Paul Gauguin - street in rouen - 1884 |
CAPÍTULO PRIMEIRO
Deixa-te de partes, Eusébio; vamos embora; isto não é bonito. Cirila...
— Já lhe disse o que tenho de dizer, tio João, respondeu Eusébio. Não estou disposto a tornar à vida de outro tempo. Deixem-me cá no meu canto. Cirila que fique...
— Mas, enfim, ela não te fez nada.
— Nem eu digo isso. Não me fez coisa nenhuma; mas... para que repeti-lo? Não posso aturá-la.
— Virgem Santíssima! Uma moça tão sossegada! Você não pode aturar uma moça, que é até boa demais?
—Pois, sim; eu é que sou mau; mas deixem-me.
Dizendo isto, Eusébio caminhou para a janela, e ficou olhando para fora. Dentro, o tio João, sentado, fazia circular o chapéu-de-chile no joelho, fitando o chão com um ar aborrecido e irritado. Tinha vindo na véspera, e parece que com a certeza de voltar à fazenda levando o prófugo Eusébio. Nada tentou durante a noite, nem antes do almoço. Almoçaram; preparou-se para dar uma volta na cidade, e, antes de sair, meteu ombros ao negócio. Vã tentativa! Eusébio disse que não, e repetiu que não, à tarde, e no dia seguinte. O tio João chegou a ameaçá-lo com a presença de Cirila; mas a ameaça não surtiu melhor efeito, porque Eusébio declarou positivamente que, se tal sucedesse, então é que ele faria coisa pior. Não disse o que era, nem era fácil achar coisa pior do que o abandono da mulher, a não ser o suicídio ou o assassinato; mas vamos ver que nenhuma destas hipóteses era sequer imaginável. Não obstante, o tio João teve medo do pior, pela energia do sobrinho, e resignou-se a tornar à fazenda sem ele.
De noite, falaram mansamente da fazenda e de outros negócios de Piraí; falaram também da guerra, e da batalha de Curuzu, em que Eusébio entrara, e donde saíra sem ferimentos, adoecendo dias depois. De manhã, despediram-se; Eusébio deu muitas lembranças para a mulher, mandou-lhe mesmo alguns presentes, trazidos de propósito de Buenos Aires, e não se falou mais na volta.
— Agora, até quando?
— Não sei; pretendo embarcar daqui a um mês ou três semanas, e depois, não sei; só quando a guerra acabar.
CAPÍTULO II
Há uma porção de coisas que estão patentes ou se deduzem do capítulo anterior. Eusébio abandonou a mulher, foi para a guerra do Paraguai, veio ao Rio de Janeiro, nos fins de 1866, doente, com licença. Volta para a campanha. Não odeia a mulher, tanto que lhe manda lembranças e presentes. O que se não pode deduzir tão claramente é que Eusébio é capitão de voluntários; é capitão, tendo ido tenente; portanto, subiu de posto, e, na conversa com o tio, prometeu voltar coronel.
Agora, por que motivo, sendo a mulher tão boa, e, não a odiando ele, pois que lhe remete uns mimos, comprados para ela, de propósito, não aqui, mas já em Buenos Aires, por que motivo, digo eu, resiste o Capitão Eusébio à proposta de vir ver Cirila? That is the rub. Eis aí justamente o ponto intrincado. A imaginação perde-se em um mar de conjeturas, sem achar nunca o porto da verdade, ou pelo menos, a angra da verossimilhança. Não; há uma angra; parece-me que o leitor sagaz, não atinando com outro motivo, recorre à incompatibilidade de gênio, único modo de explicar este capitão, que manda presentes à consorte, e a repele.
Sim e não. A questão reduz-se a uma troca de datas. Troca de datas? Mas... Sim, senhor, troca de datas, uma cláusula psicológica e sentimental, uma coisa que o leitor não entende, nem entenderá se se não der ao trabalho de ler este escrito.
