Raoul Dufy - 1909. |
A última pessoa no mundo que deveria ter um duplicador tridimensional nas mãos é Gilberto; e no entanto o Mimete logo lhe caiu no colo, um mês após o lançamento comercial e três meses antes que o famoso decreto proibisse sua fabricação e uso — ou seja, tempo suficiente para que Gilberto se metesse em complicações. Caiu-lhe nas mãos sem que eu pudesse fazer nada: estava em San Vittore, cumprindo a pena por meu trabalho de pioneiro, bem longe de imaginar quem, e de que modo, o estava continuando.
Gilberto é um filho do século. Tem trinta e quatro anos, é um bom empregado, meu amigo desde sempre. Não bebe, não fuma e só cultiva uma paixão: atormentar a matéria inanimada. Tem um pequeno depósito que chama de oficina, e aí ele lima, serra, solda, cola, esmerilha. Conserta relógios, geladeiras, barbeadores elétricos; constrói quinquilharias que acendem o aquecedor de manhã, fechaduras fotoelétricas, aeromodelos que voam, sondas acústicas para brincar no mar. Quanto aos seus carros, duram poucos meses: continuamente os desmonta e remonta, encera, lubrifica, modifica, enche-os de acessórios inúteis e depois se cansa e se desfaz deles. Emma, sua mulher (uma jovem encantadora), suporta essas manias com paciência admirável.
Eu acabara de deixar a prisão e entrava em casa quando o telefone tocou. Era Gilberto, como sempre entusiasta: estava havia vinte dias com o Mimete e lhe dedicara vinte dias e vinte noites. Contou-me detalhadamente as maravilhosas experiências que realizara e as que ainda pensava realizar; comprara o texto de Peltier, Théorie générale de l´imitation, e o tratado de Zechmeister e Eisenlohr, The mimes and other duplicating devices; inscrevera-se num curso intensivo de cibernética e eletrônica. As experiências que realizara pareciam-se melancolicamente com as minhas, que me custaram caro; tentei dizer isso a ele, mas foi inútil: é difícil interromper um interlocutor ao telefone, especialmente Gilberto. Por fim, cortei brutalmente a comunicação, deixei o fone fora do gancho e fui cuidar das minhas coisas.
Dois dias depois o telefone tocou novamente: a voz de Gilberto estava cheia de emoção, mas carregava um tom inconfundível de orgulho.
“Preciso te ver imediatamente.”
“Por quê? O que houve?”
“Dupliquei minha mulher”, respondeu.
Cheguei duas horas depois, e ele me contou sua aventura cretina. Havia recebido o Mimete, havia feito os joguinhos costumeiros de todos os principiantes (o ovo, o maço de cigarros, o livro etc.); depois se cansou, levou o Mimete para a oficina e o desmontou até o último parafuso. Pensara nele a noite inteira, consultou seus tratados e concluiu que transformar o modelo de um litro em um modelo maior não devia ser impossível nem muito difícil. Dito e feito, encomendou na NATCA — não sei sob quais pretextos — duzentas libras de pabulum especial, comprou lâminas de metal, vergalhões, acessórios e depois de sete dias o trabalho estava pronto. Tinha construído uma espécie de pulmão artificial, truncara o timer do Mimete, acelerando-o umas quarenta vezes, e ligara as duas partes entre si com o compartimento do pabulum. Gilberto é assim, um homem perigoso, um pequeno Prometeu nocivo: é engenhoso e irresponsável, soberbo e tolo. É, como eu dizia antes, um filho do século; aliás, é um símbolo do nosso século. Sempre pensei que ele seria capaz, se surgisse a ocasião, de fazer uma bomba atômica e deixá-la cair sobre Milão só “para ver o efeito que faz”.
Pelo que pude entender, Gilberto não tinha nenhuma idéia precisa quando decidiu aumentar o duplicador, salvo talvez — o que é típico dele — “fazer” um duplicador mais potente, com suas próprias mãos e a baixo custo, já que é muito hábil em fazer desaparecer o “débito” de sua contabilidade privada, com uma espécie de prestidigitação mental. A idéia abominável de duplicar a mulher, disse-me, só lhe ocorreu em seguida, ao ver Emma dormindo profundamente. Parece que não foi muito difícil: Gilberto, robusto e paciente, fez o colchão deslizar, com Emma em cima, da cama até o compartimento do duplicador. Foi preciso mais de uma hora, mas Emma não acordou.
