Identidade - Machado de Assis

R. Magritte - the intelligence - 1946

Identidade

Convenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dois indivíduos não parentes é coisa mui rara, — talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas.

Na família as semelhanças são naturais; e isso que fazia pasmar ao bom Montaigne, não traz o menor espanto ao mais soez dos homens. Os Ausos, povo antigo, cujas mulheres eram comuns, tinham um processo sumário para restituir os filhos aos pais: era a semelhança que, ao cabo de três meses, apresentasse o menino com algum dos cidadãos. Vá por conta de Heródoto. A natureza era assim um tabelião muito mais seguro. Mas que entre dois indivíduos de família e casta diferentes (a não serem os Drômios e os Menecmas dos poetas) a igualdade das feições, da estatura, da fala, de tudo, seja tal que se não possam distinguir um do outro, é caso para ser posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro.

***

Era uma vez um faraó, cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias, — mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr. Teve notícia de que existia em certo lugar do Egito um homem tão parecido com ele que era difícil discriminá-los. A princípio ouviu a notícia com indiferença, mas, depois de uma grande melancolia que teve, achaque dos últimos tempos, lembrou-se de deputar três homens que fossem procurar esse milagre e trazê-lo ao paço.

— Dêem-lhe o que pedir; se tiver dívidas, quero que as paguem; se amar alguma mulher, que a traga consigo. O essencial é que esteja cá e depressa, ou eu mando executar os três.

A corte respirou jubilosa. Após vinte anos de governo, era a primeira ameaça de morte que saía da real boca. Toda ela aplaudiu a pena; alguns ousaram propor uma formalidade simbólica, — que, antes de executar os três emissários, se lhes cortassem os pés para significar a pouca diligência empregada em cumprir os recados do faraó. Este, porém, sorriu de um modo mui particular.

Não tardou que os emissários tornassem a Mênfis com o menecma do rei. Era um pobre escriba, por nome Bachtan, sem pais, nem mulher, nem filhos, nem dívidas, nem concubinas. A cidade e a corte ficaram alvoroçadas ao ver entrar o homem, que era a própria figura do faraó. Juntos, só se podiam reconhecer pelos vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade e grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre, que as supria. Eram mais que dois homens parecidos; eram dois exemplares de uma só pessoa; eles mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade. Pha-Nohr aposentou o escriba em uma câmara pegada à sua, dizendo que era para um trabalho de interesse público; e ninguém mais o viu durante dois meses.

No fim desse tempo, Pha-Nohr, que instruíra o escriba em todas as matérias da administração, declarou-lhe uma noite que ia pô-lo no trono do Egito por algum tempo, meses ou anos. Bachtan ficou sem entender nada.

— Não entendes, escriba? O escriba agora sou eu. Tu és faraó. Fica aí com o meu nome, o meu poder e a minha figura. Não descobrirás a ninguém o segredo desta troca. Vou a negócios do Estado.

— Mas, senhor...

— Reinas ou morres.

Antes reinar. Bachtan obedeceu à ordem, mas suplicou ao rei que a demora não fosse muita; faria justiça, mas não tinha gosto ao poder, menos ainda nascera para governar o Egito. Trocaram de aposentos. O escriba rolou durante a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura Cleópatra. De manhã, segundo o ajustado, foi o rei despedido com as vestes do escriba, dando-lhe o escriba, que fazia de faraó, algum dinheiro e muitas pedras preciosas. Dez guardas do paço acompanharam o ex-faraó até os subúrbios de uma cidade distante.

— Viva a vida! exclamou este, apenas perdeu de vista os soldados. Santo nome de Ísis e de Osíris! Viva a vida e a liberdade!

Ninguém, exceto o vento bochorno do Egito, ouviu essas primeiras palavras ditas por ele a todo o universo. O vento foi andando indiferente; mas o leitor, que não é vento, pede explicação delas. Quando menos, supõe que este homem é doido. Tal era também a opinião de alguns doutores; mas, graças ao regímen especialista da terra, outros queriam que o mal dele viesse do estômago, outros do ventre, outros do coração. Que mal? Uma coisa esquisita. Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com vinte e dois anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda a gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dois anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às pessoas, sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas, que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos.

