Paul Gauguin - tropical conversation - 1887 |
O sol atravessava lentamente o céu. E abaixo dele, bem abaixo, um emir com sua caravana atravessava o deserto. A claridade era envolvente como um sono. Mas de repente, pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura de um homem recortar-se no dorso de uma duna. De um homem e de uma cabra.
Que parasse a caravana, ordenou o emir. Um homem sozinho no deserto é um homem morto.
- Mas não estou sozinho, nobre senhor - respondeu o homem levado à presença do emir.
E este, tendo logo pensado que uma cabra não é companhia suficiente em meio às areias, penitenciou-se no segredo da sua mente. Certamente aquele era um homem santo que vagava em penitência, e tinha a companhia da sua fé.
Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. E, diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água. Em breve, a caravana partia.
O homem apertou as espirais do turbante, puxou uma ponta do pano sobre a boca e, acompanhado pela cabra, recomeçou a andar.
O sol tinha refeito seu percurso muitas vezes e estava do outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase pisoteou o homem que dormia com a cabeça encostada na barriga da cabra. O primeiro cavaleiro puxou as rédeas, saltou na areia. O homem acordou num susto. O tropel parou.
- Um homem sozinho entre as dunas é um homem inútil - disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto. E o convidou para que se juntasse ao bando.
Mas, quando o homem recusou a oferta, acrescentando que certamente era um inútil embora não estivesse sozinho, o chefe dos piratas achou que debochava dele, e mandou que o surrassem. Sem demora e sem ruído, pois cascos não ecoam na areia, o tropel partiu.
Os ferimentos da surra há muito haviam cicatrizado, no dia em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho. E, assim como ele a viu chegar com prazer, também os peregrinos consideraram a presença daquele homem e daquela cabra como um sinal propício, e decidiram acampar ao seu lado no dorso da duna.
Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão. Só quando ela acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fazendo no deserto.
E o sol ainda não havia se posto, e a lua ainda não havia surgido, quando o homem começou a contar.
Havia sido um homem próspero de uma próspera cidade, uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio ao deserto. Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus filhos, tinha sempre grãos na despensa, e a figueira junto à porta da sua casa a cada ano dava frutos. Um dia, chamado pelos negócios, havia partido em longa viagem. E, ao regressar, não mais havia encontrado sua cidade. Só depois de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os minaretes, as casas e a figueira. Toda a sua vida estava debaixo da areia. Mas onde, na areia? E havia começado a procurar.
- É por isso que até hoje anda no deserto? - perguntou o velho chefe da caravana.
Os dentes do homem brilharam à luz da lua que já se havia levantado.
- Ando porque ainda sou morador da minha cidade - respondeu. Inclinou-se, encostou o ouvido na areia, quedou-se atento por alguns minutos. - Há muito os encontrei - disse, erguendo-se.
Sorriu novamente. No ventre daquela duna, debaixo da caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a figueira. Estavam seus filhos e sua mulher. E ele podia ouvi-los a distância. Através da areia que os separava, podia ouvir os gritos dos pregões, as preces dos muezins, o riso da mulher e das crianças que certamente agora haviam crescido.
- Caminho para isso. Para estar sempre acima deles. Para escutar sua vida. - As dunas - acrescentou - vagueiam pelo deserto. E eu vou, acompanhando a minha.
Pouco faltava para a manhã. Ao alvorecer, os peregrinos partiram. Mas o vento tinha ouvido o relato do homem. E a próxima caravana que por ali passou já não o encontrou. A duna soprada grão a grão havia eriçado sua crista, cobrindo o homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes. E abrindo caminho para eles, lentamente, até seu ventre.
— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999
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