O poema que não foi aprovado - Rubem Braga

Edgar Degas - 1882.

O poema que não foi aprovado 

Antigamente eu tinha aqui na Manchete, ao lado de minha crônica, uma pequena seção chamada A Poesia É Necessária. Ali eu publicava toda semana um poema, quase sempre de autor novo. Depois houve mudança na direção da revista e fui informado de que a poesia não era mais necessária.
Não discuto com a direção. A prova de que a poesia não é necessária é que a revista continua crescendo, vende como pão quente, está cheia de anúncios e rendendo bela erva.
Na verdade aquela seção me fazia viver com eternos remorsos, pois recebia diariamente cartas com poemas e livros de versos de gente do Brasil inteiro (e até de Portugal e Algarve) que queria aparecer em Manchete. Como não podia publicar mais de um poema por semana, eu desgostava a muito mais gente do que agradava. Dez vezes, vinte vezes mais. Além disso, não respondia às cartas dos leitores-poetas, o que naturalmente só fazia aumentar minha sólida fama de sujeito antipático, mal-educado, metido a importante, “meio besta”, etc.
Ah, que todos me perdoem, todos os poetas impublicados e todos os missivistas não respondidos. A eles dedico o pior poema que fiz em minha vida, e foi quando segui para a Itália como correspondente de guerra: “O pobre correspondente não era correspondido.”
É tempo de Natal, sejamos todos amigos: perdoemo-nos as nossas más palavras e nossos maus versos.
Mas os poetas continuam a procurar-me. E desta vez a direção da revista que tenha paciência, vou publicar um poema. Este veio num cartão com o desenho de um sininho badalando.
“Aqui está nosso cartão
Em prova de amizade
Desejando-lhe Boas Festas
Saúde e Felicidade.

Entra ano e sai ano
Trabalhando sem cessar.
São os fiéis Lixeiros
Que vêm vos cumprimentar.
Mais um ano de trabalho
Aqui estão quem vos prestou
Apesar de bem cansados
As vossas ordens estou.
Os vossos Lixeiros
Artur, Emílio e Agenor.”
Fiquei comovido, e dei 50 cruzeiros aos poetas. Foi pouco, é verdade. Mas a caixa estava fraca, nesse dia.
O pior é que o fim do ano está chegando e ainda virão outros poetas: o da tinturaria, o da padaria, o carteiro, etc. Preciso atender a todos esses poetas meus irmãos, e a caixa continua fraca. Além disso, como enfrentar essas Festas com o bar vazio, só com um restinho de Vovó Extra que um amigo me trouxe de Fortaleza? Ah, aqui outrora retumbaram uísques...
Tive uma ideia: telefonar para Henrique Pongetti e Fernando Sabino e propor mandar imprimir uns cartões com versos para nossos leitores. Pensei no Leon Eliachar também, mas se ele entrasse na coisa o público poderia pensar que era piada.
Redigi uns versinhos, sujeitos a críticas e sugestões, e li pelo telefone aos dois colegas. Até que os versinhos não estão maus, embora talvez um pouco baseados na lira de nossos fiéis lixeiros:
Entra ano e sai ano
Escrevendo sem cessar
São os vossos fiéis Cronistas
Que vêm vos cumprimentar
Feliz Natal e Ano Novo!
Se o uísque estiver sobrando
Lembrai-vos destes Cronistas
Que de sede estão penando:
Henrique, Rubem e Fernando.
Para minha grande surpresa os dois colegas repeliram com indignação minha ideia. Disseram que não ficava bem. Argumentei que não é justo que o padeiro ganhe festas e o cronista, afinal de contas um padeiro espiritual, não possa nem pedir. Repeliram-me em nome dos bons princípios, da boa ética — e, desconfio, um pouco também de seus maus fígados.
De qualquer maneira, para fazer a coisa sozinho eu fico sem jeito. Desisto da ideia — embora, naturalmente, eu seja incapaz de fazer uma desfeita se alguém, apesar disso, insistir em mandar uísque para a casa de um cronista pobre sim, mas soberbo, nunca!


Rio, dezembro, 1957.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Saiba mais sobre o autor:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gostou? Deixe seu comentário.