Já sabemos que foi ao sair de uma daquelas crises que ele entregou o Egito ao escriba. A causa, porém, deste ato inexplicável é a mesma da singular troca de gênio. Pha-Nohr persuadira-se de que não podia conhecer o caráter nem o coração dos homens, através da linguagem curial, ataviada naturalmente, e que lhe parecia oblíqua, dúbia, sem vida própria nem contrastes. Vá que lhe não dissessem coisas rudes, nem ainda as verdades inteiras; mas, por que lhe não mostrariam a alma toda, menos esses desvãos secretos, que há em toda a casa? Desde que isto se lhe meteu em cabeça, caiu na ruim tristeza e longas hipocondrias; e, se lhe não aparece o menecma que pôs no trono, provavelmente morreria de desespero.

Agora tinha ímpetos de voar, de correr toda aquela abóbada de estanho que lá ficava acima dele, ou então ir conversar com os crocodilos, trepar aos hipopótamos, disputar as serpentes aos íbis. Pelo boi Ápis! pensava ele andando e gesticulando, ruim ofício era o meu. Cá levo agora a minha boa alegria e não a dou a troco de nada, nem do Egito nem de Babilônia.

***

— Charmion, quem será aquele homem que vem tão alegre? perguntou um tecelão, jantando à porta de casa com a mulher.

Charmion voltou os olhos cheios de mistérios do Nilo para o lado que o marido indicava. Pha-Nohr, logo que os viu, correu para eles. Era à entrada da cidade; podia ir buscar pousada e comida. Mas tão ansioso estava por sentir que não era rei e meter a mão nos corações e nos caracteres, que não hesitou em pedir-lhes algum bocado para matar a fome.

— Sou um pobre escriba, disse ele. Trago uma caixa de pedras preciosas, que me deu o faraó por achar que era parecido com ele; mas pedras não se comem.

— Comerás do nosso peixe e beberás do nosso vinho, disse-lhe o tecelão.

O vinho era ruim; o peixe fora mal crestado ao sol; mas para ele valiam mais que os banquetes de Mênfis, era o primeiro jantar da liberdade. Expandia-se o ex-faraó; ria, falava, interrogava, queria saber isto e aquilo, batia no ombro ao tecelão, e este ria-se também e contava-lhe tudo.

— A cidade é um covil de sacripantes; mais ruins que eles só os meus vizinhos aqui da entrada. Contarei a história de um ou dois e bastará para conhecer o resto.

Contou umas coisas juntamente ridículas e execráveis, que o hóspede ouviu aborrecido. Este, para desanojar-se, olhou para Charmion e notou que ela pouco mais fazia que fitá-lo com os seus grandes olhos cheios de mistérios do Nilo. Não amara a outra mulher; esta reduziu os seus quarenta e dois anos a vinte e cinco, ao passo que o tecelão prosseguia em dizer a má casta de vizinhos que a fortuna lhe dera. Uns perversos! e os que não eram perversos eram asnos, como um tal Phtataghuruh que...

“Que poder misterioso fez nascer tão linda criatura entre mecânicos?” dizia Pha-Nohr consigo.

Caiu a tarde. Pha-Nohr agradeceu o obséquio e quis ir-se embora; mas o tecelão não consentiu em deixá-lo; passaria ali a noite. Deu-lhe um bom aposento, ainda que pobre. Charmion foi adereçá-lo com as melhores coisas que tinha, deitando-lhe sobre a cama uma bonita colcha bordada — daquelas famosas colchas do Egito citadas por Salomão — e encheu-lhe o ar de aromas finíssimos. Era pobre, mas gostava do luxo.

Pha-Nohr deitou-se pensando nela. Era virtuoso; parecia-lhe que estava pagando mal os obséquios do marido e sacudia de si a imagem da moça. Os olhos, porém, ficavam; viu-os na escuridão, fitos nele, como dois fachos noturnos, e ouviu-lhe também a voz terna e súplice. Saltou da cama, os olhos desapareceram, mas a voz continuava, e, coisa extraordinária, intercalada com a do marido. Não podiam estar longe; colou o ouvido à parede. Ouviu que o tecelão propunha à mulher ficarem com a caixa das pedras preciosas do hóspede, indo buscá-la ao quarto; fariam depois alarido e diriam que eram ladrões. Charmion opunha-se; ele teimava, ela suplicava...