Em primeiro lugar, fique sabendo que o nosso Eusébio nasceu em 1842; está com vinte e quatro anos, depois da batalha de Curuzu. Foi criado por um pai severo e uma mãe severíssima. A mãe faleceu em 1854; em 1862 o pai determinou casá-lo com a filha de um correligionário político, isto é, conservador, ou, para falar a linguagem do tempo e do lugar, saquarema. Essa moça é D. Cirila. Segundo todas as versões, até de adversários, D. Cirila era a primeira beleza da província, fruta da roça, não da corte, aonde já viera duas ou três vezes, — fruta agreste e sadia. “Parece uma santa!” era o modo de exprimir a admiração dos que olhavam para ela; era assim que definiam a serenidade da fisionomia e a mansidão dos olhos. Da alma podia dizer-se a mesma coisa, uma criatura plácida, parecia cheia de paciência e doçura.
Saiba agora, em segundo lugar, que o nosso Eusébio não criticou a escolha do pai, aprovou-a, gostou da noiva logo que a viu. Ela também; ao alvoroço da virgem acresceu a simpatia que Eusébio lhe inspirou, mas uma e outra coisa, alvoroço e simpatia, não foram extraordinários, não subiram de certa medida escassa, compatível com a natureza de Cirila.
Com efeito, Cirila era apática. Nascera para as funções angélicas, servir ao Senhor, cantar nos coros divinos, com a sua voz fraca e melodiosa, mas sem calor, nem arrebatamentos. Eusébio não lhe viu senão os olhos, que eram, como digo, bonitos, e a boca fresca e bem rasgada; aceitou a noiva, e casaram-se daí a um mês.
A opinião de toda a gente foi unânime. — Um rapagão! diziam consigo as damas. E os rapazes: — Uma linda pequena! A opinião foi que o casamento não podia ser mais acertado e, portanto, devia ser felicíssimo. Pouco tempo depois de casados, morreu o pai de Eusébio; este convidou o tio a tomar conta da fazenda, e deixou-se ali ficar ao pé da mulher. São dois pombinhos, dizia o tio João aos amigos. E enganava-se. Era uma pomba e um gavião.
Dentro de quatro meses, as duas naturezas tão opostas achavam-se divorciadas. Eusébio tinha as paixões enérgicas, tanto mais enérgicas quanto que a educação as comprimira. Para ele o amor devia ser vulcânico, uma fusão de duas naturezas impetuosas; uma torrente em suma, figura excelente, que me permite o contraste do lago quieto. O lago era Cirila. Cirila era incapaz de paixões grandes, nem boas nem más; tinha a sensibilidade curta, e afeição moderada, quase nenhuma, antes obediência do que impulso, mais conformidade que arrojo. Não contradizia nada, mas também não exigia nada. Provavelmente, não teria ciúmes. Eusébio disse consigo que a mulher era um cadáver, e, lembrando-se do Eurico, emendou-lhe uma frase: — Ninguém vive atado a um cadáver, disse ele.
Três meses depois, deixou ele a mulher e a fazenda, tendo assinado todas as procurações necessárias. A razão dada foi a guerra do Paraguai; e, com efeito, ele ofereceu os seus serviços ao governo; mas não há inconveniente que uma razão nasça com outra, ao lado, ou dentro de si mesma. A verdade é que, na ocasião em que ele resolvia ir para a campanha, deliciava os habitantes do Piraí uma companhia de cavalinhos na qual uma certa dama, rija, de olhos negros e quentes, fazia maravilhas no trapézio e na corrida em pêlo. Chamava-se Rosita; e era oriental. Eusébio assinou com essa representante da república vizinha um tratado de perpétua aliança, que durou dois meses. Foi depois do rompimento que Eusébio, tendo provado o vinho dos fortes, determinou deixar a água simples de casa. Não queria fazer as coisas com escândalo, e adotou o pretexto marcial. Cirila ouviu a notícia com tristeza, mas sem tumulto. Estava fazendo crivo; parou, fitou-o, parece que com os olhos um tanto úmidos, mas sem nenhum soluço e até nenhuma lágrima. Levantou-se e foi cuidar da bagagem. Creio que é tempo de acabar este capítulo.
CAPÍTULO III
Como não é intenção do escrito contar a guerra, nem o papel que lá fez o Capitão Eusébio, corramos depressa ao fim, no mês de outubro de 1870, em que o batalhão de Eusébio voltou ao Rio de Janeiro, vindo ele major, e trazendo ao peito duas medalhas e dois oficialatos: um bravo. A gente que nas ruas e das janelas via passar os galhardos vencedores era muita, luzida e diversa. Não admira, se no meio de tal confusão o nosso Eusébio não viu a mulher. Era ela, entretanto, que estava debruçada da janela de uma casa da Rua Primeiro de Março, com algumas parentas e amigas, e o infalível tio João.
