Aristarkh Lentulov - 1922. |
O trrrim da campainha penetrou no sono, e acordei tendo à minha frente um motorista uniformizado, que dizia: “O dr. João está lá embaixo, à sua espera”. “Oh, o João é extraordinário, mas praque ele foi se incomodar”, e logo me senti vestido e diante de João, que tinha o seu melhor sorriso. “Vim buscá-lo porque o senhor é um preguiçoso, e está perdendo um belo espetáculo cívico.” O auto rodou, e passamos pela 1ª seção da 5ª zona eleitoral, que funcionava na praia. As moças votavam de biquíni, os rapazes de short, e cada um ganhava um sorvetinho italiano, ao assinar o livro de presença, que não era um livro, era uma grande barraca de cores festivas. De quando em quando, a mesa interrompia os trabalhos, para jogar peteca ou dar um mergulho.
Passamos depois por um cinema, onde funcionava outra seção. “Aqui votam os mais discretos, aqueles que levam ao extremo o sigilo do voto”, explicou-me João; e pressenti, no escuro, um movimento de mãos que recebiam e passavam cédulas, e vozes murmuradas, que eram as de chamada de eleitores, enquanto Gina Lollobrigida, na tela, colhia morangos do bosque e namorava o carabineiro.[1]
Saímos, e continuamos a apreciar o povo soberano. Havia uma seção no alto do Pão de Açúcar, e para inspecioná-la passamos a um helicóptero pousado no local do antigo Pavilhão Mourisco. Outra, nas matas da Tijuca. Passarinhos traziam no bico delicado o material da eleição, e, pelos caminhos perfumados de resinas e corolas silvestres, pares enlaçados os perseguiam aos gritinhos e risadinhas, como no canto IX dos Lusíadas. Quando um colibri se deixava pegar, as cédulas que ele transportava eram todas do candidato preferido pelo casal, e o casal preferia sempre os melhores nomes; mas era dificílimo escolher, porque todos os nomes eram ótimos. João explicou-me que os canalhas se haviam regenerado ou mudado para países distantes. Quanto aos mentirosos, pensavam mentir ainda, não reparando que uma transformação interior só lhes permitia falar verdade.
“E aquela aglomeração maior, ali embaixo?” “É a seção do Banco do Brasil, não tinha reparado?”, respondeu-me João. Os eleitores brandiam cédulas do Tesouro, e iam depositá-las num guichê com a tabuleta “Recebedor”. O sempre bem informado João esclareceu que peculatários e estelionatários, aproveitando a ocasião, exerciam o direito de voto e restituíam o roubado; em seguida, recolhiam-se espontaneamente à cadeia, e, embora perdoados, teimavam em permanecer lá dentro, para purgação de suas faltas.
“Vou lhe proporcionar um prazer especial”, continuou João; “voemos sobre a Academia de Letras.” O poeta Adelmar Tavares votava em verso alexandrino, que era logo declamado em coro pelos amigos: “Hamilton, senador, como a experiência manda, e, para vereador, Floresta de Miranda”. Manuel Bandeira observou que, lidos como hexassílabos, os versos ganhavam em ritmo e vivacidade. Alguns acadêmicos pediam cédulas de dom Pedro II, mas um mesário lhes explicava que esse de há muito já era um eleito. Olegário Mariano chorava de emoção. E, aproveitando o ensejo, a Academia deliberava criar poltronas extranumerárias, que eram preenchidas ali no sufragante, com a participação de acadêmicos e adventícios, e foram eleitas quarenta mulheres e ninguém mais se entendeu daí por diante, e a eleição terminou no bar Vilarino, entre uísques.
Faltava-nos ver umas quinhentas seções, e João, sempre amável e eficiente, proporcionava-nos uma lancha, para espiar as eleições marítimas e submarinas; depois, andávamos a esmo pelas ruas, curiosos de ver onde votavam Cacilda Becker, Villa-Lobos, Zizinho, o general Rondon, Heitor dos Prazeres, Jayme Ovalle, Adalgisa Nery. Víamos, sorríamos, cumprimentávamos, e tudo era melhor; e tomávamos um teco-teco e íamos sobre o Brasil afora, e todo o Brasil votava como lhe parecia, dançando, cantando, confraternizando; e voávamos e voávamos sobre a paz e o amor universais. Há sonhos felizes.
[1]- Referência ao filme Pão, amor e fantasia (1953), do diretor italiano Luigi Comencini (1916-2007), com Gina Lollobrigida e Vittorio De Sica nos papéis principais.
— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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