Paul Gauguin - 1889 |
1916
A cidade duvidará do caso. Não obstante, aquele monjolo de João Nunes no Varjão foi durante meses o palhaço da zona. Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia Pedro Porunga, mestre monjoleiro de larga fama, fungavam-se à conta do engenho risos sem fim.
Sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados pelo espigão do Nheco — e por malquerença antiga. Levantara Nunes uma paca, certo domingo; mas ao dobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um Porunguinha que casualmente lenhava por ali. Zás! Certeiro golpe de foice dá com ela em terra.
Até aí nada.
Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto de presente ao legítimo dono. Legítimo, sim, porque, afinal de contas, aquela paca era uma paca de nomeada. Sabida como um vigário, dizia Nunes, nem cachorro mestre, nem mundéu, podiam com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do outro lado não ignorava isso. Paca velha e matreira tem sempre a biografia na boca dos caçadores. Paca muito conhecida, portanto; moradora em suas terras. Paca de Nunes, homessa. Ora, justamente no dia em que, numa batida feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha?
— Mas é uma criança!
Sim, mas o pai não aprovou? Não disse, entre risadas, “o Nunes que se fomente?”. Haviam de pagar!
Veio daí a malquerença. O espigão vinha do período um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.
Agravava a dissensão uma rivalidade quase de casta. Pertencia Nunes à classe dos que decaem por força de muita cachaça na cabeça e muita saia em casa. Filho homem só tinha José Benedito, de apelido Pernambi, um passarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete anos. O resto era uma récula de “famílias mulheres” — Maria Benedita, Maria da Conceição, Maria da Graça, Maria da Glória, um rosário de oito mariquinhas de saia comprida. Tanta mulher em casa amargava o ânimo do Nunes, que nos dias de cachaça ameaçava afogá-las na lagoa como se fossem uma ninhada de gatos.
O seu consolo era amimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito, a ajudá-lo no cabo da enxada, enquanto o mulherio inútil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol. Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga. A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço pegou lesto no vício. Bebia e fumava, muito sorna, com ares palermas de quem não é deste mundo. Também usava faca de ponta à cinta.
— Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta, não é homem — dizia Nunes.
E cônscio de que já era homem, o piquirinha batia nas irmãs, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de muitas outras coisas próprias de homem.
Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na pinga, Pedro Porunga casara com mulher sensata, que lhe dera seis “famílias”, tudo homem.
Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito. Plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha dois monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duas porcas de cria. Caçava com espingarda de dois canos, “imitação Laporte”, boa de chumbo como não havia outra. Morava em casa nova, bem coberta de sapé de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas à mão por dentro, coisa muito fina.
Já Nunes — pobre do Nunes! — não punha na terra nem um alqueire de semente. Teve égua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda velha. Comido o porquinho, sobrou do negócio o caco da pica-pau, dum cano só e manhosa de tardar fogo.
Sua casa, de esteios com casca e portas de imbaúba rachada, muito encardida de picumã, prenunciava tapera próxima.
Capado, nenhum. Galinhada escassa.
Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama; andava de barriga às costas, com bernes no toitiço. O pobrezinho não caminhava dez passos sem que parasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros, tentando inutilmente abocar o parasita inatingível. Que preasse. Cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preás atolambadas. E tudo mais no Varjão afinava pela mesma tecla.
Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negócio duma besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeu-lhe aquilo no fundo da alma. Era atrepar demais.
— Quê! Já roncam assim? — braveteou. — Pois hei de mostrar à Porungada quem é o João Nunes Eusébio dos Santos, da Ponte Alta!
E entrou-se, desde aí, de grandes atarefamentos. A mulher pasmava da súbita reviravolta do marido, duvidando e esperando.
— Durará esse fogo? Quem sabe?!
Planeava Nunes grandes coisas, roça de três alqueires, conserto da casa, monjolo...
Aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.
— Monjolo? Ché, que esperança!
Nunes, metido em brios, roncou:
— Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto até moinho! Hei de fazer a Porungada morder a munheca de inveja. Vai ver!...
