© Vladimir Kush |
Se eu seria personagem
Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos com muita confusão.
Titolívio Sérvulo, esse, devia ser meu amigo. Ativo, atilado em ações, néscio nos atos; réu de grandes dotes faladores. Cego como duas portas. Me mostrou Orlanda — reto trouxe-ma à atual atenção. Algo a isso o obrigasse, acho. Só a fé me vive. Sou da soldadesca de algum general. Todo soldado tem um pouquinho de chumbo.
Depois de drinque inconsiderado, em amena tarde, que muito me esquece. — “Feia, frívola, antipática...” — T. impôs. Aceitei, sem aceno. Nela eu não reparara, olhava-a indiferente como gato ante estátua, como o belo é oblíquo.
Não dessa feita. Porque ela não surgira apenas: desenhou-se e terna para mim. Além de linda — incomparável — a raridade da ave. Se cada uma pessoa é para outra-uma pessoa? Só ela me saltava aos olhos.
Fixe-se porém que ninha ou baga eu não disse, guardei-me de apreciação. Sou tímido. Vejo, sinto, penso, não minto. Me fecho. Eu, que não vou nem venho. Tenho a ilusão na mão. Nasci para cristão ou sábio, quisera ser.
E vai, senão, que T., colado a mim, em ímpeto não inédito se desdisse: — “Boa, fina, elegante!” — de feliz grito, precipitando-se na matéria do quadro. Dava-lhe o quê? Indaguei-me como.
Nada eu lhe falara, afirmo, nem dele teria audiência. Só mesmo a mim: fortíssimo aquele sobredito meu conceito, e que era uma ocasião interna.
Mas, feito um achado oracular, ele contracunhando-o, agora, pois. Já a tinha em valia; estava-se no coincidir. Onde há uma borboleta, está pronta a paisagem? Tácito, de lado não me entortei, como o monge se encapuza. Rebebi, tinidamente. Tomei posição.
Daí, dados os dias, eu amava-a — sem temor ao termo. À boa fé: mais vale quem a amar madruga, do que quem outro verbo conjuga... Do que de novo fiz meu silêncio.
E vem T. — contudo, como se me segundando, em sua irreticência, comentando meu coração. Já T. também gostava dela, e sob que forma? Por isto assim que: para namorico, o ilícito, picirico, queria-a que queria.
Mais me emudeci. Abri-me a mim. De Orlanda eu, certo antes, me enamorara, secreto efervescente. Tímido, tímidulo. Sou antigo. Onde estão os cocheiros e os arcediagos? T. era que me copiasse, não a seu ciente. Em segredo pondo eu minha toda concentrada energia passional tão pulsante; de bom guerreiro.
É de adivinhar que T. mudou, no meu ar. Súbito o incêndio, ele se apaixonara, após, por Orlanda, andorinha do abstrato. Transmentiu-me: o embeiço — reflexo, eco, decalque. Já éramos ambos e três.
Escureço que demais não me surpreendi, bofé, acima de espanto. E põe-se o problema. Todo subsentir dá contágio, cada presença é um perigo? Aceitam-se teorias.
T. tocava a trombeta — miolado, atravessado, mosqueteiro — imitador de amor. Ou eu, falso e apenas, arremedando-o por antecipação. O futuro são respostas. Da vida, sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo. Inimaginemo-nos.
Foi havendo amor. Entre mim tenho que aqui rir-me-ão, de no jogo omisso, constante timidejante, calando-me de demonstrações. Meu amor, luar da outra face, de Orlanda não ver. Do que o da gente, vale a semente — o que, acho, ainda não foi dito. T. sim saía-se, entreator.
Adão. Eu, não. Vou ao que me há de vir, só, só, próprio. Espero — depois, antes e durante — destinatário de algum amor. O tempo é que é a matéria do entendimento. Quem pôs libreto e solfa? O amor não pode ser construidamente. Ninguém tem o direito de cuidar de si.
Pois, que, quanto eu não dava, alferes, para ter Orlanda?
E então T. avisou-se-me, vice-louco, com avento de casamento. Ia do mito ao fato; o que a veneta tenta. Tudo já estava. A notícia pegou-me em seu primeiro remoinho.
E tugi-nem-mugi, nisso eu não tendo voto; só emoção, calada como uma baioneta. Tive-me. O general dispõe. Me amolgam, desamolgo-me. Valha o amuo filosófico. T. sentimentiroso, regozijado com o relógio... Às vezes a gente é mesmo de ferro. Recentrei-me, como peculiar aos tímidos e aos sensatos. Isto é, fui-me a dormir, a ducentésima vez, nesse ano.
Tido de conformar-me. Aí a minha memória desfalece. Viver é plural — muito do que não vejo nem invejo. E atravessei, não intimidado, aquele certo se não errado acontecimento.
Noiva e de outro, Orlanda? Então ela não era a minha, era a de T. então. Folguei por ambos, a isso obriguei-me. Coadunei nula raiva com esperança incógnita, nesse meu momento. A hora se fazia pelo deve & haver dos astros, não a aliás e talvez. Tanto sabe é quem manda; e fino o mandante. A gente tem de viver, e o verão é longo. Retombei, pesado, dúctil, no molde. Salvem-se cócega e mágica, para se poder reler a vida.
Sim sofri: como o músico atrás dos surdos ou o surdo atrás dos dançantes; mas, com cadência. Orlanda e uma data — o tempo, t? Vinha eu de fazer de a esquecer, ordem que traduzi e me dei. Em esquecimento que, oculto, vazava. A quanto parece.
T. seguia-me, brusco também padecia, inexplicada mas explicavelmente, bom condutor. Do modo, doeu-se, descreu-se, quando um grande acontecimento veio a não suceder. Plorava, que quase; só piscou depois.
Nem exultei — não querendo emprestar-lhe bafo. Na circunstância, a outronada o induzisse, sou de conselho escasso. Eu, no caso dele... refeito de manter-me de parte.
Pois foi o que ele fez, mudou de amar e de amor, ora agora mandar-se-á ao lado de uma outra mulher, certa a de Titolívio Sérvulo, a ele de antemão destinada, da grei do exato sentir. Tive-lhe, tenho-lhe mais amizade, não dó. Sei o que hei. Timidez paga devagar, mas paga.
E nem sabe o tímido quanto bem calcula. À melhor fé! Como o amor se faz é graças a dois.
Segue-se, enfim assim, nomeadamente Orlanda — de a um tempo rimar com rosa, astro e alabastro — aqui. Sua minha alma; seu umbigo de odalisca, sorriso de sou-boneca, a pele toda um cheiro murmurante, olheiras mais gratas azúis. Mesma e minha.
De dom, viera, vinha, veio-me, até mim. Da vida sem ideia nem começo, esmaltes de um mosaico, do mundo — obra anônima? Fique o escrito por não dito. Sós, estampilhamo-nos. Tem-se de a algum general render continência. Ei-la, alisa a tira da sandália, olha-se terna ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos. Sou — ou transpareço-me?
— João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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