© José Medeiros |
A descoberta recente de um parasita específico dos automóveis não deveria, a rigor, surpreender. Qualquer um que considere a extrema capacidade de adaptação que a vida manifesta em nosso planeta só poderá achar natural a existência de um líquen altamente especializado, cujo substrato único e obrigatório é constituído pelas estruturas externas e internas dos veículos. Impõe-se, obviamente, a comparação com outros conhecidos parasitas característicos das habitações humanas, das roupas e dos navios.
Sua descoberta, ou melhor, seu surgimento (já que é impensável que o líquen existisse sem ser notado) se localiza com notável precisão nos anos 1947-8. Deve provavelmente estar relacionado com o advento dos esmaltes gliceroftálicos, que substituíram os esmaltes à base de nitrocelulose no acabamento das carrocerias — esmaltes que, impropriamente chamados de “sintéticos”, não por acaso contêm radicais graxos e resíduos de glicerol.
O líquen dos automóveis (Cladonia rapida) difere de outros líquenes principalmente por sua enorme capacidade de crescimento e reprodução. Enquanto os conhecidos líquenes crostosos das rochas apresentam velocidades de crescimento que raramente superam o milímetro-ano, a Cladonia rapida estende suas manchas características, com vários centímetros de diâmetro, num intervalo de poucos meses, especialmente nos veículos expostos por muito tempo à ação da chuva, mantidos em locais úmidos e mal iluminados. As manchas são cinza-escuro, rugosas, com espessura de um a três milímetros, e nelas é sempre bem visível, no centro, o núcleo originário da infecção. É muito raro que as manchas se apresentem isoladas: a menos que sejam submetidas a tratamentos drásticos, elas ocupam toda a carroceria em poucas semanas, com um mecanismo de disseminação a distância que ainda não foi explicado. Notou-se, porém, que a infecção é mais intensa e pujante nas superfícies tendencialmente horizontais (teto, capô, pára-lamas), nas quais as manchas arredondadas se apresentam quase sempre distribuídas segundo esquemas curiosamente regulares. Isso fez pensar em um mecanismo de projeção dos esporos, cujo implante seria favorecido pela posição horizontal do substrato.
A infecção não se limita às partes esmaltadas. Às vezes também surgem manchas (atípicas) em partes menos expostas: no forro, no interior do porta-malas, no piso e nos estofados. Quando o líquen atinge determinados órgãos internos, observam-se freqüentemente vários distúrbios relativos à locomoção e ao funcionamento geral do veículo: desgaste precoce dos amortecedores (observação de R. J. Coney, proprietário, Baltimore); obstrução dos tubos no óleo de freio (várias oficinas de reparação na França e na Áustria); grimpagem aguda e simultânea dos quatro cilindros (Voglino, proprietário de oficina mecânica, Turim); além disso, dificuldade de partida, freada intermitente, arranque fraco, problemas de embreagem e outras irregularidades que freqüentemente são atribuídas por mecânicos inexperientes a outras causas, com resultados catastróficos. Num dos casos — por enquanto isolado, mas preocupante —, o proprietário de um veículo foi infectado, tendo de recorrer a tratamento médico por uma infecção difusa e tenaz de Cladonia no dorso das mãos e no abdome.
A partir de observações feitas em várias oficinas mecânicas e estacionamentos ao ar livre, pode-se concluir que a propagação do líquen ocorre de proche en proche, sendo favorecida pela superlotação dos estacionamentos. O caso de automóveis infectados a distância, pela ação do vento ou por um “portador” humano, ainda não foi comprovado, mas parece bastante improvável.
Por ocasião do recente salão do automóvel de Tânger, foi discutido (relator Al Maqrizi) o problema da imunidade, tema que se demonstrou rico de desdobramentos imprevisíveis e apaixonantes. Segundo o relator, nenhum carro pode ser considerado imune: todavia, no que diz respeito à infecção por líquen, existem dois tipos diferentes de receptividade, os quais se manifestam com sintomatologias nitidamente distintas; manchas arredondadas, tendentes ao cinza-escuro, muito aderentes no caso dos automachos; manchas alongadas no sentido do eixo da carroceria, escuras até o castanho-claro, pouco aderentes e de pronunciado odor almiscarado no caso das autofêmeas.