Pha-Nohr ficou embasbacado. Quem diria que o bom tecelão, tão obsequioso?... Não dormiu o resto da noite; gastou-a a andar e a agitar-se para que o homem lá não fosse. De manhã, dispôs-se a andar. O tecelão quis retê-lo, pediu-lhe um dia mais, ou dois, algumas horas; não alcançou nada. Charmion não ajudou o marido; trazia, porém, os mesmos olhos da véspera, fitos no hóspede, teimosos e enigmáticos. Pha-Nohr deu-lhe em lembrança uns brincos de cristal e um bracelete de ouro.

— Até um dia! murmurou-lhe ela ao ouvido.

Pha-Nohr entrou na cidade, achou pousada, deixou as suas coisas a bom recado e saiu para a rua. Morria por andar à toa, desconhecido, misturado à outra gente, falar e ouvir a todos, com franqueza, sem os atilhos do formalismo nem as composturas do paço. Toda a cidade estava em alvoroço, por causa da grande festa anual de Ísis. Grupos na rua, ou às portas, mulheres, homens, crianças, muito riso, muita conversa, uma algazarra de todos os diabos. Pha-Nohr ia a toda parte; foi ver aparelhar os barcos, entrou nos mercados, interrogando a todos. A linguagem era naturalmente rude, — às vezes obscena. No meio do tumulto recebeu alguns encontrões. Eram os primeiros, e mais lhe doeu a dignidade que a pessoa. Parece que chegou a desandar para casa; mas riu-se logo do melindre e tornou à multidão.

Na primeira rua em que entrou, viu duas mulheres que brigavam, agarradas uma à outra, com palavras e murros. Eram robustas e descaradas. Em volta, a gente fazia círculo, e animava-as, como se pratica ainda hoje com os cães. Pha-Nohr não pôde sofrer o espetáculo; primeiro, quis sair dali; mas tal pena teve das duas criaturas, que rompeu a multidão, penetrou no espaço em que elas estavam e separou-as. Resistiram; ele, não menos robusto, meteu-se de permeio. Então elas, vendo que não podiam ir uma à outra, despejaram nele a raiva; Pha-Nohr afasta-se, atravessa a multidão, elas perseguem-no, entre a risota pública, ele corre, elas correm, e, a pedrada e nome cru, o acompanham até longe. Uma das pedras feriu-lhe o pescoço.

“Vou-me daqui, pensou ele, entrando em casa. Em curando a ferida, embarco. Parece, na verdade, uma cidade de sacripantes.”

Nisto ouviu vozes na rua, e daí a pouco entrava-lhe em casa um magistrado acompanhado das duas mulheres e de umas vinte pessoas. As mulheres queixavam-se de que esse homem investira contra elas. As vinte pessoas juraram a mesma coisa. O magistrado ouviu a explicação de Pha-Nohr; e, dizendo este que a sua melhor defesa era a ferida que trazia no pescoço, retorquiu-lhe o magistrado que as duas agravadas naturalmente haviam de defender-se, e multou-o. Pha-Nohr, esquecendo a abdicação temporária, gritou que lhe prendessem o magistrado.

— Outra multa, respondeu este gravemente; e o ferido não teve mais que pagar para se não descobrir.

Estava em casa, triste e acabrunhado, quando viu entrar, daí a dois dias, a bela Charmion debulhada em lágrimas. Sabendo da aventura, desamparou tudo, casa e marido, para vir tratar dele. Doía-lhe muito? Queria que ela lhe bebesse o sangue da ferida, como o melhor vinho do Egito e do mundo? Trazia um pacote com os objetos de uso pessoal.

— Teu marido? perguntou Pha-Nohr.

— Meu marido és tu!

Pha-Nohr quis replicar; mas os olhos da moça encerravam, mais que nunca, todos os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano. Dissera ao marido que ia com uma família amiga à festa de Ísis, e foi assim que saiu de casa.

— Olha, concluiu, para mais captar-lhe a confiança, aqui trouxe o meu par de crótalos, com que uso acompanhar as danças e as flautas. Os barcos saem amanhã. Alugarás um e iremos, não a Busíris, mas ao lugar mais ermo e áspero, que será para mim o seio da própria Ísis divina.

