Antonio José - Machado de Assis

Theo van Rysselberghe - the reading - 1903
ANTONIO JOSÉ

Um dia destes, relembrando uma passagem da tragédia que Magalhães consagrou à memória de Antonio José, adverti na resposta dada pelo judeu ao conde de Ericeira, quando esse lhe recomenda que imite Molière; o judeu responde que Molière escrevia para franceses e ele não. Será essa resposta a rigorosa expressão da verdade? Antonio José não se modelou, certamente, pelas obras do grande cômico, não cogitou jamais da simples pintura dos vícios e dos caracteres. Molière caminhou do Médico Volante e dos Zelos de Barbouillé à Escola das Mulheres e ao Tartufo; Antonio José não passou das Guerras do Alecrim e Manjerona, e dado que tentasse fazê-lo, é certo que não poderia ir muito além. Não tinha centro apropriado, nem largas vistas; faltavam-lhe outros meios, outros intuitos; e, se porventura entrou em seu espírito reatar a tradição de Gil Vicente, levantando sobre os alicerces lançados por esse operário do século XVI as paredes de um teatro regular, convinha justamente não imitar nada, nem ninguém, não se fazer Molière, nem Plauto, ficar Antonio José; é a condição das obras vivas.

Interpretada desse modo, é exata e verdadeira a resposta que Magalhães põe na boca do judeu; mas só desse modo. O Anfitrião prova que o nosso poeta alguma coisa imitou e transplantou de Molière, a tal ponto que forçosamente o tinha diante de si, ou na banca de trabalho ou na memória; e, porque essa observação não haja sido feita, cuido que interessará, quando menos, a título de curiosidade literária. Ao mesmo tempo, direi o que me parece do escritor e da sua obra.

E, antes de mais nada, ocorre ponderar que Antonio José goza de uma reputação sobre palavra. A fogueira de 18 de Outubro de 1739 iluminou-lhe a figura de maneira que o puderam ver todos os olhos; a tragédia do Sr. Magalhães vulgarizou-o entre as nossas platéias de há 40 anos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exige constância e esforço, embora de certo modo os pague. Pode-se dizer, sem erro, que ele pertence à família dos poetas cômicos, qualquer que seja o grau de parentesco, — com a circunstância que era um desperdiçado, — trocava a boa moeda do cômico pelo cobre vulgar do burlesco. Mas, poeta cômico era-o, e de boa veia; — mais de certo que Nicolau Luiz, que lhe sucedeu na estima das platéias de Lisboa, mais ainda que Manuel de Figueiredo, cujas intenções literárias abafaram, talvez, a livre expansão do engenho, e que aliás escrevia de si mesmo que — "havendo-se enganado consigo em ínfimas coisas, nunca se preocupou de que tinha graça". Acresce que o fim trágico do judeu comunica às suas páginas alegres e juvenis um reflexo de simpática melancolia, que ainda mais nos convida a percorrê-las e estudá-las. A piedade não é de certo razão determinativa em pontos de crítica, e tal poetastro haverá que, sucumbindo a uma grande injustiça social, somente inspire compaixão sem desafiar a análise.

Não é o caso de Antonio José; este mereceria por si só que o estudássemos, ainda despido das ocorrências trágicas que lhe circundam o nome.

Nenhuma das comédias do judeu se pode dizer excelente e perfeita; há, porém, graus entre elas, e a todas sobreleva a das Guerras do Alecrim e Manjerona. Nesta, como nas demais, nota-se decerto muita espontaneidade, viveza de diálogo, graça de estilo, variedade de situações, e certo conhecimento de cena, mas a alma de todas elas não é grande; vive-se ali de enredo e de aparato. Se ao poeta foi estranha a invenção dos caracteres e a pintura dos vícios, não menos o foi a transcrição dos costumes locais. Salvo o Alecrim e Manjerona, todas as suas peças são inteiramente alheias à sociedade e ao tempo; a Esopaida tem por base um assunto antigo; a Vida de D. Quixote põe em cena o personagem de Cervantes; as outras peças são todas mitológicas. Podiam estas, não obstante o rótulo, conter a pintura dos costumes e da sociedade cujo produto eram; mas, conquanto em tais composições influa muito o moderno, não se descobre nelas nenhuma intenção daquela natureza.