— Olha, Cirila, olha, lá vem ele, dizia o bom roceiro.
Cirila baixou os olhos ao marido. Não o achou mudado, senão para melhor: pareceu-lhe mais robusto, mais gordo; além disso, tinha o ar marcial, que acentuava a figura. Não o tendo visto desde cinco anos, era natural que a comoção fosse forte, e algumas amigas, receosas, olhavam para ela. Mas Cirila não desmaiou, não se alvoroçou. O rosto ficou sereno como era. Fitou Eusébio, é verdade, mas não muito tempo, e, em todo caso, como se ele tivesse saído daqui na semana anterior. O batalhão passou; o tio João saiu para ir esperar o sobrinho no quartel.
— Ora, vem cá, meu rapaz!
— Oh! tio João!
— Voltas cheio de glória! exclamou o tio João depois de o abraçar apertadamente.
— Parece-lhe?
— Pois então! Lemos tudo o que saiu nas folhas; você brilhou... Há de contar-nos isso depois. Cirila está na corte...
— Ah!
— Estamos em casa do Soares Martins.
Não se pode dizer que ele recebeu a notícia com desgosto: mas também não se pode afirmar que com prazer; indiferente, é verdade, indiferente e frio. A entrevista não foi mais alvoroçada; ambos apertaram as mãos com um ar de pessoas que se estimam sem intimidade. Três dias depois, Cirila voltava para a roça, e o Major Eusébio deixava-se ficar na corte.
Já o fato de ficar é muito; mas, não se limitou a isso. Eusébio estava namorado de uma dama de Buenos Aires, que prometera vir ter com ele ao Rio de Janeiro. Não acreditando que ela cumprisse a palavra, preparou-se para tornar ao Rio da Prata, quando ela aqui aportou, quinze dias depois. Chamava-se Dolores, e era realmente bela, um belo tipo de argentina. Eusébio amava-a loucamente, ela não o amava de outro modo; ambos formavam um par de doidos.
Eusébio alugou casa na Tijuca, onde foram viver os dois, como um casal de águias. Os moradores do lugar contavam que eles eram um modelo de costumes e outro modelo de afeição. Com efeito, não davam escândalo e amavam-se com o ardor, a tenacidade e o exclusivismo das grandes paixões. Passeavam juntos, conversavam de si e do céu; ele deixava de ir à cidade três, cinco, seis dias, e quando ia era para se demorar o tempo estritamente necessário. Perto da hora de voltar, via-se a bela Dolores esperá-lo ansiosa à janela, ou ao portão. Um dia a demora foi além dos limites do costume; eram cinco horas da tarde, e nada; deram seis, sete, nem sombra de Eusébio. Ela não podia ter-se; ia de um ponto para outro, interrogava os criados, mandava um deles ver se aparecia o patrão. Não chorava, tinha os olhos secos, ardentes. Enfim, perto de oito horas, apareceu Eusébio. Vinha esbaforido; tinha ido à casa do Ministro da Guerra, onde o oficial do gabinete lhe disse que S. Ex.ª desejava falar-lhe, nesse mesmo dia. Voltou lá às quatro horas; não o achou, esperou-o até às cinco, até às seis; só às seis e meia é que o ministro voltou da Câmara, onde a discussão lhe tomara o tempo.
Ao jantar, contou Eusébio que o motivo da entrevista com o Ministro da Guerra fora um emprego que ele pedira, e que o ministro, não podendo dar-lho, trocara por outro. Eusébio aceitou; era para o Norte, na província do Pará...
— No Pará?! interrompeu Dolores.
— Sim. Que tem?
Dolores refletiu um instante; depois disse que ele fazia muito bem aceitando, mas que ela não iria; receava os calores da província, tinha lá perdido uma amiga; provavelmente, voltava a Buenos Aires. O pobre major não pôde acabar de comer; instou com ela, mostrou-lhe que o clima era excelente, e que as amigas podiam morrer em qualquer parte. Mas a argentina abanou a cabeça. Sinceramente, não queria.