Com assombro de todos não ficou em prosa fiada a promessa. Nunes remendou mal e mal a casa, derrubou um capoeirão descansado de oito anos e, num esforço de mouro, meteu na terra nove quartas de milho.
Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou:
— Eh! Aquilo é fogo de jacá velho. Calor de pinguço não dura...
O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em janeiro o milho desembrulhava pendão, muito medrado de espigas.
Nunes não cabia em si. Visitava as roças muito contente da vida, unhando os caules viçosos já em pleno arreganhamento da dentuça vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se da cabelugem louro-translúcida. Segurava então a barbica do queixo e sonhava opulências futuras, balanceando prós e contras. Os contras já estavam de fora. Só havia prós. E concluía, entrando em casa, para a mulher:
— Este ano quebro um milhão desgramado!
Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados os lucros. Não foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução de tal vulto, porém, não se toma assim do pé para mão: era preciso meditar, calcular. E Nunes maginava... O chóó-pan do futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornelo de música do céu.
— Hei de mostrar ao Porunga que ele não é o único monjoleiro do mundo. Empreito o serviço com o compadre Teixeirinha da Ponte Alta.
A mulher botou as mãos na cabeça.
— Nossa Virgem! É coisa de louco! Pois o compadre nem braço tem...
— Bééé! — urrou Nunes, estomagado. — Cale essa boca! Mulher não entende das coisas...
E ela, nas encolhas:
— Tá bom. Depois não se queixe.
— Bééé! — rematou o marido.
Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relações familiares. Quando ali roncava o “bééé”, mulher, filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silêncio. Sabiam por dolorosa experiência pessoal que o ponto acima era o porretinho de sapuva.
Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razão, porque o Teixeirinha Maneta era um carapina ruim inteirado, dos que vivem de biscates e remendos. Só a um bêbado como o Nunes bacorejaria a ideia de meter a monjoleiro um taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma vista. Mas era compadre e acabou-se. “Bééé!”
Uma nova semana passou Nunes em trabalhos de “maginação”. Coçava lentamente a cabeça, pitava enormes cigarrões, muito absorto, com os olhos no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim. Rumou à Ponte Alta e trouxe de lá o velho carapina, com a ferramenta capenga.
Só restava resolver o problema da madeira. Nas suas terras não havia senão pau de foice. Pau de machado, capaz de monjolo, só a peroba da divisa, velha árvore morta que era o marco entre os dois sítios, tacitamente respeitada de lá e de cá. Deitá-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado — como lhe fizeram à paca.
Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.
— Está resolvido: derrubo a peroba!
Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não raiava a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes.
Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do bando, interpelou:
— Com ordem de quem, seu...
— Com ordem da paca, ouviu? — revidou Nunes provocativamente.
— Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia sua.
— Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... — retrucou Nunes apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa.
Pedro continha-se a custo.
— Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...
— Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira “cuia” que passar o rumo!...
Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta:
— Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!…
A Porungada, afinal, abandonou o campo — para não haver sangue.
— Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita lágrima por amor disso...
— Bééé!... — estrugiu Nunes triunfalmente.
Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar vitorioso de Nunes.
— Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro!
E assombrou o velho com muitos lances heroicos, quebramentos de cara, escoras de três e quatro, o diabo.
— O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta.
A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memória. Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo acachaçado, comemorativo do triunfo, até que uma soneira letárgica os derreou pelo chão. Com a derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo sacudindo a cabeça, a cismar...
— Que monjolo sairá disto, mãe do céu!...
Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte à peroba, muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco antigo, e a feitura do monjolo teve início com grande quebradeira de corpo. Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só. Pasmava daquilo, e do ajutório que ao braço perfeito dava o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que Nunes respondia com outros, sempre tendentes a patentear a ruindade dos Porungas.
Falquejado o toro, correram um barbante embebido num mingau de carvão.
— Pegue nesta ponta, compadre — dizia o velho. — Agora estique; isso.
E tomando entre os dedos o meio do cordel — plaf —, chicoteava a madeira, riscando nela um traço negro.