Ao contrário, a intenção quase exclusiva do poeta era a galhofa e tal galhofa que transcendia muita vez às raias da conveniência pública. Nenhuma de suas peças, — óperas é o nome clássico — nenhuma é isenta de expressões baixas e até obscenas, com que ele, segundo lhe argüia um prelado, "chafurdou na imundície". Tinha razão o prelado, mas não basta ter razão; cumpre saber tê-la. Ora, a baixeza e a obscenidade das locuções não eram novidade na cena portuguesa, nem na de outros países; e, deixando de ir agora a exemplos estranhos à nossa língua, basta lembrar que o Cioso, de Ferreira, do culto autor da Castro, foi dado por Figueiredo com a declaração de ter sido "expurgado segundo o melindre dos ouvidos do nosso século". Gil Vicente, sem embargo de se representarem suas peças na corte de D. João III e D. Manuel, adubava-as às vezes de espécies que nos parecem hoje bem pouco esquisitas. As óperas do judeu eram dadas num teatro popular; não as ouvia a corte de D. João V, mas o povo e os burgueses de Lisboa, cujas orelhas não teriam ainda os melindres que mais tarde lhes atribuiu Figueiredo. A diferença entre Antonio José e os outros era afinal uma questão de quantidade; mas, se o tempo lh’o permitia e, com o tempo, a censura, que muito é que o poeta reincidisse? Não é isto escusá-lo, mas explicá-lo. Deixemos os trocados e equívocos, que são um chiste de mau gosto, mácula de estilo, que o poeta exagerou até à puerilidade, cedendo a si mesmo e ao riso das platéias. Outro defeito que se lhe argúi, é o tom guindado e os arrebiques de conceito, que se notam em muitas falas de certos personagens, os deuses, príncipes e heróis. Um de seus biógrafos, comparando o estilo de tais personagens com o dos criados e pessoas ínfimas, que são simples e naturais, supõe que houve no poeta intenção satírica, opinião que me parece carecer de fundamento, entre outras razões porque não há sempre aquela diferença de estilo, e não é raro falarem os principais personagens do mesmo modo natural e reto, que os de condição inferior. Guindam-se muita vez, mas era achaque do tempo e exageração na maneira de empregar o estilo nobre, porque havia então um estilo nobre; e, se o judeu teve alguma vez intenção satírica, arrebicando ou empolando a expressão, tal intenção foi somente literária e nenhuma outra. Que diremos dos anacronismos de linguagem? Esses são constantes e excessivos. Os dobrões de Alcmena, a alcunha de alfacinha dada a Anfitrião, Juno crismada em Felizarda, um criado antigo "de corpo à inglesa", outro com "relógio de penduricalhos", deviam promover a gargalhada franca do povo. Esse fugir do meio e da ação para a realidade presente vai algumas vezes além, como na Esopaida, em que o herói, falando de sua vida, diz que anda em livros pelo mundo — "e agora me dizem que se está representando no Bairro-Alto". Já na Vida de D. Quixote havia o poeta posto a mesma coisa na boca de Sancho, quando o cavaleiro, vendo um barco amarrado, pergunta ao escudeiro: “— Sabes onde estamos? — Sei bem. — Aonde? — No Bairro-Alto". O judeu podia responder que tal sestro foi o de Regnard e o de Boursault, por exemplo, que pôs o seu Esopo a tomar café e meteu com ele esposas de tabeliães; podia citar muitos outros exemplos anteriores e contemporâneos, e a crítica se incumbiria de apontar os que vieram depois dele; mas não vale a pena.