No dia seguinte, Eusébio desceu outra vez para pedir dispensa ao ministro, e rogar-lhe que o desculpasse, porque um motivo súbito, um incidente... Regressou à Tijuca, dispensado e triste; mas os olhos de Dolores curaram-lhe a tristeza em menos de um minuto.
— Já lá vai o Pará, disse ele alegremente.
— Sim?
Dolores agradeceu-lhe o sacrifício com um afago; abraçaram-se amorosos, como no primeiro dia. Eusébio estava contente com ter cedido; não advertiu que, se ele insistisse, Dolores embarcaria também. Ela não fez mais do que exercer a influência que tinha, para se não remover da capital; mas, assim como Eusébio sacrificou por ela o emprego, assim Dolores sacrificaria por ele o repouso. O que ambos queriam principalmente era não se separarem nunca.
Dois meses depois, veio a quadra dos ciúmes. Eusébio desconfiou de Dolores, Dolores desconfiou de Eusébio, e as tempestades desencadearam-se sobre a casa como o pampeiro do Sul. Diziam um ao outro coisas duras, algumas ignóbeis; Dolores arremetia contra ele, Eusébio contra ela; espancavam-se e amavam-se. A opinião do lugar chegava ao extremo de dizer que eles se amavam melhor depois de espancados.
— São sistemas! murmurava um comerciante inglês.
Assim se passou metade do ano de 1871. No princípio de agosto, recebeu Eusébio uma carta do tio João, que lhe dava notícia de que a mulher estava doente de cama, e queria falar-lhe. Eusébio mostrou a carta a Dolores. Não havia remédio senão ir; prometeu voltar logo... Dolores pareceu consentir, ou deveras consentiu na ocasião; mas duas horas depois, foi ter com ele, e ponderou-lhe que não se tratava de moléstia grave, se não o tio o diria na carta; provavelmente, era para tratar dos negócios da fazenda.
— Se não é tudo mentira, acrescentou ela.
Eusébio não tinha advertido na possibilidade de um invento, com o fim de o arrancar aos braços da bela Dolores, concordou que podia ser isso, e resolveu escrever. Escreveu com efeito, dizendo que por negócios urgentes não podia ir logo; mas que desejava saber tudo o que havia, não só a respeito da moléstia de Cirila, como dos negócios da fazenda. A carta era um modelo de hipocrisia. Foram com ela uns presentes para a mulher.
Não veio resposta. O tio João, indignado, não lhe respondeu nada. Cirila estava deveras doente, e a doença não era grave, nem foi longa; nada soube da carta, na ocasião; mas, quando ela se restabeleceu o tio disse-lhe tudo, ao dar-lhe os presentes que Eusébio lhe mandara.
— Não contes mais com teu marido, concluiu ele; é um pelintra, um sem-vergonha...
— Oh! tio João! repreendeu Cirila.
— Você ainda toma as dores por ele?
— Isto não é tomar as dores...
— Você é uma tola! bradou o tio João.
Cirila não disse que não; também não disse que sim; não disse nada. Olhou para o ar, e foi dar umas ordens da cozinha. Para ser exato e minucioso, é preciso dizer que, durante o trajeto, Cirila pensou no marido; na cozinha, porém, só pensou na cozinheira. As ordens que deu saíram-lhe da boca, sem alteração de voz; e, lendo daí a pouco a carta do marido ao tio, fê-lo com saudade, é possível, mas sem indignação nem desespero. Há quem afirme que uma certa lágrima lhe caiu dos olhos no papel; mas se deveras caiu, não foi mais de uma; em todo caso, não chegou a apagar nenhuma letra, porque caiu na margem, e Eusébio escrevia com margens grandes todas as suas cartas...
CAPÍTULO IV
Dolores acabou. O que é que não acaba? Acabou Dolores poucos meses depois da carta de Eusébio à mulher, não morrendo, mas fugindo para Buenos Aires com um patrício. Eusébio padeceu muito, e resolveu matar os dois, — ou, pelo menos, arrebatar a amante ao rival. Um incidente obstou a esse desastre.
