La Rentrée , de Anita Malfatti, ca. 1927 |
Alguém me fala do apartamento em que você morou em Paris, em uma pequena praça cheia de árvores; outra pessoa esteve em sua casa de Nápoles: eu me calo. Mas, eu conheci seu quarto de solteira. Era pequeno, gracioso e azul; ou é a distância que o azula na minha lembrança? Junto à janela havia uma grande amendoeira antiga; às vezes o vento levava para dentro uma grande folha cor de cobre — gentileza da amendoeira. Que tinha outras: pássaros, quase sempre pardais, às vezes um tico-tico, ou uma rolinha, ou um casal de sanhaços azulados. E no verão, como as cigarras ziniam! Lembro o armário escuro e simples, onde cabiam seus vestidos de solteira, que não eram muitos; e lembro alguns deles, um roxinho singelo, um estampado alegre, de flores, um outro de linho grosso, cor de areia. Havia uma pequena estante; e, entre os livros, o meu primeiro livro, com uma dedicatória tímida. Na parede, uma fotografia, uma imagem de santa, e uma reprodução de Piero della Francesca, não era?
Era simples, seu quarto de menina e de moça; mas tinha uma graça leve e singela, e você o amava. Dali partiu para tantas outras casas e hotéis em outras cidades do mundo, e um dia soube que haviam derrubado sua casa. Contaram-me, achando graça, você chorou quando teve a notícia, chorou como se tivesse perdido pai ou mãe, alguém muito querido. Contaram-me achando graça — e eu não disse nada, mas me comovi.
Nossa amizade se perdeu no acaso das viagens; outros homens sabem muito mais sobre você, viveram sua alegria e seu sofrimento; de mim você terá apenas uma lembrança distante e, espero, boa. Mas, se um dia você se sentisse vazia e sem apoio, e achasse as coisas tão sem sentido, eu imagino que você gostaria que eu reconstruísse no ar, como um presente, um presente para proteger e embalar você, o seu pequeno quarto azul que não existe mais.
Conheci seu quarto de solteira; lembro a cama, o armário, a estante, a cômoda, a mesinha, o abajur e o grande espelho. O grande espelho onde às vezes, ainda mocinha, vinda do banho, você se olhava demoradamente — pensativamente — nua.
Rio, setembro, 1959.
— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.
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Acho linda essa crônica! Gosto de suas crônicas, mas essa é fantástica!
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