Pablo Picasso - 1903 |
Cariocas, meus patrícios, meus amigos, coroai-vos de flores, trazei palmas nas mãos e dançai em torno de mim, com pé alterno, à maneira antiga. Sus, triste gente mal vista e malquista da outra gente brasileira, que não adora a vossa frouxidão, a vossa apatia, a vossa personalidade perdida no meio deste grande e infinito bazar! Sus! Aqui vos trago alguma coisa que repara as lacunas da história, o mau gosto dos homens e o equívoco dos séculos. Eia, amigos meus, patrícios meus, escutai!
Depois de um exórdio destes, é impossível dizer nada que produza efeito; pelo que — e para imitar os pregadores, que depois do exórdio ajoelham-se no púlpito, com cabeça baixa, como a receber a inspiração divina, — inclino-me por alguns instes, até que a impressão passe: direi pois a grande notícia. Ajoelhai-vos também, e pensai em outra coisa.
Pensai nas festas de 15 de novembro na espécie de julgamento egípcio, que toda a imprensa fez nesse dia acerca da República. Houve acordo em reconhecer a aceitação geral das instituições, e a necessidade de esforço para evitar erros cometidos. As festas estiveram brilhantes. Notou-se, é verdade, a ausência do corpo diplomático no palácio do governo. Espíritos desconfiados chegaram a crer em algum acordo prévio; mas esta idéia foi posta de lado, por absurda.
Não importa! Crédulo, quando teima, teima. Não faltou quem citasse o fato da nota coletiva acerca de uns tristes lazaretos, para concluir que não somos amados dos outros homens, e dar assim à ausência coletiva um ar de nota coletiva. Explicação que nada explica, porque se a gente fosse a amar a todas as pessoas a quem tem obrigação de tirar o chapéu, este mundo era vale de amores, em vez de ser um vale de lágrimas.
Não penseis mais nisso. Pensai antes nas festas nacionais dos Estados, posto seja difícil, a respeito de alguns, saber a verdade dos telegramas. Aqui estão dois da Fortaleza, Ceará, datados de 16. Um: “Foi imenso o regozijo pelo aniversário da proclamação da República”. Outro: “O dia 15 de novembro correu frio, no meio da maior indiferença pública”. Vá um homem crer em telegramas! A mim custa-me muito; Bismarck não cria absolutamente, tanto que confessa agora haver alterado a notícia de um, para obrigar à guerra de 1870. Assim o diz um telegrama publicado aqui, sexta-feira; mas é verdade que isto, dito por telegrama, não pode merecer mais fé que o dizer de outros telegramas. O melhor é esperar cartas.
Aqui está uma delias, e com tal notícia que, antes de inspirar piedade, encher-nos-á de orgulho. Não há telegrafices, nem para bem, nem para mal. Refiro-me àquele engenheiro Bacelar e àquele empreiteiro Dionísio, que em Aiuruoca foram presos por um grupo de calabreses, trabalhadores da linha férrea. O pagamento andava atrasado; os calabreses, para haver dinheiro, pegaram dos dois pobres diabos, que iam de viagem, e disseram a um terceiro que, antes de pagos, não lhes dariam liberdade, e dar-lhe-iam a morte, se vissem aparecer força. O companheiro veio aqui ver se há meio de os resgatar. O caso é de meter piedade.
Sobretudo, como disse, é de causar orgulho. Maomé chamou a montanha, e, não querendo ela vir, foi ele ter com ela. Nós chamamos a Calábria, e a Calábria acudiu logo. Vivam as regiões dóceis! É certo que pagamos-lhe a passagem; mas era o menos que pedia a justiça. O ato agora praticado difere sensivelmente dos velhos costumes, porque a Calábria, desta vez, era e é credora; trabalhou e não lhe pagaram. Mas, enfim, o uso de prender gente até que ela lhe pague, com ameaça de morte, é assaz duro. Antes a citação pessoal e a sentença impressa; porque, se o devedor tem certo pejo, faz o diabo para pagar a divida, por um ou por outro modo: se não o tem, que vale a publicidade do caso e do nome? Talvez a publicidade traga vantagens especiais ao condenado: perde os dedos e ficam-lhe os anéis. Napoleão dizia: On est consideré à Paris, à cause de sa voiture, et non à cause de sa vertu. Por que não há de suceder a mesma coisa na Calábria?
Outro assunto que merece particularmente a vossa atenção, é a reunião da intendência, a primeira eleita, a que vem inaugurar o regímen constitucional da cidade. Corresponderá às esperanças públicas? Vamos crer que sim; crer faz bem, crer é honesto. Quando o mal vier, se vier, dir-se-á mal dele. Se vier o bem, como é de esperar, hosanas à intendência. Por ora, boa viagem!
E agora, patrícios meus, cariocas da minha alma, vamos concluir o sermão, cujo exórdio lá ficou acima.
Sabeis que o nosso distrito é a capital interina da União. Já se está trabalhando em medir e preparar a capital definitiva. Eis a disposição constitucional; é o art. 5°, título F: “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura capital federal. — Parágrafo único. Efetuada a mudança da capital, o atual distrito federal passará a constituir um Estado”.
Eis o ponto do sermão. Temos de constituir em breve um Estado. O nome de capital federal, que aliás não é propriamente um nome, mas um qualificativo legal, ir-se-á com a mudança para a capital definitiva. Haveis de procurar um nome. Rio de Janeiro não pode ser, já porque há outro Estado com esse nome, já porque não é verdade; basta de agüentar com um rio que não é rio. Que nome há de ser? A primeira idéia que pode surgir em alguns espíritos distintos, mas preguiçosos, é aplicar ao Estado o uso de algumas ruas, — Estado do Dr. João Mariz, por exemplo, — uso que, na América do Norte, é limitado aos chamados homens-sandwichs, uns sujeitos metidos entre duas tábuas, levando escrita em ambas esta ou outra notícia: “Dr. Dix’s celebrated female powders; guaranted superior to ali others”. Não é bom sistema para intitular Estados.
Também não vades fabricar nomes grandiosos: Nova Londres ou Novíssima York. Prata de casa, prata de casa.
Não me cabe a escolha; sou duas vezes incompetente, por lei e por natureza. E depois, dou para piegas: podia adotar Carioca mesmo, — ou Guanabara, usado pelos poetas da outra geração. Dir-me-eis que é preciso contar com o mundo, que só conhece o antigo Rio de Janeiro e não se acostumará à troca. Isso é convosco, patrícios meus. Nem eu vos anunciei a princípio uma grande descoberta senão para ter o gosto de trazer-vos até aqui, coluna abaixo, ansioso, à espera do segredo, e olhando apenas um fim de semana, um adeus e um ponto final.
- Machado de Assis, "A semana"/Crônica. Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/4/1892 a 11/11/1900.
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