Venhamos ao Anfitrião. Um erudito escritor, o Sr. Teófilo Braga, supõe que a intenção do poeta, nessa comédia, foi pintar em Júpiter a pessoa de D. João V, suposição que detidamente examinei e me parece inteiramente gratuita. Cuido que o crítico faz de uma coincidência um propósito, e fundamenta a sua suspeita na possível analogia das aventuras do deus pagão e do rei cristão. A analogia podia ser um elemento de prova, mas desacompanhada de outras não faz chegar a nenhum resultado definitivo. Ora, basta ler o Anfitrião, basta comparar a situação do poeta e o tempo para varrer do espírito semelhante hipótese. Certo, não faltava audácia ao poeta; aí está, como exemplo, a definição da justiça, feita por Sancho, na Vida de D. Quixote; mas entre a generalidade desse trecho e a sátira pessoal do Anfitrião vai um abismo. Ocorre-me que do Anfitrião de Molière também se disse ser alusão a Luiz XIV, com a diferença que em França não se atribuiu a Molière a intenção de ferir, mas de ser agradável ao rei, que lhe havia encomendado aquela apoteose de suas próprias aventuras, opinião esta que foi de todo condenada. Não, não há motivo para atribuir a Antonio José a intenção que lhe supõe o Sr. Teófilo Braga; e, se tal intenção existisse, o desenlace da comédia, quando Júpiter se declara acima da lei, viria a ser de um sarcasmo tão cru que não alcançaríamos compreendê-lo naquele século.

Evidentemente, o judeu achou na aventura pagã o mesmo que lhe acharam Plauto, Molière e Camões, — um assunto prestado às combinações cênicas, e, demais, singularmente próprio para as chufas do Bairro-Alto. Desnecessário é dizer os trâmites dessa travessura de Júpiter, que, namorado de Alcmena, toma a figura do marido e vai à casa dela, acompanhada de Mercúrio, que copia as feições de Sósias, criado de Anfitrião. O nosso poeta seguiu no principal a fábula que encontrou nos antecessores, fazendo-lhes todavia as alterações suscitadas pelo gosto próprio e das platéias. Assim, o Sósias de Plauto, de Molière e de Camões é na peça de Antonio José um Saramago. Não lhe mudou ele o essencial; trocando-lhe o nome, obedeceu ao sistema de dar aos criados nomes burlescos. O de Jasão, nos Encantos de Medéia, chama-se Sacatrapos; há nas outras óperas um Caranguejo, um Esfusiote, um Chichisbéu. São nomes, não valem mais que nomes. Nem Molière chamou Dandin ao principal personagem de uma de suas comédias senão para o caracterizar desde logo de um modo jovial; não pretendeu outra coisa. Contudo, a observação em relação a Antonio José tem o valor de um rasgo significativo.

Cotejando o Anfitrião de Antonio José com os de seus antecessores, vê-se o que ele imitou dos modelos e o que de sua casa introduziu. Já disse que no principal os seguiu a todos; mas nem sempre soube escolher, e darei disso um exemplo claro. Camões, que não sendo poeta cômico, era todavia homem de tato e gosto, corrigiu, antes de Molière, o desenlace do Anfitrião de Plauto. Na comédia deste, logo depois de explicar Júpiter os equívocos da situação e de anunciar ao marido de Alcmena que o filho desta é seu, mostra-se Anfitrião inteiramente satisfeito e glorioso com o desenlace. Camões suprimiu tão singular contentamento, e o mesmo fez Molière; em ambos os poetas Anfitrião ouve silencioso as declarações do pai dos deuses, sem que Alcmena assista a elas. Antonio José não só não seguiu nessa parte os modelos recentes, mas até carregou a mão sobre o que imitou de Plauto. A alegria do seu Anfitrião e da sua Alcmena é tão franca, tamanho é o alvoroço dos dois esposos, que realmente chega a ofender as leis da verossimilhança, ainda tratando-se de um caso divino. Neste ponto, Antonio José foi antes inadvertido do que obrigado do gosto público. Outro caso. Nas comédias anteriores não há nenhum lugar em que Alcmena veja ao mesmo tempo os dois Anfitriões, e isto não só era necessário para prolongar e justificar os equívocos, mas até o exigia a verossimilhança, porque, desde que Alcmena chegasse a ver juntos os dois exemplares exatos do marido, saía da boa fé, que serve de fundamento à sua ilusão, para cair no maravilhoso e no inextricável. E é justamente o que acontece na comédia do judeu.