Cegueira do amor, em vão Pha-Nohr quis recuar e dissuadi-la. Tudo ficou ajustado. Como precisassem dinheiro, saiu ele a vender duas pedras preciosas. Nunca soubera o valor de tais coisas; umas foram-lhe dadas, outras foram-lhe compradas pelos seus mordomos. Contudo, tal foi o preço que lhe ofereceu por elas o primeiro comprador, que ele voltou as costas, por mais que este o chamasse para fazer negócio. Chegou-se a outro e contou-lhe o que se dera com o primeiro.

— Como se há de impedir que os velhacos abusem da boa-fé dos homens de bem? disse este com voz melíflua.

E, depois de examinar as pedras, declarou que eram boas, e perguntou se o dono lhes tinha alguma afeição particular.

— Para mim, acrescentou, é fora de dúvida que a afeição que se tem a um objeto torna-o mais vendável. Não me pergunte a razão; é um mistério.

— Não tenho a estas nenhuma afeição particular, acudiu Pha-Nohr.

— Bem, deixe-me avaliá-las.

Calculou baixinho, olhando para o ar, e acabou oferecendo metade do valor das pedras. Era tão superior esta segunda oferta à primeira, que Pha-Nohr aceitou-a com grandes alegrias. Comprou um barco, de boa acácia, calafetado de fresco, e voltou à pousada, onde Charmion lhe ouviu toda a história.

— A consciência daquele homem, concluiu Pha-Nohr, é em si mesma uma rara pedra preciosa.

— Não digas isso, meu divino sol. As pedras valiam o dobro.

Pha-Nohr, indignado, quis ir ter com o homem; mas a formosa Charmion reteve-o, era tarde e inútil. Tinham de embarcar na manhã seguinte. Veio a manhã, embarcaram, e no meio de tantos barcos que iam a Busíris puderam eles escapar-se e foram dar à outra cidade distante, onde acharam casa estreita e graciosa, um ninho de amor.

— Viveremos aqui até à morte, disse-lhe a bela Charmion.

***

Já não era a pobre namorada sem adornos; podia agora desbancar as ricas donas de Mênfis. Jóias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do Egito, outras da Etiópia; mas a melhor jóia de todas, a melhor alcatifa, o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr.

Não faltaram também amigos nem amigas, por mais que quisessem viver reclusos. Entre os homens, havia dois mais particularmente aceitos a ambos, um velho letrado e um rapaz que andara por Babilônia e outras partes. Na conversação, era natural que Charmion e as amigas ouvissem com prazer as narrativas do moço. Pha-Nohr deleitava-se com as palestras do letrado.

Desde longos anos que este compunha um livro sobre as origens do Nilo; e, conquanto ninguém o tivesse lido, a opinião geral é que era admirável. Pha-Nohr quis ter a glória de ouvir-lhe algum trecho; o letrado levou-o à casa dele, um dia, aos primeiros raios do sol. Abria o livro por uma longa dissertação sobre a origem da terra e do céu; depois vinha outra sobre a origem das estações e dos ventos; outra sobre a origem dos ritos, dos oráculos e do sacerdócio. No fim de três horas, pararam, comeram alguma coisa e entraram na segunda parte, que tratava da origem da vida e da morte, matéria de tanta ponderação, que não acabou mais, porque a noite os tomou em meio. Pha-Nohr levantou-se desesperado.

— Amanhã continuaremos, disse o letrado; acabada esta parte, trato logo da origem dos homens, da origem dos reinos, da origem do Egito, da origem dos faraós, da minha própria origem, da origem das origens, e entramos na matéria particular do livro, que são as origens do Nilo, antecedendo-as, porém, das origens de todos os rios do universo. Mas que lhe parece o que li?

Pha-Nohr não pôde responder; saiu furioso. Na rua teve uma vertigem e caiu. Quando voltou a si, a lua clareava o caminho, ergueu-se a custo e foi para casa.

— Maroto! serpente! dizia ele. Se eu fosse rei, não me aborrecias mais de meia hora. Vã liberdade, que me condenas à escravidão!

