Tia Zi rezando - José J. Veiga

Zinaida Serebriakova - 1907
Tia Zi rezando

O frio que eu sentia no peito e nos pés deixava-me confuso e apreensivo. Eu sabia que estava deitado, mas não sabia onde. Tanta coisa havia acontecido nas últimas horas, e eu ainda não estava preparado para tomar meu rumo. Só uma coisa eu sabia: eu não podia voltar para casa. Tinha havido um incêndio, eu vi a casa pegar fogo, ouvi os gritos medonhos de Lázio, com certeza preso nas ripas do telhado desabado. Corri para lá, mas quando passei o portão o calor era tão forte que não pude chegar mais perto. Gritei por Lázio, mas só um gemido rascante como ronco de porco sangrado vinha da casa. Rodeei pelos fundos para ver se havia alguma possibilidade de salvá-lo, e vi meu tio Firmino correndo e tossindo e tapando a boca e o nariz com a ponta do cachecol. Chamei-o forte e ele continuou correndo até sumir-se atrás de uma moita de bananeiras. Corri atrás dele, ainda chamando-o, e ouvi um tiro disparado na minha direção. Gritei que não atirasse, que era eu, e ele deu mais um tiro. Ele deve estar louco, pensei, e virei para trás disparado, saltei a cerca de taquara em frente à casa, sem perder tempo em procurar o portão, e notei que alguém corria atrás de mim, ainda atirando. A noite estava escura, o clarão do incêndio tinha ficado para trás. Continuei correndo e saltando buracos, ou as manchas escuras do terreno que eu tomava por buracos. Ouvi um último tiro, um beliscão quente na orelha, e caí de bruços.
Agora aquele frio no corpo e o medo de descobrir que estava em alguma situação sem remédio. Fiquei quieto por um instante, para me certificar de que estava sozinho, pois seria desesperador abrir os olhos e ver-me cercado por um grupo de inimigos mal-encarados. Primeiro tomei conhecimento dos grilos tinindo em volta de mim, e tiniam tão alto que tive vontade de gritar para ver se os silenciava. Uma coisa é a gente debruçar-se à noite no parapeito de uma ponte, não longe das luzes da cidade, e escutar os grilos crilando embaixo; mas estar no nível deles, em lugar que não se sabe que ponto ocupa no mapa, e sem saber o que é que vai acontecer no minuto seguinte, é coisa bem diferente. Só não gritei porque tive medo das consequências. Apertei o rosto no chão com força e descobri que estava chorando, não alto, mas baixinho, como criança doente.
Não sei quanto tempo estive nessa posição, mas quando pude novamente assuntar em volta ouvi um cachorro latindo longe, os latidos vinham amaciados pela distância. Contra o que estaria ele protestando? Quem lhe faria justiça neste mundo escuro? Agradeci àquele cachorro desconhecido por estar vivo naquele momento, e voltei a pensar em mim mesmo, talvez por alguma secreta associação de ideias.
Firmei-me nas mãos para ver se conseguia levantar o corpo, pelo menos o tronco, e notei que estava deitado sobre lama. A lama, que imaginei preta e lodosa, espirrou fria entre os meus dedos. Limpei o rosto no ombro, de um lado e do outro, e senti os grãos de terra riscando-me a pele. A orelha ainda doía uma dor fina, mas não a palpei, com medo de não encontrá-la no lugar e também de contaminar o ferimento.
Levantei-me com dificuldade, primeiro ajoelhando na lama barrenta, depois erguendo-me nas pernas, o que fiz em várias tentativas porque o chão embaixo escorregava, devia haver uma inclinação no terreno e não encontrei nada perto para segurar, umas canas de capim que agarrei arrebentaram-se em minha mão. Eu não sabia para que lado caminhar, tudo parecia dar no mesmo, resolvi seguir no rumo de onde tinha vindo o latido do cachorro agora calado, com certeza coçando pulga ou dormindo em alguma cozinha de terra batida. Mas supondo que eu chegasse a esse rancho isolado, de onde não vinha mais nenhuma luz, que iria eu dizer ao morador? Não obstante, continuei caminhando no escuro.
Eu não podia entender a hostilidade de meu tio, sabendo embora que ele não era de rir à toa para mim. Por que estaria ele tão raivoso? Que estaria ele fazendo na casa de Lázio àquela hora da noite? E o incêndio? Era certo que ele não gostava de Lázio, estava sempre criticando-o, ou mostrando má vontade com ele, como se não bastasse ao pobre homem o fardo de sua manqueira; mas tocar fogo na casa sabendo que ele não poderia correr, era uma maldade muito grande, mesmo para meu tio Firmino.