Eusébio vinha do escritório da companhia de paquetes, onde fora tratar da passagem, quando sucedeu um desastre na Rua do Rosário perto do Beco das Cancelas: — um carro foi de encontro a uma carroça, e quebrou-a. Eusébio, apesar das preocupações de outra espécie, não pôde conter o movimento que tinha sempre em tais ocasiões para ir saber o que era, a extensão do desastre, a culpa do cocheiro, para chamar a polícia, etc. Correu ao lugar; achou dentro do carro uma senhora, moça e bonita. Ajudou-a a sair, levou-a para uma casa, e não a deixou sem lhe prestar outros pequenos serviços; finalmente, deu-se como testemunha nas indagações policiais. Este último obséquio foi já um pouco interesseiro; a senhora deixara-lhe n’alma uma deliciosa impressão. Soube que era viúva, fez-se encontradiço, e amaram-se. Quando ele confessou que era casado, D. Jesuína, que este era o nome dela, não pôde reter um dilúvio de lágrimas... Mas amavam-se, e amaram-se. A paixão durou um ano e mais, e não acabou por culpa dela, mas dele, cuja violência não raras vezes trazia atrás de si o fastio. D. Jesuína chorou muito, arrependeu-se; mas o fastio de Eusébio era completo.
Esquecidas as duas, aliás as três damas, porque é preciso contar a do circo, parecia que Eusébio ia voltar à fazenda e restituir-se à família. Não pensou em tal coisa. A corte seduzia-o; a vida solta entrara-lhe no sangue. Correspondia-se com a mulher e com o tio, mandava-lhes presentinhos e lembranças, chegara mesmo a anunciar que iria para casa daí a uma semana ou duas, pelo S. João, pela Glória, mas ia-se deixando ficar. Enfim, um dia, ao mês de dezembro, chegou a preparar-se deveras, embora lhe custasse muito, mas um namoro novo o dissuadiu, e ele ficou outra vez.
Eusébio freqüentava assiduamente os teatros, era doido por francesas e italianas, fazia verdadeiros desatinos, mas como era também feliz, os desatinos ficavam largamente compensados. As paixões eram enérgicas e infrenes; ele não podia resistir-lhes, não chegava mesmo a tentá-lo.
Cirila foi-se acostumando a viver separada. Afinal convenceu-se de que entre um e outro o destino ou a natureza cavara um abismo, e deixou-se estar na fazenda, com o tio João. O tio João concordava com a sobrinha.
— Tem razão, dizia ele; vocês não nasceram um para o outro. São dois gênios contrários. Veja o que são às vezes os casamentos. Mas eu também tenho culpa, porque aprovei tudo.
— Ninguém podia adivinhar, tio João.
— Isso é verdade. E você ainda tem esperanças?
— De quê?
— De que ele volte?
— Nenhuma.
E, de fato, não esperava nada. Mas escrevia-lhe sempre, — brandamente afetuosa, sem lágrimas, nem queixumes, nem pedido para voltar; não havia sequer saudades, dessas saudades de fórmula, nada. E era isto justamente o que quadrava ao espírito de Eusébio; eram essas cartas sem instância, que o não perseguiam nem exortavam, nem acusavam, como as do tio João; e era por isso que ele mantinha constante e regular a correspondência com a mulher.
Um dia, — passados cinco anos, — Cirila veio à corte, com o tio; esteve aqui cinco ou seis dias e voltou para a roça, sem procurar o marido. Este soube do caso, disseram-lhe que ela estava em certo hotel, correu para lá, mas era tarde. Cirila partira no trem da manhã. Eusébio escreveu-lhe no dia seguinte, chamando-lhe ingrata e esquecida; Cirila desculpou-se em dizer que tivera necessidade urgente de voltar, e não se falou mais nisso.
Durante esse tempo a vida de Eusébio continuara no mesmo diapasão. Os seus amores multiplicavam-se, e eram sempre mulheres tão impetuosas e ardentes, como ele. Uma delas, leoa ciumenta, duas ou três vezes lutara com outras, e até o feriu uma vez, deitando-lhe à cara uma tesoura. Chamava-se Sofia, e era rio-grandense. Tão depressa viu o sangue rebentar do queixo de Eusébio (a tesoura apanhara de leve essa parte do rosto) Sofia caiu sem sentidos. Eusébio esqueceu-se de si mesmo, para correr a ela. Voltando a si, ela pediu-lhe perdão, rojou-se-lhe aos pés, e foi curá-lo com uma dedicação de mãe. As cenas de ciúmes reproduziram-se assim, violentas, por parte de ambos.