Queremos aqui aludir à diferenciação sexual rudimentar, conhecida há décadas, mas até hoje despercebida pela ciência oficial, segundo a qual, por exemplo, nos parques da General Motors fala-se correntemente de “he-cars” e de “she-cars”, e em Turim as formas “o Mil e Cem” e “a Seiscentos” se impuseram contra qualquer lógica aparente. Na realidade, segundo pesquisas do próprio Maqrizi, na linha de montagem da Fiat 1100 os indivíduos “he” predominam nitidamente, enquanto entre as Fiat 600 são mais numerosas as formas “she”. Casos como este último são, no entanto, excepcionais: normalmente as formas “he” e “she” são encontradas nas linhas de montagem sem nenhuma regularidade aparente, com exceção da variável estatística, segundo a qual a incidência de cada forma gira em torno de 50%. Tomando-se um mesmo modelo, os “he-cars” têm melhor arranque, são duros de molejo, delicados na carroceria, mais propensos a defeitos no motor e na transmissão; as “she-cars”, ao contrário, apresentam menos consumo de combustível e de lubrificante e têm melhor desempenho na estrada, mas têm um sistema elétrico vulnerável e são muito sensíveis a variações de temperatura e de pressão. Todavia se trata de diferenças sutis, somente perceptíveis aos olhos dos especialistas.
Ora, a descoberta da Cladonia rapida permitiu a aplicação de uma simples técnica de revelação, rápida e segura, que pode ser confiada inclusive ao pessoal não-especializado e que, em poucos anos, permitiu a coleta de abundante material de extremo interesse, tanto teórico quanto prático.
Experiências longas e sérias foram empreendidas na escola de Paris, que infectou com líquen um grande número de carros de diversas marcas. Os estudos evidenciaram que, na escolha que antecede a aquisição, o sexo do automóvel exerce uma função importante: os “he-cars” constituem 62% dos carros adquiridos por mulheres, e 70% deles são comprados por homens com tendências homossexuais. Entretanto a escolha dos homens normais é menos característica: eles adquirem “she-cars” numa proporção de 52,5%. A escolha e a sensibilidade ao sexo do carro são geralmente inconscientes, mas nem sempre: pelo menos um quinto das pessoas entrevistadas por Tarnowsky demonstrou que sabia distinguir entre um “he” e uma “she” com mais segurança do que distinguia entre um gato e uma gata.
Resta finalmente recordar um curioso estudo inglês sobre o fenômeno da colisão, também conduzido segundo a técnica do líquen. A colisão, que estatisticamente deveria ser homo e heterossexual na mesma medida, mostrou-se, ao contrário, heterossexual em 56% dos casos (média mundial). Essa média varia sensivelmente de país a país: 55% nos Estados Unidos, 57% na Itália e na França, 52% no Reino Unido e na Holanda; cai para 49% na Alemanha. É claro, pois, que em pelo menos um caso em cada dez ocorre a superposição de uma rudimentar vontade (ou iniciativa) da máquina sobre a vontade (ou iniciativa) humana — a qual, no entanto, ao guiar através do tráfego urbano, deve de algum modo debilitar-se e deprimir-se. A esse respeito, os autores recordaram muito apropriadamente o clinâmen dos epicuristas.
O conceito, obviamente, não é novo: foi desenvolvido por Samuel Butler numa página precoce e inesquecível de Erewhon, e, mesmo fora da esfera sexual, comparece com significativa freqüência em muitos episódios da crônica cotidiana, só aparentemente banais. Seja permitido a este que escreve citar um caso clínico, fruto de sua observação direta.
O automóvel TO 26****, ano de fabricação 1952, sofreu sérios danos numa batida que aconteceu no cruzamento da avenida Valdocco com a rua Giulio. Foi consertado e mudou várias vezes de dono, até que, em 1963, foi adquirido por T. M., empregado, que percorria quatro vezes por dia a avenida Valdocco entre a loja e a casa. Desconhecendo a anamnese do veículo, o sr. T. M. notou que todas as vezes que se aproximava do cruzamento supracitado, o carro reduzia a marcha sensivelmente e puxava para a direita; todavia não manifestava irregularidades de comportamento em nenhum outro ponto do complexo viário. Mas todo usuário de estradas dotado de espírito de observação pode relatar dezenas de episódios semelhantes.
Trata-se, como se vê, de um assunto fascinante, que despertou vivo interesse em todas as partes do mundo sobre o inquietante problema da convergência em ato entre mundo animado e inanimado. Nesse sentido, há poucos dias Beilstein pôde demonstrar e fotografar vestígios evidentes de tecido nervoso no pedal de embreagem da Opel-Kapitän — tema de que nos ocuparemos mais amplamente em um próximo artigo.
— Primo Levi, no livro "71 contos". tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
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