Não está nada claro para mim o motivo que levou Gilberto a criar uma segunda mulher e a violar um bom número de leis divinas e humanas. Disse-me, como se fosse a coisa mais natural, que estava apaixonado por Emma, que Emma era indispensável, e que por isso lhe pareceu uma boa idéia ter uma cópia. Talvez tenha dito isso de boa-fé (Gilberto sempre age de boa-fé), e certamente ele estava e está apaixonado por Emma, a seu modo, infantilmente, e, digamos assim, de baixo para cima: mas estou convencido de que ele resolveu duplicar a mulher por outras razões, por um mau espírito de aventura, por um gosto insano de Eróstrato — justamente “para ver o efeito que faz”.
Perguntei-lhe se não havia pensado na hipótese de consultar Emma, perguntar se ela estaria de acordo, antes de dispor da companheira de modo tão inusitado. Ficou vermelho até os cabelos: tinha feito pior, o sono profundo de Emma fora induzido por um sonífero.
“E agora, como estão as coisas com suas duas mulheres?”
“Não sei, ainda não decidi. As duas ainda estão dormindo. Amanhã veremos.”
No dia seguinte não veríamos nada — não eu, pelo menos. Depois de um mês de inércia forçada, parti para uma longa viagem, que me manteve longe de Milão por duas semanas. Já sabia o que me esperava na volta: teria de ajudar Gilberto a sair da enrascada, como naquela vez em que ele tinha construído um aspirador de pó a vapor e o dera de presente à mulher do chefe.
De fato, assim que retornei, fui peremptoriamente convidado a um conselho de família: Gilberto, eu e as duas Emmas. Elas tiveram o bom senso de marcar suas diferenças: a segunda, a duplicada, trazia nos cabelos uma faixa branca e simples, que lhe conferia um vago ar monacal. Afora isso, vestia as roupas de Emma I com desenvoltura; obviamente era idêntica à titular em todos os aspectos: rosto, dentes, cabelos, voz, sotaque, uma leve cicatriz na testa, a permanente, o jeito de andar, o bronzeado das férias recentes. Porém notei que estava com um forte resfriado.
Contra as minhas previsões, ambas me pareceram de ótimo humor. Gilberto mostrava-se estupidamente orgulhoso, menos pela obra acabada do que pelo fato (cujo mérito não era dele) de que as duas mulheres se entendiam entre si. Quanto a elas, suscitaram em mim uma admiração sincera. Emma I demonstrava em relação à nova “irmã” uma solicitude materna; Emma II correspondia com uma respeitosa e afetuosa dedicação filial. A experiência de Gilberto, abominável sob tantos aspectos, constituía entretanto uma prova louvável da teoria da Imitação: a nova Emma, nascida aos vinte e oito anos, herdara não só as feições mortais do protótipo, mas também seu patrimônio mental. Com admirável simplicidade, Emma II me contou que somente dois ou três dias após o seu nascimento se dera conta de que era a primeira mulher sintética, por assim dizer, na história do gênero humano — ou talvez a segunda, caso se considere o episódio vagamente análogo de Eva. Nascera dormindo, já que o Mimete também duplicara o sonífero que corria nas veias de Emma I, e despertara “sabendo” que era Emma Perosa in Gatti, única esposa do contador Gilberto Gatti, nascida em Mântua em 7 de março de 1936. Lembrava-se de tudo o que Emma I lembrava, e se esquecia de tudo o que Emma I esquecia. Lembrava-se perfeitamente da viagem de núpcias, dos nomes de “seus” colegas de escola, dos detalhes pueris e íntimos de uma crise religiosa que Emma I atravessara aos treze anos e nunca confessara a ninguém. Mas também se lembrava muito bem da chegada do Mimete, dos entusiasmos de Gilberto, dos seus relatos e de suas tentativas, e por isso não se espantara demais quando fora informada do arbitrário ato criativo a que devia a existência.
O fato de que Emma II estivesse resfriada me fez pensar que a identidade das duas, originalmente perfeita, estava destinada a não durar: mesmo que Gilberto se demonstrasse o mais equânime dos bígamos e instituísse uma rigorosa alternância, ainda que se abstivesse de qualquer manifestação de preferência por uma das duas (uma hipótese absurda, já que Gilberto é trapalhão e enrolado), mesmo nesses casos certamente acabaria surgindo uma divergência. Bastava pensar que as duas Emmas não ocupavam materialmente a mesma porção de espaço: não poderiam passar simultaneamente por uma porta estreita, apresentar-se juntas a um guichê, ocupar o mesmo lugar à mesa, e por isso estavam expostas a diversos incidentes (o resfriado), a experiências distintas. Fatalmente se diferenciariam, espiritual e corporalmente; e, uma vez diferenciadas, Gilberto conseguiria manter-se eqüidistante? Claro que não — e, diante de uma preferência, mesmo minúscula, o frágil equilíbrio a três estava destinado ao naufrágio.