Vamos agora ao que o judeu imitou diretamente de Molière. Há na comédia daquele um caráter, o de Cornucópia, mulher de Saramago, que não tem equivalente na de Plauto, nem na de Camões, e que só na de Molière existe. "Molière (é observação de La Harpe ), fazendo de Cleanthis mulher de Sósias, inventou uma situação paralela à de Anfitrião e Alcmena, dando-lhe porém diferente aspecto; Cleanthis pertence ao número das esposas que, "por serem honestas, cuidam ter o direito de ser insuportáveis". Ora bem, a situação e o caráter de Cleanthis transportou-os o judeu para o seu Anfitrião, e não se pode dizer encontro fortuito, senão deliberado propósito. Basta cotejá-los com espírito advertido; a diferença é de tom, de estilo; substancialmente, a invenção é a mesma; as próprias idéias reproduzem-se às vezes na obra do judeu. Assim, logo na cena em que Mercúrio transformado em Saramago (Sósias) encontra a mulher deste, achamos o traço comum aos dois poetas.

Na comédia de Molière:

CLEANTHIS
Regarde, traître, Anfitrion;
Vois comme pour Alcmène il étale sa flame;
Et rougis là-dessus du peu de passion
Que tu témoignes pour ta femme.

MERCURIO
Hé! mon Dieu! Cléanthis, ils sont encore amants.
Il est certain âge où tout passe;
Et ce qui leur sied bien dans ces commencements,
En nous, vieux mariés, aurait mauvaise grâce.
Il nous ferait beau voir, attachés face à face,
A pousser les beaux sentiments!

CLEANTHIS
Mérites-tu, pendard, cet insigne bonheur
De te voir pour épouse une femme d’honneur?

MERCURIO
Mon Dieu! tu n’es que trop honnête;
Ce grand honneur ne me vaut rien.
Ne sois point si femme de bien,
Et me romps un peu moins la tête.

Agora Antonio José:

CORNUCÓPIA
Também nosso amo trazia bastante fome, e contudo está dizendo à nossa ama tanta coisa galantinha que faria derreter uma pedra.

MERCÚRIO
Com que é o mesmo nossos amos do que nós? Eles, casadinhos de um ano, e nós há um século? Eles, senhores e rapazes, e nós velhos e moços? Eles, dois jasmins, e nós dois lagartos? E finalmente eles com amor, e nós, ou pelo menos eu, sem nenhum?
...................................................................

CORNUCÓPIA
Ora, o certo é que pior é fazer festa a vilões ruins; por certo, que se tu conheceras a mulher que tens, que outra coisa fora; talvez que se eu fora alguma dessas bonequinhas enfeitadas que me quiseras mais; porém a culpa tenho eu em não aceitar o que me davam nas tuas costas.

MERCÚRIO
Pois ainda estás em tempo.

Trata-se, como se vê, de um caráter e de uma situação integralmente transcritos, embora de outro jeito, cedendo o poeta aos seus hábitos literários, à sua índole e ao seu meio. Nem é somente na introdução do caráter de Cornucópia, e na situação dos dois personagens, que Antonio José revela ter diante de si ou na memória a peça de Molière; há ainda outro vestígio; há uma idéia na cena em que Júpiter se despede de Alcmena, — idéia que o judeu expressa deste modo:

ALCMENA
Este amor nasce da obrigação.

JÚPITER
Pois quisera que esta fineza nascera mais do teu amor que da tua obrigação.

ALCMENA
A obrigação de amar ao esposo supera toda a obrigação.

JÚPITER
Pois mais devera que me quiseras como a amante que como a esposo.

ALCMENA
Não sei fazer esta diferença, pois não posso amar-te como a esposa, sem que te ame como a amante.

Na comédia de Molière:

JUPITER
En moi, bele et charmante Alcmène,
Vous voyez un mari, vous voyez un amant;
Mais l’amant seul me touche, à parler franchement,
Et je sens près de vous que le mari me gêne.
Cet amant, de vos voeux jaloux au dernier point,
Souhaite qu’à lui seul votre amour s’abandonne.
...................................................................

ALCMENA
Je ne sépare point ce qu’unissent les dieux;
Et l’époux et l’amant me sont fort précieux.