Nunes revelou grande vocação para esfria-verruma. Esfria-verrumas são os “empaliadores” dos carapinas. Sentam-se com uma nádega à beira da banca e durante horas pasmam do rebote correr na tábua encaracolando fitas, ou do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da enxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam: “É Grive? (Greaves) Quanto custou?”. E quando sai da madeira a verruma, quente da fricção, pegam-na e põem-se a soprá-la muito sérios.
Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho a machado e enxada. Depois rasgou as furas da haste e afeiçoou a munheca. Prontas que foram, atacou o pilão. Escava que escava, em três dias pô-lo de banda, concluso. Restava somente aparelhar a “virgem”.
— O compadre sabe a história do pau de feitiço?
Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa alguma, tirante emborcar o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o esquadrejamento da “virgem”, Maneta narrou o caso que ouvira ao pai, o Teixeirão serrador, madeireiro de fama.
— Em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato toda vida, lidei com toda casta de árvore, desdobrei desde imbaúba e embiruçu até bálsamo, que é raro por aqui. Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho do mato. E de tanto lidar com paus, fiquei na suposição de que as árvores têm alma, como a gente.
— Te esconjuro! — espirrou Nunes.
— Isto dizia lá o velho; eu por mim não dou opinião. E têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. Não vê como gemem certos paus ao caírem? E outros como choram tanta lágrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora pois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de Deus.
— Lá isso...
— Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qual é, a modo que peitado pra desforra dos mais. É o pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o machado no cerne desse pau pode encomendar a alma pro diabo, que está perdido. Ou estrepado, ou de cabeça rachada por um galho seco que despenca de cima, ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não escapa. Não adianta se precatar: a desgraça peala mesmo, mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada.
“Isto dizia o velho — e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada do Figueirão, alembra-se?, morreu o filho de Chico Pires. Estava cortando um guamerim quando, de repente, soltou um grito. Acode que acode, o moço estava com o peito varado até as costas. Como foi? Como não foi? Ninguém entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e disse: ‘É feitiço de pau...’. Como este um, quantos casos? O mundo está cheio. Sebastiãozinho da Ponte Alta fez uma casa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. Pois não é que a cumeeira arreia e estronda a cabeça do rapaz? Por isso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por ali perto não tinha havido desgraça. Era para ver se o feitiço estava solto ou preso, e precatar-se.”
Com estas e outras ia Maneta florejando de lérias as horas de serviço, enquanto dava os derradeiros retoques no engenho.
Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que é pouco — e ele batia tapas amigos na peroba-vermelha.
— Aí, minha velha! Mansinha, hein? Há de chamar-se Tira-prosa — tira-prosa de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh!
Recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito à custa dum ancorote de cachaça, que esvaziaram a meio.
Dias depois, bem fincado, bem socado o pilão, o monjolo recebeu água. Aberta a bica, um jorro de enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou para o “inferno”.[1] A engenhoca gemeu na “virgem” e alçou o pescoço. O cocho despejou a aguaceira — chóó! A munheca bateu firme no pilão — pan!
Nunes pulava de alegria.
— Conheceu, porungada choca, quem é João Nunes Eusébio da Ponta Alta?
Mas não lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da menina a palmear, nem os ladridos de Brinquinho que, espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontapés. Queria mais. Correu à espingarda, espoletou-a e, erguendo-a para o “outro lado”, desfechou. Mas o caco velho da pica-pau não compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alçada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou com ela para longe, embrulhada num palavrão. Lembrou-se depois de três foguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los; atacou-os em direção aos Porungas.
— Cheira essa pólvora, cuiada!
Infelizmente as bombas, muito úmidas, negaram fogo por sua vez.
— Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega também.
Não negou. E a prova foi roncarem logo para ali como dois gambás.
No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com grande sentimento do Nunes, que perdia nele um companheirão. Quanto ao monjolo, como não houvesse milho a pilar, ficou sua estreia para quando se quebrasse a roça.
