Na rede - Rubem Braga

A rede, de Aldemir Martins
Na rede

Deito-me na rede, olho as nuvens vagabundas. Creio que aquelas que estão paradas lá longe, branquinhas, espichadas como franjas, se chamam cirros; e essas gordas, brancas, que brilham ao sol aqui mais perto se chamam cúmulos. Mas não é preciso saber seus nomes; deixo-me levar pela fantasia de suas esculturas, e vou vagando ao sabor de seus caprichos. Direis que essa ocupação não é construtiva; responderei que estou contemplando o céu de minha Pátria. Sempre é algo de nobre e afinal há momentos em que a gente se cansa de olhar a terra e os homens.
Pego o livro do padre Antônio Vieira e me deleito quando ele conta o amor de Santa Teresa por Jesus Cristo. Que diferença entre o amor divino e esses outros amores, os profanos, em que nos atolamos aqui neste vale de lágrimas!
Ouçamos a santa: “Senhor, que se me dá a mim de mim sem vós? Por que eu sem vós não sou eu: e de mim, que não sou eu, que se me dá a mim?”
A isso Vieira chama “divina implicação”.
Estas palavras Santa Teresa ouviu de Cristo: “Teresa, eu amei a Madalena estando na terra, porém a ti amo-te estando no céu.”
Sobre o que, comenta o padre que isso é uma extrema fineza, pois “as bem-aventuranças são desaforáveis, e não há maior inimigo do amor que a felicidade”. E faz suas comparações sobre os amores de Cristo:
“A Madalena, como tão amante e tão amada, estando na terra, mandava-a Cristo levar ao céu, para que fosse ouvir as músicas dos anjos: e Teresa estando na terra amava tanto e era tão amada que, estando Cristo no céu, deixava as músicas dos anjos para vir conversar com Teresa na terra.”
Mas o sermão é longo, e a mim e ao leitor nos convém que a crônica seja curta. Deixemos o bom Vieira tratar dos amores divinos. Volto à rede, e às nuvens. A mais gordinha se esfiapou um pouco nas bordas e está passando sobre meu telhado, rumo ao norte. Boa viagem, irmã, cuidado com esse vento, vê lá aonde ele te vai levando...
Mas ela passa muito serena.


Rio, julho, 1959.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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