Se, neste ponto, já se não trata de uma situação, de um caráter novo, mas de uma idéia entrelaçada no diálogo, importa repetir que, ainda imitando ou recordando, o judeu se conserva fiel à sua fisionomia literária; pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho da sua fábrica. Dessa inclinação ao baixo cômico achamos outro exemplo na Esopaida, cujo assunto fora tratado, antes dele, por Boursault. O caráter tradicional de Esopo era pouco apropriado à comédia: é um moralista, um autor de apólogos, mas Boursault trouxe-o assim mesmo para a cena, único modo de lhe conservar a cor original. O Esopo de Antonio José parece antes um exemplar apurado daqueles lacaios argutos e atrevidos da comédia clássica; salvo dois ou três lugares, é outro gênero de Sacatrapos ou Chichisbéu; figura ali com agudezas e trocadilhos. Há destes extremamente bufões, como o da bacia das almas, e disso e de pouco mais se compõe a filosofia de Esopo. Não obstante essa cor geral, notam-se ali toques de bom cômico, embora leve e a espaços. Há também, e principalmente, a veia satírica, na cena que quase todos os seus biógrafos transcrevem, — a das teses dos filósofos, cena extremamente chistosa, e que o próprio Diniz, com toda a sua veia do Hyssope e do Falso Heroísmo, não sei se chegaria a fazer mais acabada. Compare-se essa cena com a da invasão do Parnaso pelos maus poetas, na Vida de D. Quixote, e ver-se-á que havia no talento de Antonio José uma forte dose de sátira, — o que, de certa maneira, lhe diminuía a força cômica. Nessas duas peças é, aliás, sensível a habilidade teatral do poeta, que não tinha propriamente uma ação em nenhuma delas, e, não obstante, logrou condensar a vida dos episódios, manter a unidade do interesse e angariar o aplauso público. Acresce que o seu D. Quixote não tem o defeito capital do seu Esopo; o poeta soube dar-lhe alguns toques da ingenuidade sublime, que caracteriza o tipo de Cervantes: é o que se vê logo, na exposição, quando D. Quixote responde ao barbeiro acerca da armada que se prepara para combater o turco: “— Para que se cansam com tantas máquinas? diz ele. Eu lhes dera um bom arbítrio com que, em menos de uma hora, vençam quantas armadas e armadilhas o turco tiver". É ocioso dizer que o arbítrio seria a cavalaria andante.

De todas as comédias, porém, a que goza as honras da primazia é a das Guerras do Alecrim e Manjerona, e com razão; é a mais acabada e a mais cômica. Tem o gosto do tempo, e até um ressaibo da maneira de Calderón, que de si mesmo escrevia:

Es comedia de Don Pedro
Calderón, donde ha de haber,
Por fuerza, amante escondido
Y rebozada mujer.

Há ali com efeito mulheres rebuçadas e amantes escondidos, e tanta vida como nas peças de Calderón.

Não trato aqui do fato que poderia ter dado lugar à obra do judeu, nem das dúvidas de Costa e Silva sobre se os dois ranchos do alecrim e da manjerona existiam antes da comédia, ou se esta os fez nascer; é investigação que não vale a pena de um minuto, e aliás o texto do poeta é claro. Em tudo se avantaja o Alecrim e Manjerona, até na linguagem, que é aí muito menos obscena que nas outras, diferença que se pode atribuir ao progresso do talento, porquanto já no Labyrintho de Creta se dá o mesmo fenômeno. Não direi, como Garret, que essa peça teria hoje todo o valor de uma comédia histórica; mas assim mesmo, quem lhe vê as figuras, a século e meio de distância, parece contemplar uma gravura em que elas conservam as feições e o vestuário do tempo, — os namorados pobres, o velho avarento, que arde por se ver livre das sobrinhas, e que, ao anunciarem-lhe a chegada do pretendente provinciano, manda deitar "mais um ovo nos espinafres", D. Tibúrcio, as duas damas, o Semicúpio e a velha Fagundes, todo o pessoal da antiga farsa.

Superior às outras composições, como estilo e originalidade, não menos o é como viveza, graça e movimento; e, se a farsa domina, não é tanto que não apareça a comédia. Basta apontar, por exemplo, a cena da consulta médica, por ocasião do desastre de D. Tibúrcio, que é uma das melhores do teatro do judeu, e não ficaria vexada se a puséssemos ao lado das de Molière e Gil Vicente. Para não faltar nada, há também aforismos latinos, e até uma copla latina, digna de Molière. Podemos considerar o Alecrim e Manjerona como uma das melhores comédias do século XVIII.

