© Berthe Morisot |
Bela, das brancas mãos
Era bonita e jovem como um amanhecer. E os homens da aldeia, todos, suspiravam por ela. Os solteiros a olhavam de frente, tentando apoderar-se do seu olhar. Os casados a olhavam de viés, escondendo o brilho dos olhos sob as pálpebras abaixadas. Os velhos e os meninos a olhavam à noite em seus sonhos.
Ela, porém, não olhava ninguém. Cuidava do seu fazer com alegria, cantava, caminhava leve com pés descalços. Pouco conversava com as outras mulheres da aldeia.
Essas também a olhavam. Mas com olhos escuros. Viam a mocinha fazer-se mulher. Viam seus homens cada vez mais atraídos. E viam-se mais feias, porque o espelho era ela.
Depois aconteceu que um moço largasse a junta de bois no meio do campo para segui-la até o rio. Houve a noite em que um marido não voltou para casa, suspirando a noite toda debaixo da sua janela. Dois jovens brigaram a faca e se disse que havia sido por ela. O louco da aldeia enforcou-se e todos só pensaram em um motivo.
À noite, as mulheres reuniram-se enquanto ela dormia. E decidiram seu destino. No escuro ainda, a arrancaram da cama e a expulsaram da aldeia, que nunca mais voltasse. Aos homens, no dia seguinte, disseram que havia partido com um viajante.
E não houve mais bois abandonados no meio do campo, os maridos todos regressaram para suas casas à noite, as brigas passaram a ser por causa da terra. E um dia um homem perdeu a razão e a aldeia voltou a ter o seu louco.
Tudo era tranqüilidade. Até o dia em que um dos homens saiu para caçar e não voltou.
Procuraram por ele no bosque, procuraram por ele no rio. E nada encontraram. Só sua arma, debaixo de um arbusto.
Passados muitos meses, quando já ninguém falava no desaparecimento, outro foi cortar lenha. E não voltou.
Dessa vez só procuraram entre as árvores. Encontraram o machado. Mas dele, nem sinal.
Durante muito tempo falou-se no homem que havia sumido. Muitos evitaram ir ao bosque. Depois, aos poucos, o fato foi se afastando na memória da aldeia, e as coisas voltaram a ser como antes.
E como antes um homem foi ao bosque, e como antes desapareceu, e como antes nada dele se encontrou.
Era o terceiro a desaparecer na aldeia. Haveria outro depois. E mais um.
As mulheres choravam com seus negros olhos.
Ninguém mais queria ir ao bosque. Porém, estando por acabar as provisões de suas casas, dois homens decidiram que juntos o perigo seria menor. E saíram para caçar.
Muitas vezes haviam percorrido aquelas trilhas. Mas, por mais que conhecessem todos os ninhos e tocas, naquele dia nenhuma criatura de pêlo ou pena cruzou seu caminho. E, procurando, embrenharam-se mais do que pretendiam.
Um deles ia na frente. O outro, o acompanhava. Sem que o primeiro percebesse, o segundo foi ficando para trás e, atraído por um ruído, meteu-se entre as folhagens.
Seu grito não demorou. Correu o primeiro para ajudá-lo. Mas, chegando ao lugar de onde vinham os chamados, viu a metade superior do amigo, que agitava os braços e gritava por socorro, enquanto a outra metade desaparecia na boca de uma enorme serpente.
Pensou em atirar, mas temeu atingir o companheiro ou atiçar a fúria da serpente, que poderia cortá-lo ao meio. Então agarrou-o pelas mãos e, cravando os pés no chão, começou a puxar.
Puxou, puxou, puxou. E aos poucos viu a cintura do amigo sair da verde moldura daquela boca, depois apareceram os quadris, as coxas, as pernas.
Extenuado, deixou-se cair, enquanto o amigo acabava de se libertar.
Mas, ao levantar a cabeça, viu que este, embora fora da serpente, sacudia os pés e lutava tentando soltar-se de alguma coisa mais.
Aproximou-se. Saindo da boca da cobra, duas mãos prendiam-se aos tornozelos do amigo.
Agora eram dois a puxar. Puxava uma mão o primeiro, puxava a outra mão o segundo. E palmo a palmo um terceiro homem foi saindo como o outro havia saído. Era aquele que por último desaparecera da aldeia.
Limpavam-se os dois de suor e poeira, quando viram que o homem também sacudia os pés, presos os tornozelos por duas mãos que despontavam da boca da serpente.
Agora que eram três a puxar, nem parecia necessário fazer tanta força. Mas era. E afinal caíram os três exaustos, e o homem que acabava de sair viu que seus tornozelos estavam presos, e os quatro começaram a puxar.
Cinco homens vieram à luz dessa forma. Na mesma ordem em que ao longo dos meses haviam desaparecido da aldeia. E, quando o quinto saiu, viu que ao redor dos seus tornozelos, como pulseiras de marfim, duas mãos delicadas e brancas se apertavam.
Foram sete a puxar. E surpresos perceberam que, à medida que os pálidos braços saíam da boca escura, encolhia-se, tragada para dentro dela mesma, a cauda da serpente.
Os braços nem haviam surgido inteiros, e já despontava uma cabeça de longa cabeleira, revelava-se um doce rosto de mulher. Nova delicadeza movia os sete homens. Quando a mulher enfim foi liberada, reconheceram a moça da aldeia, que acreditavam ter partido com um viajante. E, estando ela nua, procuraram no chão algo com que cobri-la. Mas no chão não havia nada. Nem mesmo a longa pele da serpente.
— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999.
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