Veio-me uma aflição repentina de ir para casa discutir o assunto com tia Zi. Embora reservada e comedida no falar, ela devia ter alguma coisa a dizer, e manejando-a como aprendi eu poderia tomar uma frase aqui, uma palavra ali e assim ter alguma ideia do que estava se passando com meu tio. Lembrei-me que alguns dias antes, estando eu deitado e fingindo dormir, eu os ouvi discutindo no quarto, mas falavam baixo e a porta estava fechada. Parece que tia Zi disse que era cedo ainda para contarem a verdade, tio Firmino falou em idade para malcriação e idade não sei para mais o quê. Eu sabia que o assunto era comigo mas não pude ouvir mais, tia Zi suspirou, tio Firmino deu corda no relógio com jeito de quem está com raiva, apagaram a luz e as correias da cama rangeram. No dia seguinte eu provoquei minha tia de todo jeito, volta e meia eu falava em idade, mas a julgar pelo alheamento que ela manteve podia-se jurar que ela não estava escondendo nada de mim.
Havia uma porção de coisas que eu não entendia, por mais que as revirasse na cabeça. A reviravolta de meu tio na minha amizade com Lázio era uma delas. Quando eu era menor, e Lázio sofria de fraqueza do juízo, e passava o dia resmungando sozinho, ou brigando com uns e com outros, e só era calmo e alegre comigo, tio Firmino nunca censurou minha amizade com Lázio; mas quando Lázio voltou da temporada que passou fora e não quis mais brigar com ninguém, até conversava concatenado, e montou a oficina de latoeiro no largo numa casa que era de meu tio, e eu passava as tardes conversando com ele e ajudando-o a polir os bules e pichorras que ele fazia para vender aos roceiros, aí tio Firmino deu para censurar, jogar indiretas e por fim proibir que eu passasse tanto tempo com Lázio. Com o eu gostava de Lázio e conversava com ele com mais desembaraço do que com meu tio e até minha tia, nem pensei em acatar a proibição. Se meu tio estava em casa eu pegava um livro ou a lousa para fingir que ia estudar, ou pegava a vassoura e o carrinho para dizer que ia limpar o quintal; mas logo que desconfiava que meu tio tinha saído — ele não era homem de ficar muito tempo em casa — eu disfarçava, apanhava o boné e me escapulia. Nisso eu contava com a cumplicidade pelo menos passiva de minha tia. Tenho certeza que ela percebia tudo, mas nunca disse uma palavra de advertência a mim nem de denúncia a meu tio. Ela era fraca de vontade, mas enredeira não era. Uma vez, quando eu ia saindo quase correndo para a oficina de Lázio, nem tinha ainda posto o boné, estava com ele diante dos olhos, esbarrei em tio Firmino que vinha entrando inesperado. Ele segurou-me pelos braços, sacudiu-me e disse: — Já vai para ajudância? É só eu virar as costas, hein? Fiquei tão assustado que não me lembrei de nada para dizer.
Mas felizmente tia Zi vinha atrás e salvou-me dizendo que eu ia comprar um carretel de linha para ela; e para evitar qualquer confusão de minha parte, acrescentou como se fosse verdade: — Não esqueça: é número 40. Diz a Seu Zeca que eu pago depois.
Tio Firmino deu-me o dinheiro de má vontade, censurou tia Zi por comprar fiado e gritou para mim: — Um pé lá e outro cá, hein? Vou ficar esperando o senhor. Outra coisa difícil de calcular eram as variações de meu tio.
Eu nunca sabia quando ele ia ser bom para mim ou ia me bater. Ele era tão esquisito comigo que eu desisti de entendê-lo, aceitava seus agrados repentinos com desconfiança e procurava ficar longe dele o mais que podia. Tia Zi disse que eu não devia fugir dele nem pensar nele com raiva, mas ser paciente com ele porque ele tinha uma vida muito atribulada. Mas como poderia eu descansar perto de tio Firmino, se pelo menor motivo ele mudava de gênio e gritava comigo? Até hoje não sei por que ele avançou para me bater, brigou com tia Zi quando ela não deixou, esbandalhou a cadeira no chão e saiu sem acabar de jantar só porque tia Zi disse que eu parecia com ele. Quando ela disse isso numa conversa à toa ele soltou o garfo no prato, pôs as duas mãos na mesa e perguntou, já com o nariz arreganhado: — Com o foi que você disse? Que ele parece comigo? Tia Zi ficou tão passada que até perdeu a fala, eu vi o pescoço dela inchar e a boca amolecer. E quando ela quis se desculpar, apenas confirmou o que havia dito: — Então não parece, Firmino? Não é só eu que acho; todo mundo acha.
— É? Pois eu vou ensinar esse maroto a parecer comigo — gritou ele, levantando e já esticando a mão para me agarrar.
No dia seguinte ele veio com um brinquedo que sabia que eu queria, um daqueles cineminhas que a gente enfia um cartão por baixo de um vidro cheio de riscos e vê uma porção de figuras se mexendo. Aceitei o presente mas não achei jeito de sorrir quando agradeci.
Eu gostava de conversar com Lázio porque ele contava histórias de meu pai, disse que trabalhou para ele muito tempo. Perguntei quando foi, porque não me lembrava, ele disse que foi quando eu estava ainda no calcanhar de meu pai, querendo dizer que eu ainda não era nascido. Perguntei por que ele tinha deixado de trabalhar para meu pai, ele suspirou e respondeu: — Enredo. Muito enredo.
