar o cavalo ao pasto.
— E não é perigoso amansar poldro?
— Não deixa de ser. Mas você não vai montar assim de saída, antes de apanhar prática. Primeiro vai só olhando para aprender, os peões vão ensinando.
A estrada começou a descer no rumo da mata que escondia o córrego, já se sentia o cheiro de folhas podres e de terra molhada. Os cavalos bufaram e apressaram o passo por conta própria. Um tatu atravessou a estrada com seu passinho apavorado e desapareceu numa moita de gravatas.
— Pai... Eu vou ficar aí até crescer? — Deus é quem sabe. Por enquanto você vai é experimentar. Em silêncio entraram no túnel da mata, e o mundo ficou escuro como se fosse chover, impressão reforçada pela friagem que vinha do chão. O menino ficou tão deprimido que teve vontade de pedir ao pai para não deixá-lo, para dizer aos padrinhos que estavam apenas passeando; ele prometia fazer tudo para ajudar o pai na sua vida de viúvo, até cozinhava para os dois, e não se incomodava mais de ficar sozinho à noite quando o pai quisesse conversar ou jogar em casa de amigos. Mas já estava tudo combinado, o pai não ia voltar atrás.
Chegaram com o sol ainda de fora. D. Mercedes veio recebê-los com muita festa, mandou-os apear e entrar, disse que o marido tinha ido ao canavial e não tardava. Abraçou o afilhado, espantando-se de vê-lo tão crescido.
— É a cara da mãe, o senhor não acha? — Arrependeu-se da lembrança inoportuna, consertou: — Vou fazer tudo para você não sentir muito a falta dela — e abraçou o menino de novo.
Quando se acomodaram na varanda D. Mercedes chamou um empregado, mandou-o desarrear os cavalos, o compadre avisou que desancasse só o do menino.
— Não diga que ainda quer voltar hoje, compadre!
— É preciso. Deixei muito serviço esperando. A senhora sabe como é vida de escravo.
— Ora essa! Não falhar nem um dia! Lourenço não vai deixar.
— É sério, comadre. Estou pintando a casa do juiz, se eu não acabar esta semana ele fica meu inimigo.
Enquanto a conversa se animava o menino deitou-se na rede e dormiu. Quando o dono da casa chegou o pai quis acordar o menino para tomar a bênção, os padrinhos não deixaram, ele devia estar cansado da viagem. Nova tentativa foi feita para que o pai pelo menos pernoitasse, agora com reforço do compadre, mas a resistência foi decidida.
— E acho que nem posso esperar a janta.
— Isso não consinto — declarou o dono da casa.
O pai explicou que era melhor ele sair enquanto o filho estivesse dormindo.
— Ele anda triste desde ontem e é capaz de não querer ficar. Se ele chorar muito eu amoleço. Deus sabe o que eu tenho sofrido.
Os padrinhos acataram a decisão. Seria uma pena que tivessem de abrir mão do menino, depois de tudo preparado para acolhê-lo.
— Então eu vou ver alguma coisa para o senhor comer no caminho — disse D. Mercedes.
— Isso eu aceito. E tem uma coisa. Se não gostarem dele, ou se ele ficar muito malcriado, não tenham acanhamento; mandem recado que eu venho buscar.
Veio a merenda em dois embrulhos de palha de milho. D. Mercedes pediu que não reparasse porque fora feito as pressas.
O pai agradeceu, guardou os embrulhos no embornal, levantou-se e ficou parado ao lado da rede olhando o filho.
— Tenha paciência com ele, comadre. Mas não deixe de castigar quando for preciso.
Os donos da casa foram levá-lo à porteira, despediram-se e ficaram olhando até ele sumir na descida.
— Coitado de compadre Olímpio. Tem roído da banda pobre — disse o marido.
— Tão boa pessoa e tão sem sorte — disse a mulher quase chorando. — Deve ser triste separar do filho assim. Ele está se fazendo de duro mas está sofrendo.
— É a cruz de cada um — disse o marido abraçando-a pela cintura e levando-a para casa.
As vacas de cria nova já vinham se chegando para o curral. Os bezerrinhos berravam e se atropelavam para arranjar um bom lugar nos vãos da porteira. As mães chegavam aflitas e procuravam lamber os filhos por entre as tábuas, como para ajudá-los a terem calma.
— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". seleção de J. Aderaldo Castelo. São Paulo: Global Editora, 2000.
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