Ler o Alecrim e Manjerona, o Anfitrião, a Esopaida, e o D. Quixote, é avaliar todo o poeta, com suas qualidades boas e más, com o jeito do seu espírito e influência do seu tempo. Nicolau Luiz, Figueiredo, Diniz e Garção, no mesmo século, tiveram talvez mais intenção cômica do que Antonio José, mas os meios deste eram maiores, possuíam outra virtualidade, outra espontaneidade, outra abundância. Dir-se-á que, se a Inquisição o deixara viver, Antonio José produziria alguma obra de esfera superior? Repito: não creio que ele subisse muito acima do Alecrim e Manjerona; iria talvez ao ponto de fazer alguma coisa parecida com o Avaro, mas não faria todo o Avaro.

Agora, a século e meio de distância, podemos afirmar que Antonio José foi um destino decapitado. Qualquer que fosse a natureza do seu engenho, é fora de dúvida que o auto da fé, em que ele pereceu, devorou com a mesma flama assaz de páginas alegres e vivazes. A prova de que o teatro poderia ainda esperar muito de Antonio José está, na comparação das obras dele com a vida dele. Era um cristão novo, como tal suspeitado e perseguido; aos vinte e um anos padeceu um primeiro processo, e sabe-se que terríveis eram os processos inquisitoriais; basta dizer que o delinqüente revelou todos os seus cúmplices em judaísmo, com a maior franqueza e minuciosidade, o que se pode explicar pela tenra idade do poeta, mas também pelo terror que o tribunal infundia, não menos que pela exortação mansa com que os inquisidores extorquiam a confissão de todos os erros e a denúncia de todos os cúmplices, — sem prejuízo, aliás, do cárcere e da polé. Pois bem, não obstante os vestígios e as lembranças desse primeiro ato da Inquisição, não obstante o espetáculo do que padeciam os seus, as óperas de Antonio José trazem o sabor de uma mocidade imperturbavelmente feliz, a facécia grossa e petulante, tal como lh’a pedia o paladar das platéias, nenhum vislumbre do episódio trágico, salvo uns versos do Anfitrião que se crêem (e, quanto a mim, sem outro fundamento além da conjectura) como aplicáveis a ele mesmo. Mas, ainda supondo que a conjectura tenha razão, admitindo mais que a alegoria da justiça na Vida de D. Quixote seja o resumo das queixas pessoais do poeta (suposição tão frágil como aquela), a verdade é que os sucessos da vida dele não influíram, não diminuíram a força nativa do talento, nem lhe torceram a natureza, que estava muito longe da hipocondria. Molière, que, se nem sempre teve flores no caminho, não conheceu o ínfimo dos padecimentos de Antonio José, foi o criador de Alceste; o nosso judeu, dado que tivesse a mesma intensidade de talento, não escolheria nunca o assunto do Misanthropo.

Nisto, menos que em nenhuma outra coisa, imitaria ele o grande mestre. Não lhe fossem propor graves problemas, nem máximas profundas, nem os caracteres, nem as altas observações que formam o argumento das comédias de outra esfera, nem sobretudo as melancolias de Molière e Shakespeare. O nosso judeu era a farsa, a genuína farsa, sem outras pretensões, sem mais remotas vistas que os limites do seu bairro e do seu tempo. Certo, eu posso hoje, a fina força, arrancar alguma idéia inicial das óperas do judeu; por exemplo, ao ver nos Encantos de Medéia a dedicação da feiticeira de Colchos, que trai os deveres filiais e põe todas as suas artes ao serviço de Jasão, ao ponto de lhe entregar o velocino, e ao ver que, apesar de tudo isto, o príncipe foge com Creusa, posso, digo eu, atribuir ao poeta a intenção de que o reconhecimento não é o caminho do amor e que um coração pode ser legitimamente ingrato. Seria lógico, seria bem deduzido da ação, mas não passaria de obra da crítica, inteiramente alheia à intenção do poeta, que achou no assunto uma farsa de tramóias e ainda mais. Esta é a última conclusão que rigorosamente se pode tirar do poeta. Ele não imitou, não chegaria a imitar Molière, ainda que repetisse as transcrições que fez no Anfitrião; tinha originalidade, embora a influência das óperas italianas. Convenhamos que era um engenho sem disciplina, nem gosto, mas característico e pessoal.



Revista Brasileira, I, 1879.


 - Machado de Assis, em "Relíquias de Casa Velha". Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis. vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. (Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1906).

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