Cessaram as chuvas de verão. Entrou o outono, refrescado, limpo. Amarelaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Começou a quebra. Muito impaciente, Nunes debulhou o primeiro jacá recolhido e atochou o pilão. Ai! Não há felicidade completa no mundo. O engenho provou mal. Não rendia a canjica. Desproporcionada ao cocho, a haste não dava o jogo da regra. A mão, por muito leve ou por defeito de esquadria na “virgem”, guinava à esquerda ao bater, espirrando milho para fora. Por mal dos pecados, à primeira chuvinha o pilão entrou a rever água. Fora escavado em madeira ventada. Não prestava.
Nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se a reparar tantas “torturas”. Diminuiu o peso ao macaco, engrossou as águas, amarrou ali, especou acolá, calafetou fendas. Consumiu dias em luta surda contra as manhas do mal engonçado. Mas a peste do mostrengo respondia a cada arranjo com uma reincidência de desalentar.
O pobre homem explodiu, então. Da boca lhe espirraram injúrias sem fim contra o patife do carapina.
— Excomungado do diabo de maldelazento de maneta...
Impossível meter no papel todas as contas do rosário; as miúdas inda cabem, mas as graúdas não podem sair do Varjão. Além de injúrias, ameaças. Que iria à Ponte Alta rachar o compadre a foice; que lhe vazava a outra vista; que...
Num desses desabafos a tola da mulher meteu a colher torta no meio.
— Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o “queixo-duro” não fez caso...
Ai! Nunes, que só esperava por aquilo, passou a mão na sapuva e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova de consertar negro ladrão.
— Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno! Aprende a fazer monjolo, porco sujo! — e malhava...
A mulher sumiu-se aos pinotes mato adentro, seguida do mulherio miúdo; e por oito dias andou em esfregações de salmoura pela polpa avergoada. Nunes, porém, melhorou consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da bílis.
A nova de tais sucessos chegou à Porungada. Pedro, exultante, não teve mão de si, quis ver com os próprios olhos a caranguejola que o vingava tão a pique. Meditou um plano, e lá um dia transpôs o espigão, rumo à casa do rival. Voltou uma hora depois espremendo risos fungados.
— Eh, eh, minha gente! Vocês não calculam. Quando quebrei o serrote já ouvi o barulho — chóó-pan —, uma ronqueira dos diabos! Disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh!
Fui chegando. Nunes, jururu, estava debulhando milho na porta. Quando me viu entreparou, amode que assombrado.
— É de paz! — eu disse, e me plantei diante dele. — Dois chefes de família, inda mais vizinhos, não podem viver toda a vida assim, de focinho “trucido” um pro outro. O que foi, foi. Acabou-se. Toque.
Ele relanceou os olhos pro lado da ronqueira — eh, eh! — e muito desconchavado me espichou a mão sem abrir o bico.
— Traga um café! — gritou pra dentro.
Enfiei os olhos pela casa: estava “assim” de mulherada na cozinha! Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversava sem graça, amarradinha. Por fim especulei:
— E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?
Nunes amarelou que nem esta folha!
— É bonzinho, rende bem...
— Quero ver” — disse eu —, se não é curiosidade...
— Pois vá — respondeu, sem se mexer do lugar.
Eu fui.
Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem na casa do diabo! Só se vê amarrilhos de cipó e espeques e macacos. A haste tem nove palmos e o cocho a mó que tem dez!...
— Quiá! quiá! quiá! — cacarejou a roda, que em matéria de monjolo era entendidíssima.
— A mão não pesa, home, não pesa nem arroba e meia! A “virgem” está errada e fora do prumo. Milho está que está alvejando o chão. A mão pincha duma banda.
Os Porunguinhas babavam.
— Então, roncar ele ronca?
— Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas, socar? O boi soca! Nem três litros rende por dia. Homem, gentes, aquilo é coisa que só vendo!