Expus a Gilberto essas considerações e tentei convencê-lo de que não se tratava de uma hipótese pessimista gratuita, mas de uma previsão solidamente fundada no senso comum, quase um teorema. Lembrei-lhe ainda que a sua condição legal era pelo menos ambígua, e que eu fora para a prisão por muito menos: estava casado com Emma Perosa, Emma II também era Emma Perosa, mas isso não excluía o fato de que as Emmas Perosas eram duas.
Mas Gilberto mostrou-se inabordável: estava estupidamente eufórico, num estado de espírito de recém-casado, e enquanto eu falava o seu pensamento visivelmente devaneava. Em vez de olhar para mim, estava perdido na contemplação de suas duas mulheres, que justo naquele momento estavam brigando, por brincadeira, sobre qual das duas se sentaria na poltrona que ambas preferiam. Em vez de responder aos meus argumentos, anunciou-me que tivera uma grande idéia: os três partiriam numa viagem para a Espanha. “Já planejei tudo: Emma I declarará que perdeu o passaporte, receberá uma segunda via e passará a alfândega com ela. Aliás, não, que bobo! Eu mesmo farei a segunda via hoje mesmo, com o Mimete.” Ele estava muito orgulhoso dessa descoberta, e suspeito que tenha escolhido a Espanha precisamente porque o controle de documentos na fronteira espanhola é bastante severo.
Quando voltaram, dois meses depois, a barca começava a fazer água. Qualquer um perceberia: a relação entre os três se mantinha num nível de civilidade e de cortesia formal, mas a tensão era evidente. Gilberto não me convidou à sua casa dessa vez: veio me ver, e já não estava nada eufórico.
Narrou-me o que havia acontecido. Uma narrativa muito canhestra, pois Gilberto, que tem um inegável talento para rabiscar em maços de cigarro o esquema de uma diferencial, é espantosamente inábil em exprimir os próprios sentimentos.
A viagem à Espanha foi ao mesmo tempo divertida e cansativa. Em Sevilha, depois de um dia de programa intenso, explodiu uma discussão, num clima de irritação e de cansaço. Começou com as duas mulheres, e dizia respeito ao único assunto em que as suas opiniões podiam divergir, e de fato divergiam: era ou não oportuna, lícita ou ilícita, a ação de Gilberto? Emma II dissera que sim; Emma I não dissera nada. Bastou esse silêncio para desequilibrar a balança, e desde aquele momento Gilberto fez a sua escolha. Sentia diante de Emma I um embaraço crescente, um sentimento de culpa que se agravava dia a dia: paralelamente, o afeto pela nova mulher aumentava, na mesma medida em que definhava o afeto pela mulher legítima. A ruptura ainda não ocorrera, mas Gilberto sentia que estava próxima.
Até o humor e o caráter das duas mulheres estavam mudando. Emma II se tornava cada vez mais jovem, atenta, reativa, aberta; Emma I ia se fechando num comportamento negativo, de ofendida renúncia, de rejeição. O que fazer? Recomendei a Gilberto que não tomasse decisões intempestivas e lhe prometi, como de hábito, que pensaria no caso; mas, no íntimo, eu estava decidido a manter distância daquele melancólico imbróglio, e não podia reprimir um sentimento de satisfação maligna e triste diante da fácil profecia que se confirmara.
Nunca imaginaria que, passado um mês, um Gilberto radioso viria ao meu escritório. Estava em sua melhor forma, loquaz, barulhento, visivelmente mais gordo. Entrou diretamente no assunto, com o egocentrismo que lhe é característico: para Gilberto, quando as coisas vão bem para ele, vão bem para o mundo inteiro; é organicamente incapaz de se preocupar com o próximo, mas se espanta e se ofende se o próximo não se preocupar com ele.
“Gilberto é um gênio”, disse, “resolveu tudo num piscar de olhos.”
“Fico feliz em saber e o cumprimento pela modéstia; de resto, estava na hora de você tomar uma posição.”
“Não, não é isso. Não estou falando de mim: falo de Gilberto I. Ele é que é um gênio. Eu, modestamente, me pareço bastante com ele, mas não tive muitos méritos nessa história: passei a existir apenas no domingo passado. Mas agora está tudo ajeitado: só falta acertar no cartório a situação de Emma II e a minha. Talvez tenhamos que fazer algum truque, por exemplo, é provável que me case com Emma II — embora depois cada um possa escolher o seu parceiro. Além disso, é óbvio que eu precisarei de um trabalho: mas estou convencido de que a NATCA me aceitaria como anunciante do Mimete e de suas outras máquinas para escritório.”
— Primo Levi, no livro "71 contos". tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Gostou? Deixe seu comentário.