Mary Cassat, The Blue Room, 1878. |
Se tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe de todos os filtros da poesia.
O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um ato criador.
— Quem buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
— Foi Puck.
— Mas Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
— Subiu na cadeira.
— Você viu Puck subir?
— Vi, ué.
— E deixou?
— Eu disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
— E que foi que Puck lhe respondeu?
— Que tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
— Mas você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca lambuzada.
— É, eu também comi um, mas foi Puck quem deu.
Horas depois:
— Você se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um velocípede.
— Onde está?
— Espere, vem amanhã.
— Por que amanhã nunca é hoje?
E ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.
Contudo, uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato estranho:
— Quando o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha comido a máquina de escrever…
Ama as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.
— Me dá esse lápis pra mim?
— Não posso.
— Me empresta?
— Não posso, preciso dele.
— Ah, me empresta…
— Está bem, empresto.
— Agora ele é meu?
— Seu, não. Emprestado.
— Eu queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
— Está bem, pode ficar com ele.
— É meu? Oba!
E joga-o fora, imediatamente.
Não lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica (se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no cronista: upa, upa, cavalinho alazão!
— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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