A cara dos Porungas, anuviada desde o incidente da peroba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos do despique. As nuvens foram escurentar os céus do Varjão. Era um nunca se acabar de troças e pilhérias de toda ordem. Inventavam traços cômicos, exageravam as trapalhices do mundéu. Enfeitavam-no como se faz ao mastro de são João. Sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os Porunguinhas iam atando cada qual o seu buquê, de modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente cômica. A palavra ronqueira entrou a girar nas vizinhanças como termo comparativo de tudo quanto é risível ou sem pé nem cabeça.
Aos ouvidos de Nunes foram bater tais rumores. O orgulho, muito medrado no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhe como fruta verde colhida antes do tempo. Mas impossibilitado de vingar-se deu de criar um rancor surdo contra a Ronqueira, que, trôpega, lá ia malhando, dia e noite, chóó-pan, muito lerda, muito parca de rendimento. Para acalmar a bílis Nunes dobrou as doses de cachaça.
A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da vida, esmolambada, sem mais esperanças de arranjo para aquele homem.
Sempre rentando o pai, sorníssimo, Pernambi parecia um velhinho idiota. Não tirava da boca o pito e cada vez batia mais forte no mulherio miúdo.
Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a cabeça, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua gente.
E assim, meses.
Afinal, veio a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso foi que o inocente pagou o crime do pecador, como é da justiça bíblica. Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo da Pedra Branca, outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de Ronqueira. Era demais.
— Até aquele cachorro do Cuitelo! — gemeu o mísero, passando a mão na garrafa.
Sorveu um gole e:
— Pernambizinho, vem cá. Bebe com teu pai, meu filho.
O menino não esperou novo convite: bebeu um, dois e três goles, estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo. Mal tonteado pelos eflúvios do álcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu. Nunes estirou-se ao sol para dormir.
Era um dia feio de agosto. Céu turvo do fumo das queimadas. Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas carbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes.
Transcorrida uma hora o bêbedo acordou, relanceou em torno os olhos mortiços.
— Quedele Pernambi? — disse às filhas acocoradas à soleira da porta.
As meninas não sabiam do irmão.
— Chamem Pernambi — engrolou o bêbedo, recaindo em cochilo.
Uma das pequenas saiu no encalço do menino.
Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se lhe houvessem desossado o pescoço. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas.
Súbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa.
A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, para à porta, orienta-se e corre para onde há voz. As filhas disparam-lhe atrás, rumo ao monjolo.
Silêncio trágico.
Depois novos gritos — gritos em coro —, gritos de desespero.
— Coitadinho do meu filho! — uivava lá longe a mãe.
Nunes soergue-se, amparado ao portal.
— Que é isso? — grunhe.
Ninguém lhe responde. Não há ninguém por ali.
Mas no monjolo recrudesce a grita. Para lá segue o bêbedo, cambaleante. Em caminho dá de cara com a mulher, que voltava descabelada, a falar sozinha.
— Que é que foi, mulher?
Arrostando com o marido, a pobre mãe afuzila nos olhos um raio de cólera incoercível.
— O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É a tua pinga, homem à toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá ver, desgraçado!...
Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa num quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão. Para fora, pendentes, duas pernas franzinas — e o monjolo impassível, a subir e a descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pelanca...
Esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemência Nunes corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.
— Chegou teu dia, desgraçado!
Cena lúgubre foi aquela! Entre rugidos de cólera o louco arremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. Uma pancada na mão — toma Barbazu! Outra na haste — rebenta demônio! Outra no pilão — estoura feiticeiro do diabo! E pan, pan, pan — dez, vinte, cem machadadas como nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijeza de pulso.
Cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da peroba assassina. E lascas. E achas...
Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra a matéria bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já um monte escavacado de peças em desmantelo, o mísero caboclo tombou por terra, arquejante, abraçado ao corpo inerte do filho. Instintivamente sua mão trêmula apalpava o fundo do pilão em procura da cabecinha que faltava.
[1]. “Inferno” é como é chamado o lugar onde a água que move o monjolo despeja depois de enchido o cocho. (N.E.)
— Monteiro Lobato, no livro "Contos completos". São Paulo : Biblioteca Azul, 2014.
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