E assim pensando, ia cheio de saudades de Mênfis, do poder que emprestara ao escriba e até dos homens que lhe falavam tremendo e aos quais fugira. Trocara tudo por nada... Aqui emendou-se. Charmion valia por tudo. Já lá iam meses que viviam juntos; os indiscretos é que lhe empanavam a felicidade. Murmurações de mulheres, disputas de homens eram realmente matéria estranha ao amor de ambos. Construiu novo plano de vida; deixariam aquela cidade, onde não podiam viver para si. Iriam para algum lugar pobre e de pouca gente. Para que luxo externo, amigos, conversações frívolas? E ele cantarolava, andando: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...”

Chegou à casa, correu ao aposento comum, para enxugar as lágrimas à bela Charmion. Não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as jóias, túnicas, espelhos, muitas outras coisas de valia. Não achou sequer o moço viajante, que provavelmente, à força de falar de Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos...

Pha-Nohr chorou de raiva e de amor. Não dormiu; no dia seguinte indagou, mas ninguém sabia de nada. Vendeu os poucos móveis e tapetes que lhe ficaram, e foi para uma cidadezinha próxima, no mesmo distrito. Levava esperanças de encontrá-la. Estava abatido e lúgubre. Para ocupar o tempo e sarar do abalo, meteu-se a aprendiz de embalsamador. A morte me ajudará a suportar a vida, disse ele.

A casa era das mais célebres. Não embalsamava só os cadáveres das pessoas ricas, mas também os das menos abastadas e até da gente pobre. Como os preços de segunda e terceira classes eram os mesmos de outras partes, muitas famílias mandavam para ali os seus cadáveres, para que os embalsamassem com os das pessoas nobres. Pha-Nohr começou pela gente ínfima, cujo processo de embalsamamento era mais sumário. Notou logo que ele e os companheiros de classe eram vistos com desdém pelos embalsamadores da segunda classe; estes chegavam-se muito aos da primeira, mas os da primeira não faziam caso de uns nem de outros. Não se mortificou com isso. Sacar ou não os intestinos do cadáver, ingerir-lhe óleo de cedro ou vinho de palma, mirra e canela, era diferença de operação e de preço. Outra coisa o mortificou deveras.

Tinha ido ali buscar uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas. Certamente havia respeito, quando entrava uma encomenda; o cadáver era recebido com muitas atenções, gestos graves, caras lúgubres. Logo, porém, que os parentes o deixavam, recomeçavam as alegrias. As mulheres, se faleciam moças e bonitas, eram longamente vistas e admiradas por todos. A biografia dos mortos conhecidos era feita ali mesmo, lembrando este um caso, aquele outro. Operavam os corpos, gracejando, falando cada um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade.

“Talvez eu mesmo acabe assim”, pensou ele.

Deixou o ofício, depois de esperar algum tempo a ver se entrava o cadáver da bela Charmion. Exerceu outros, foi barbeiro, bateleiro, caçador de aves aquáticas. Cansado, exausto, aborrecido, apertaram-lhe as saudades do trono; resolveu tornar a Mênfis e ocupá-lo.

Toda a cidade, logo que o viu, clamou que era chegado o escriba parecido com o faraó, que ali estivera tempos atrás; e faziam-se grupos na rua e uma grande multidão o seguiu até ao paço.

— Muito parecido! exclamavam de um lado e de outro.

— Sim? perguntava Pha-Nohr, sorrindo.

— A única diferença, explicou-lhe um velho, é que o faraó está muito gordo.

Pha-Nohr estremeceu. Correu-lhe um frio pela espinha. Muito gordo? Era então impossível a permuta das pessoas. Deteve-se alguns instantes; mas acudiu-lhe logo ir assim mesmo ao paço, e, destronando o escriba, descobrir o segredo. Para que encobri-lo mais?

Entrou; a corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos corpos; mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e declarou-lhe que o trono.

— Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado.

Bachtan riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a gargalhada universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a corte continuou a rir. Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse homem sedicioso era um perigo para o Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte, cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo, rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação:

— Viva Pha-Nohr!

E Bachtan, sorrindo, agradeceu.


- Machado de Assis, 'Identidade'/contos avulsos. em "Obra Completa de Machado de Assis". Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Publicado originalmente em A Gazeta de Notícias, 14 de março de 1887).
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