Rita foi outra paixão de igual gênero, com iguais episódios, e não foi a última. Outras vieram, com outros nomes. Uma dessas deu lugar a um ato de delicadeza, realmente inesperado da parte de um homem como aquele. Era uma linda mineira, de nome Rosária, que ele encontrou no Passeio Público, um sábado, à noite.
— Cirila! exclamou ele.
Com efeito, Rosária era a cara de Cirila, a mesma figura, os mesmos ombros; a diferença única era que a mulher dele tinha naturalmente os modos acanhados e modestos, ao passo que Rosária adquirira outras maneiras soltas. Eusébio não tardou em reconhecer isso mesmo. A paixão que esta mulher lhe inspirou foi grande; mas não menor foi o esforço que ele empregou para esquecê-la. A semelhança com a mulher constituía para ele um abismo. Nem queria ao pé de si esse fiel traslado, que seria ao mesmo tempo um remorso, nem também desejava fitar aqueles costumes livres, que lhe conspurcavam a imagem da mulher. Era assim que ele pensava, quando a via; ausente, voltava a paixão. Que era preciso para vencê-la, senão outra? Uma Clarinha consolou de Rosária, uma Luísa de Clarinha, uma Romana de Luísa, etc., etc.
Não iam passando só as aventuras, mas os anos também, os anos que não perdoam nada. O coração de Eusébio tinha-se fartado de amor; a vida oferecera-lhe a taça cheia, e ele embriagara-se depressa. Estava cansado, e tinham passado oito anos. Pensou em voltar para casa, mas como? A vergonha dominou-o. Escreveu uma carta à mulher, pedindo-lhe perdão de tudo, mas rasgou-a logo, e ficou. O fastio veio sentar-se ao pé dele; a solidão acabrunhou-o. Cada carta de Cirila trazia-lhe o aroma da roça, a saudade de casa, a vida quieta ao lado da esposa constante e meiga, e ele tinha ímpetos de meter-se na estrada de ferro; mas a vergonha...
No mês de outubro de 1879, recebeu uma carta do tio João. Era a primeira depois de algum tempo; receou alguma notícia má, abriu-a, e preparou-se logo para seguir. Com efeito, Cirila estava doente, muito doente. No dia seguinte partiu. Ao ver, à distância, a fazenda, a casa, a capelinha, estremeceu e sentiu alguma coisa melhor, menos desatinado do que os anos perdidos. Entrou em casa trôpego. Cirila estava dormindo quando ele chegou, e, apesar dos pedidos do tio João, Eusébio foi ao quarto, pé ante pé, e contemplou-a. Saiu logo, escondendo os olhos; o tio João apertou-o nos braços, e contou-lhe tudo. Cirila adoecera de uma febre perniciosa, e o médico disse que o estado era gravíssimo, e a morte muito provável; felizmente, naquele dia de manhã, a febre cedera.
Cirila restabeleceu-se em poucos dias. Eusébio, durante os primeiros, consentiu em não ver a mulher, para lhe não produzir nenhum abalo; mas já sabemos que Cirila tinha os abalos insignificantes. Estendeu-lhe a mão, quando ele lhe apareceu, como se ele tivesse saído dali na semana anterior; tal qual se despedira antes, quando ele foi para a guerra.
— Agora é de vez? perguntou o tio João ao sobrinho.
— Juro que é de vez.
E cumpriu. Não se pense que ficou constrangido, ou com o ar enfadado de um grande estróina que acabou. Nada; ficou amigo da mulher, meigo, brando, dado ao amor quieto, sem explosões, sem, excessos qual o de Cirila. Quem os via podia crer que eram as duas almas mais homogêneas do universo; pareciam ter nascido um para o outro.
O tio João, homem rude e filósofo, ao vê-los agora tão unidos, confirmou dentro de si mesmo a observação que fizera uma vez, mas modificando-a, por este modo: — Não eram as naturezas que eram opostas, as datas é que se não ajustavam; o marido de Cirila é este Eusébio dos quarenta, não o outro. Enquanto quisermos combinar as datas contrárias, perdemos o tempo; mas o tempo andou e combinou tudo.
- Machado de Assis, 'Troca de datas'/Conto Avulso. Obra Completa, Machado de Assis. vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Publicado originalmente em A Estação, de 31/5 a 30/6/1883).
.
Mais sobre o autor:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Gostou? Deixe seu comentário.