Eu quis saber que enredo, e de quem, mas do jeito que ele pegou a bater uma chapa de folha na banca eu vi que ele não queria falar mais no assunto. Depois, quando eu estava catando feijão com tia Zi, e ela estava muito alegre e conversadeira, eu puxei a conversa para esse assunto de Lázio com meu pai. Ela me olhou muito assustada, apurou o ouvido para ver se tio Firmino não vinha chegando, e disse em voz baixa: — Pelo amor de Deus, não deixe seu tio saber que você conversou esse assunto com Lázio.
Daí por diante ela ficou pensativa e triste e não quis mais conversar, e eu compreendi que seria inútil querer saber mais.
Com essas coisas a vida estava ficando muito complicada para mim. Eu sabia que devia ser agradecido a meus tios pelo que eles faziam por mim, criavam-me como filho desde pequeno e eu não queria ser ingrato nem dar desgosto; mas era difícil saber o que devia fazer, quando pensava que ia agradar desagradava.
Uma vez Lázio pediu-me para levar um amarrilho de bules e chocolateiras para a venda de Seu Bailão, era um manojo enorme e eu não queria ir pela rua com aquela lataria sacudindo e batendo. Eu disse que levava mas acabei não levando, na esperança de que ele mesmo levasse ou arranjasse outra pessoa. Quando nos encontramos depois disso ele estava muito zangado, começou a me criticar e maltratar. Eu fui ficando envergonhado, da vergonha passei à raiva e não tendo razão respondi bruto. Ele disse que eu era imprestável, que de amizade assim ele não precisava, e eu saí pela porta afora.
Quando tia Zi soube que eu não estava indo à oficina de Lázio ela quis saber por que era. Contei a briga e ela ficou tão mortificada que parecia que era com ela. Depois começou a falar rodeado, como quem quer dizer uma coisa e não acha jeito, falava e repisava, e de tudo o que ela disse eu só pude entender foi que eu não devia brigar com Lázio de jeito nenhum, mesmo que ele zangasse comigo. Queria que eu fosse ver Lázio e pedir desculpa. Achei isso muito esquisito, porque tio Firmino era o primeiro a implicar com Lázio, e do jeito que ele falava na mesa quase todo dia parecia que ele não queria que eu fosse amigo de Lázio. Foi justamente por implicância com Lázio, e acho que também para eu não ir tanto à oficina, que meu tio ficou de picuinha com ele até ele se mudar da casa do largo. Perguntei a tia Zi por que ela achava tão importante eu não brigar com Lázio e ela respondeu que um dia eu ia saber.
— Se eu vou saber um dia, por que a senhora não me diz logo? — perguntei.
— Por enquanto ainda é cedo. Quando chegar o dia espero não estar mais neste mundo — ela respondeu.
A vida para mim era rodeada de complicações.
Lázio não gostava de falar em meu tio Firmino. Toda vez que eu contava alguma coisa em que entrava o nome de meu tio, ele ficava calado ou falava em outra coisa, isso era sempre. Mas um dia ele disse abertamente que se meu tio algum dia falasse alguma coisa contra a memória de minha mãe eu não devia acreditar, era tudo mentira. Foi só o que ele disse, por mais que eu insistisse por uma explicação. E isso devia ser importante também, porque ele disse que há muito tempo queria me avisar, e tinha medo que morresse antes.
Depois que Lázio se mudou para o rancho eu passava dias sem vê-lo, o rancho era longe e eu não podia estar arranjando desculpa para passar tanto tempo fora de casa todo dia, principalmente quando meu tio parecia estar me vigiando mais do que nunca. Só quando eu sabia que ele tinha saído para demorar é que eu dava uma escapulida ligeira. Tia Zi estava vendo tudo, mas eu sabia que ela não ia contar.
Quando eu soube que os dois tinham brigado no mercado, e que tio Firmino tinha dado uma cabrestada em Lázio, mesmo sabendo que ele era fraco e doente, nem podia se firmar direito numa das pernas, e que Lázio apenas disse que um dia perdia a cabeça e contava tudo — o que aumentou ainda mais a fúria de meu tio, sendo preciso várias pessoas o agarrarem para ele não machucar Lázio — fiquei aflito para ir ao rancho conversar com Lázio. Mas com meu tio em casa, resmungando e batendo com as coisas, quem disse que eu tinha coragem? Só depois de escurecer, quando meu tio disse que ia jogar sete-e-meio para se distrair, foi que eu pude sair também. Tia Zi queria que eu deixasse para o outro dia, mas eu disse que não podia esperar. Ela então recomendou que eu tivesse muito cuidado e não demorasse.
Agora ela devia estar diante do oratório rezando, se não estivesse sendo apertada por tio Firmino para dar conta de mim, embora ele já soubesse muito bem. Eu queria estar lá para defendê-la — afinal ela sempre me defendeu, embora escondido —, mas por enquanto ela vai ter que contar apenas com suas orações. vou ter que passar algum tempo fora de casa até ver em que pé ficaram as coisas. Até lá eu já cresci e então posso olhar tio Firmino de frente, sem medo nem desorientação, e conversar qualquer assunto sem baixar os olhos nem tremer a voz.

— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". [seleção de J. Aderaldo Castelo]. São Paulo: Global Editora, 2000.

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