O coleccionador de mulheres - Gabriel Rosa

© Mauro Chiarla 
O COLECCIONADOR DE MULHERES

Num bairro desse nosso país chamado Luanda, era uma vez, não num passado tão empoeirado, havia um homem cuja lenda intitulava-o Abraão Éden, deus do amor.
Segundo a lenda, Abraão Éden descendera da chama amorosa do primeiro anjo, cujos olhos ardiam de luz por uma deusa carnal, prendida nas teias da mortalidade, chegando mesmo a desafiar o criador, perseguindo um amor outrora virgem no tapete da humanidade.
E de uma virgem chamada Ângela Yamuka, puramente Maria aos olhos do criador, a quem, a vida toda, entregara tamanha dedicação.
De acordo a matriarca do Sugito, durante os cem mil anos da existência do histórico bairro, jamais houve tão bem feita escultura humana. 
Os rios contorciam-se, enforcavam a cristalina beleza da água perante a transbordante beleza de Yamuka. O mar enrugava o rosto, dobrava as unhas e num toque de mágica, fumava o corpo, quando avistasse na cicatriz da brisa a divina canção, erguida sobre o poço misterioso da garganta de Yamuka. Era ela, Eva antes do pecado, o mundo depois do Dilúvio.
Eu continuava o artifício de gravar, na memória, as palavras, por vezes, já enferrujadas e carcomidas pela idade da matriarca. Para Yamuka, o mundo era o rascunho de um paraíso angustiado, dizia a matriarca.
- Abraão, hoje, quero que me deixes contemplar essa tua timidez, como a um pasto solitário; faça-me sentir o peso obeso do silêncio como as nuvens disparadas ante o céu filosolouco.
Delirava, em forma de poesia, a professora de História e Literatura Universal, tal como as demais raparigas que morrem de amor por Abraão Éden.
- O que me pinta a felicidade dàlma não é a sua linda fissura, nem o sabor endeusado do prazer carnal que nos arrasta ao paraíso instantâneo, são os teus olhos, que escondem a nascente dum rio congestionado, espreitando e iluminando uma morte virgem. 
Prosseguia a professora que se chamava Ana. Para ela, só aquela calma feroz, imperando nos olhos de Abraão, servia de bálsamo para a alma e a mente Ana via na beleza, sobretudo nos gestos mágicos, diria mesmo endeusados de Abraão, a principal fonte de inspiração para suas aulas de Literatura. Chegava a inventar versos e, com a retórica que lhe escorria sobre a disparada língua, aos alunos convencia absolutamente de pertencerem a grandes poetas como: Breton, Neruda, Régio, Drumond, Maiamona etc.
Quando Abraão, pelos pés, espreitasse as ruas do Sugito, era o desfile do século. Chegou-se mesmo a lamentar a morte de duas adolescentes no campo do Sai Língua, aquando da visita de Abraão na campa de sua mãe no cemitério da SantÀna. As jovens que se divinhavam belas, não fosse o futuro morrer, passeandavam quando avistaram um deslumbrante rosto masculino, segundo os sugitenses «as raparigas, num riscar de tempo, deram ao rosto uma festa inesquecível; admirando a linda e fresca aparência de Abraão Éden». Ele, na retribuição, piscou os olhos, simples como acender um fósforo num paraíso de estrelas distraídas, acelerando a festa que transbordava nos corações das raparigas, como se achassem a fonte dum rio num mundo enrugado de seca. De seguida, viram os seus rostos pálidos e tombaram como rochas envenenadas.
Os médicos desconheciam a causa, segundo os relatórios ouviam-se  mujimbos de que ele enfeitiçava as raparigas com sua beleza e, num olhar cristalino, ceifava-as simples e rápido como a um raio...
Homens escondiam as esposas, filhas e irmãs temendo igual desfecho. Uns questionavam a razão de tanta mulher linda procurar Abraão, recorrendo aos melhores kimbandas. Até a mulata Alzira, a mais linda puta do bairro, em dias que lhe era sagrado no ofício do munhungo, dispensava os clientes para uma sessão de visita ao tão aclamado quarto de Abraão, como uma crente fidedigna...
- Prometi-lhe em casamento, um bom nome perante a sociedade e dar-lhe a mais bela casa da rua Madame Berman. Em compensação, quedar comigo em dedicação pura, num desses dias sagrassantos, abdicando o Abrãismo, a quem era devota. Afirmativamente, rejeitou, com a voz fluida, qual anja incorruptível! 
Lamentava, numa ironia estampada nos gestos do rosto, o triste episódio, o general Diabonegro.
O galo Tatagayá, semicerrando os olhos velhos, já pela idade que lhe consumia, cantava na rouca voz, anunciando uma morna madrugada, quando o enxame de pessoas atropelava a luminosa casa de Abraão Éden, espumando de raiva ante a proeza do homem. 
Qual não foi o espanto! As gavetas cheias de tangas, fazendo um arco-íris entre as cores. Uns no silêncio que lhes comia a fala, reconheciam as íntimas das esposas; outros só mesmo cheirando, para constatar o inconfundível aroma carnal das suas mulheres, irmãs e
filhas. Unhas à borboletas e dedos imortalizados num recipiente espreitando sobre a banca.
- Esse gajo é um coleccionador de mulheres!
Disse um dos homens que achara um seio fresco e à maboque perfumado, que, logo, adivinhou ser o da vizinha Saló, que aparecera há dois dias com um seio em falta, alegando tê-lo perdido pelo câncer da mama. O homem estranhava a alegria e a aceitação pela doença e a perca do seio, parecendo que a vizinha lhe nascera uma outra vida.
Feridos no orgulho, os homens proclamaram a morte de Abraão, como se a guerra mundial tivessem ganhado.
As mulheres choravam torrencialmente, como se tivessem perdido um profeta, antes mesmo de anunciar as boas novas da salvação feminina num mundo machista.
Uma folha soprou aos ouvidos das mulheres que Abraão Éden eterno vivia em todas as luas prenhes, que pariam nas cacimbas em noites desamparadas.
Eu sou o Sardão Benguela, dos arbustos da obra do Toi Li, tudo isso me foi contado pela matriarca do Sugito: a tia Maria Pata-pata.
Já me esquecia... a professora Ana tornou-se uma grande poetisa e declamadora; ganhou, há bem pouco tempo, o Nobel da Literatura, assinando com o pseudónimo de Ana Sugitoéden. A sua obra mais célebre é A luz feminina despertada na mansa serpente, o caminho vergonhoso dos Deuses.

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- Gabriel Rosa, em "Agris Magazine: Tundavala". [coordenação editorial Helder Silvestre Simba André]. 2ª ed., Luanda/Angola: Movimento Litteragris©, 2016.
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Sobre Gabriel Rosa
Gabriel Jaime Neto Rosa, escritor e estudante do Instituto Médio Comercial de Luanda, e trabalha como assistente de Contact Center (UCALL) da UNITEL.
Conheceu o mundo no 13º pôr-do-sol, de um angustiado Abril, sob um 1994 assombrado. Sem agrado, desceu pelas escadas do ventre, ante o assassino olhar de Maria Peixoto Neto. Um Jaime Duarte Rosa adivinhava-se-lhe a sina pelo interno choro. Sofre de catarata poética, perseguindo uma Deusa, cuja morte, amavelmente, lha roubou
prà a coleccionar entre amuletos divinizados. E, neste fim de linha, cabe-se-lhe, na fadiga das mãos, pirilampiar édenes sobre o espanto de Jeová-satã. 

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